Horror
O grito. Edvard Munch (1893) |
Se há coisa a que os seres humanos nunca foram poupados, foi à presença real ou imaginada do pior dos horrores. Diria mais, a literatura, a arte em geral, encheu-se de tragédias, e de descrições, numa perspectiva de "tanto quanto pior melhor".
Um quadro simples, como o grito de Munch, conseguiu um efeito icónico, perturbador para a maioria dos espectadores. Podemos ir mais atrás, aos quadros de Hieronymus Bosch, que são também suficientemente desconcertantes e complexos, mas que estão fora da realidade do observador. Normalmente a situação mais perturbadora leva o espectador para uma realidade que não o coloca apenas no campo da ficção.
A principal questão é a de perceber a "convocatória de horror", com que somos confrontados, convidados a assistir, a sofrer, em primeira pessoa ou em pessoa alheia, trazendo para nós sentimentos de que poderíamos bem prescindir.
Ser humano
O ser humano apareceu num contexto extremamente violento, onde a natureza já exercia toda a espécie de experiências nefastas aos animais que tinha criado. Não foi o homem que criou o horror. Nasceu dele e cresceu convivendo diariamente com ele.
Não poderia ser doutra forma, sejamos claros. Se a matéria era aglomerada, praticamente do nada, de um ovo, para se constituir como ser vivo, enquanto aglomerado natural, não faria sentido uma lei natural que inviabilizasse a sua destruição, a sua remissão às partes que formavam o todo.
Em muitos casos isso era e é literalmente assim, a presa entra dentro do sistema digestivo do predador, e sai já reduzida a estrume, matéria pronta a entrar noutro ciclo de vida. A natureza não esteve preocupada em anular a dor da presa, assim como forçava o predador a esse jogo, sob pena da lancinante dor da fome, antevisão do seu próprio desfalecimento.
Energia
A lógica algo sinistra da vida está relacionada com esse imposto pago a cada instante de tempo.
As partículas não podem decidir mover-se de um lado para o outro, sem pagar o imposto energético.
No caso de serem partículas inanimadas, qualquer movimento seu resulta de energia transmitida por outra fonte. As partículas animadas, por moto próprio, são animais (aliás, como o nome indica).
Um grão de areia pode voar levado pelo vento, pode ser arrastado pela água, mas todos esses movimentos não têm origem em si, são resultado da dinâmica de fluidos, na maior parte das vezes definida pela energia do Sol, ou pela conversão da energia da Terra (por exemplo, a energia potencial gravítica). Quando pequenas partículas tentam rumar contra essa corrente, por iniciativa própria, são animais, desde as mais pequenas amebas, até às maiores baleias.
Cada vez que manifestam a sua vida, pagam esse seu movimento em energia.
Como a lei universal é de conservação de energia, se algum animal quer gastar energia, tem que ir tirá-la algures... Ora, praticamente a única fonte gratuita de energia é o Sol, e o aproveitamento directo dessa energia é feito pelas plantas na fotossíntese. Animais movidos por fotossíntese foi coisa que não vingou, provavelmente por insuficiência energética, e assim os primeiros animais foram herbívoros, retirando energia das plantas. Até aqui a coisa não era muito atroz, porque as plantas eram desprovidas de sistema nervoso... o problema começou quando a natureza decidiu avançar para a crueldade seguinte, permitindo que uns animais fossem predadores de outros, especialmente dos herbívoros. A natureza já tinha exercido a sua crueldade com as plantas, através de secas e outros mimos, mas passa a outro nível com os herbívoros, chegando ao nível do sarcasmo quando condena uma tartaruga à morte por impossibilidade de se virar sobre si mesma.
Propósito
Isto tudo poderia ocorrer sem qualquer propósito, e essa é a versão oficializada da ciência maçónica, mas nos bastidores vai correndo outra ciência, sem pecadilhos religiosos, de uma religião que é anti-religiosa. Já aqui falámos do Princípio Antrópico, e essa é praticamente a única resposta a esta questão. Mais concretamente, quando a natureza introduz os seres vivos e os animais vai cumprir os passos necessários para o "conheça-se a si mesmo" universal. Desde a primeira existência de olhos, ou melhor, desde o primeiro instante em que os animais tiveram sentidos, assimilaram dentro de si uma parte exterior. Com os primeiros animais, o universo ganhava pela primeira vez seres que interpretavam uma parte do universo onde estavam. Admitindo que esses animais eram herbívoros, o seu conjunto iria interpretar ou codificar o mundo exterior. Com o cérebro herbívoro, o mundo terrestre poderia ser todo visto e previsto, nas suas leis mais básicas. Os herbívoros, sujeitos às maiores atrocidades, poderiam ir sobrevivendo num mundo quase caótico, restando os que melhor o entendessem. No entanto, sem inimigos acima de si, não teriam que se entender a si mesmos.
Quando a natureza define predadores e presas, não está apenas a ser cruel... ou a arranjar alternativas para o sucesso energético. Nessa altura, as presas têm que prever os predadores, e vice-versa. O cérebro de um herbívoro deixa de estar apenas preocupado com os seus locais de pasto, uma tarefa simples, quando comparada com o prever da acção dos predadores que lhe ameaçam a vida.
Desenvolvendo-se essa capacidade de previsão dos outros, isso tanto ocorre para a presa, no sentido de escapar ao predador, como para este, no sentido de apanhar a presa.
Em breve, o conjunto dos animais tanto conseguem entender minimamente os fenómenos físicos, como conseguem prever-se uns aos outros, entre os pares presa-predador. Mas como estas entidades são diferentes, ou seja, as espécies predadoras não caçam animais da mesma espécie, estes animais não estavam pressionados para se entenderem a si mesmos.
É com os primatas, e especialmente com os humanos, que o sucesso da espécie torna os humanos como potenciais predadores de humanos. Não se tratou apenas do canibalismo, que também ocorreu, os homens passaram à função de predadores de si mesmos, quando levaram as disputas territoriais e sexuais ao nível letal, o que raramente acontecia com os restantes animais.
Ser o mano
Nessa altura, quando o maior inimigo do homem é o próprio homem, a espécie tem que se conhecer a si mesmo. O maior propósito universal estava quase alcançado... não era apenas importante ao universo entender o funcionamento de uma parte, era especialmente importante entender-se a si mesmo. Se a espécie era resultado da natureza, para além de entender a outra natureza, teria que se entender a si mesma. Poderia dispensar isso, se não houvesse uma pressão, e essa pressão foi o horror, na nova forma que os humanos o trouxeram. Nas dilacerações que os humanos foram fazendo uns aos outros, foram sempre juntando novas ideias de horror, como forma de temor, como forma de se impor como potência perante os outros.
Os humanos criaram novos animais, muito mais temíveis, que tudo o existente anteriormente.
Esses novos animais eram as sociedades, que de famílias passaram a tribos, e de tribos a nações.
Se os homens eram mortais, essas sociedades poderiam não o ser, enquanto o legado cultural fosse preservado.
Até aqui funcionaria a lógica dos grupos, dos manos, mas não dos humanos.
Um homem teria que entender outro homem, mais do que isso teria que entender os grupos humanos, as sociedades aí desenvolvidas, etc. Ainda assim, cada homem estava dispensado de se entender a si mesmo. Entendia o outro como inimigo, poderia entendê-lo como mano, como companheiro, mas não surgia nenhuma pressão para se conhecer a si mesmo.
Creio que a pressão para se conhecer a si mesmo só resultou quando se percebeu que o problema não estava nos outros, estava no próprio. Para esse efeito, vejo um chefe tenebroso, que depois de se ver livre de todos os inimigos, começou a inventar novos inimigos, nos mais próximos, ao ponto de tendo o controlo sobre todos, seria forçado a perceber que os novos inimigos resultavam da sua paranóia. Esta reflexão pode nem ter partido de si, pode ter partido de algum conselheiro, que arriscaria ser o próximo na lista.
Esta constatação será motivo pelo qual a inscrição "conhece-te a ti mesmo" aparecia em destaque no Templo de Delfos, mas já resultaria de tempos mais remotos, muito anteriores a Zaratustra. Basicamente seria com esse início da verdadeira consciência do eu que a filosofia teria despontado para começar a abordar o problema fulcral.
O problema fulcral é simples, ainda que esteja enredado numa teia de preconceitos.
Como poderia o universo existir, se não desenvolvesse em si uma consciência autónoma, capaz de o observar e entender? - Conforme já disse aqui múltiplas vezes, não seriam os calhaus, as árvores, os burros ou os ursos, a entenderem a sua existência. Só os homens têm essa capacidade, a capacidade de reflexão e auto-reflexão, de definir mini-universos em si mesmos. O universo precisou de uma inteligência autónoma para se reflectir em si mesmo.
Tudo o que existe, existe por uma razão. A razão de tudo não pode ser exterior ao universo, sob pena de o universo não incluir tudo o que existe, e contrariar a sua própria definição. Também não será nenhuma parte do universo a conter essa razão, sob pena de se identificar com ele. Mas ainda que a razão completa esteja fora de alcance, podemos saber o suficiente para compreender o assunto na sua generalidade, e mais do que isso, não nos interessarmos pelos detalhes, e sabendo porquê.
Concluindo, o horror foi uma prenda do processo, e tendo existido antes, não tem razão para agora desaparecer por si. Pode deixar de ter utilidade prática, como teve antes, e levar para caminhos que já trilhámos. Interessa saber que a existência teórica do horror não é apagável, mas será opção própria entender onde isso leva - normalmente a lado nenhum..
Ser humano
O ser humano apareceu num contexto extremamente violento, onde a natureza já exercia toda a espécie de experiências nefastas aos animais que tinha criado. Não foi o homem que criou o horror. Nasceu dele e cresceu convivendo diariamente com ele.
Não poderia ser doutra forma, sejamos claros. Se a matéria era aglomerada, praticamente do nada, de um ovo, para se constituir como ser vivo, enquanto aglomerado natural, não faria sentido uma lei natural que inviabilizasse a sua destruição, a sua remissão às partes que formavam o todo.
Em muitos casos isso era e é literalmente assim, a presa entra dentro do sistema digestivo do predador, e sai já reduzida a estrume, matéria pronta a entrar noutro ciclo de vida. A natureza não esteve preocupada em anular a dor da presa, assim como forçava o predador a esse jogo, sob pena da lancinante dor da fome, antevisão do seu próprio desfalecimento.
Energia
A lógica algo sinistra da vida está relacionada com esse imposto pago a cada instante de tempo.
As partículas não podem decidir mover-se de um lado para o outro, sem pagar o imposto energético.
No caso de serem partículas inanimadas, qualquer movimento seu resulta de energia transmitida por outra fonte. As partículas animadas, por moto próprio, são animais (aliás, como o nome indica).
Um grão de areia pode voar levado pelo vento, pode ser arrastado pela água, mas todos esses movimentos não têm origem em si, são resultado da dinâmica de fluidos, na maior parte das vezes definida pela energia do Sol, ou pela conversão da energia da Terra (por exemplo, a energia potencial gravítica). Quando pequenas partículas tentam rumar contra essa corrente, por iniciativa própria, são animais, desde as mais pequenas amebas, até às maiores baleias.
Cada vez que manifestam a sua vida, pagam esse seu movimento em energia.
Como a lei universal é de conservação de energia, se algum animal quer gastar energia, tem que ir tirá-la algures... Ora, praticamente a única fonte gratuita de energia é o Sol, e o aproveitamento directo dessa energia é feito pelas plantas na fotossíntese. Animais movidos por fotossíntese foi coisa que não vingou, provavelmente por insuficiência energética, e assim os primeiros animais foram herbívoros, retirando energia das plantas. Até aqui a coisa não era muito atroz, porque as plantas eram desprovidas de sistema nervoso... o problema começou quando a natureza decidiu avançar para a crueldade seguinte, permitindo que uns animais fossem predadores de outros, especialmente dos herbívoros. A natureza já tinha exercido a sua crueldade com as plantas, através de secas e outros mimos, mas passa a outro nível com os herbívoros, chegando ao nível do sarcasmo quando condena uma tartaruga à morte por impossibilidade de se virar sobre si mesma.
Propósito
Isto tudo poderia ocorrer sem qualquer propósito, e essa é a versão oficializada da ciência maçónica, mas nos bastidores vai correndo outra ciência, sem pecadilhos religiosos, de uma religião que é anti-religiosa. Já aqui falámos do Princípio Antrópico, e essa é praticamente a única resposta a esta questão. Mais concretamente, quando a natureza introduz os seres vivos e os animais vai cumprir os passos necessários para o "conheça-se a si mesmo" universal. Desde a primeira existência de olhos, ou melhor, desde o primeiro instante em que os animais tiveram sentidos, assimilaram dentro de si uma parte exterior. Com os primeiros animais, o universo ganhava pela primeira vez seres que interpretavam uma parte do universo onde estavam. Admitindo que esses animais eram herbívoros, o seu conjunto iria interpretar ou codificar o mundo exterior. Com o cérebro herbívoro, o mundo terrestre poderia ser todo visto e previsto, nas suas leis mais básicas. Os herbívoros, sujeitos às maiores atrocidades, poderiam ir sobrevivendo num mundo quase caótico, restando os que melhor o entendessem. No entanto, sem inimigos acima de si, não teriam que se entender a si mesmos.
Quando a natureza define predadores e presas, não está apenas a ser cruel... ou a arranjar alternativas para o sucesso energético. Nessa altura, as presas têm que prever os predadores, e vice-versa. O cérebro de um herbívoro deixa de estar apenas preocupado com os seus locais de pasto, uma tarefa simples, quando comparada com o prever da acção dos predadores que lhe ameaçam a vida.
Desenvolvendo-se essa capacidade de previsão dos outros, isso tanto ocorre para a presa, no sentido de escapar ao predador, como para este, no sentido de apanhar a presa.
Em breve, o conjunto dos animais tanto conseguem entender minimamente os fenómenos físicos, como conseguem prever-se uns aos outros, entre os pares presa-predador. Mas como estas entidades são diferentes, ou seja, as espécies predadoras não caçam animais da mesma espécie, estes animais não estavam pressionados para se entenderem a si mesmos.
É com os primatas, e especialmente com os humanos, que o sucesso da espécie torna os humanos como potenciais predadores de humanos. Não se tratou apenas do canibalismo, que também ocorreu, os homens passaram à função de predadores de si mesmos, quando levaram as disputas territoriais e sexuais ao nível letal, o que raramente acontecia com os restantes animais.
Ser o mano
Nessa altura, quando o maior inimigo do homem é o próprio homem, a espécie tem que se conhecer a si mesmo. O maior propósito universal estava quase alcançado... não era apenas importante ao universo entender o funcionamento de uma parte, era especialmente importante entender-se a si mesmo. Se a espécie era resultado da natureza, para além de entender a outra natureza, teria que se entender a si mesma. Poderia dispensar isso, se não houvesse uma pressão, e essa pressão foi o horror, na nova forma que os humanos o trouxeram. Nas dilacerações que os humanos foram fazendo uns aos outros, foram sempre juntando novas ideias de horror, como forma de temor, como forma de se impor como potência perante os outros.
Os humanos criaram novos animais, muito mais temíveis, que tudo o existente anteriormente.
Esses novos animais eram as sociedades, que de famílias passaram a tribos, e de tribos a nações.
Se os homens eram mortais, essas sociedades poderiam não o ser, enquanto o legado cultural fosse preservado.
Até aqui funcionaria a lógica dos grupos, dos manos, mas não dos humanos.
Um homem teria que entender outro homem, mais do que isso teria que entender os grupos humanos, as sociedades aí desenvolvidas, etc. Ainda assim, cada homem estava dispensado de se entender a si mesmo. Entendia o outro como inimigo, poderia entendê-lo como mano, como companheiro, mas não surgia nenhuma pressão para se conhecer a si mesmo.
Creio que a pressão para se conhecer a si mesmo só resultou quando se percebeu que o problema não estava nos outros, estava no próprio. Para esse efeito, vejo um chefe tenebroso, que depois de se ver livre de todos os inimigos, começou a inventar novos inimigos, nos mais próximos, ao ponto de tendo o controlo sobre todos, seria forçado a perceber que os novos inimigos resultavam da sua paranóia. Esta reflexão pode nem ter partido de si, pode ter partido de algum conselheiro, que arriscaria ser o próximo na lista.
Esta constatação será motivo pelo qual a inscrição "conhece-te a ti mesmo" aparecia em destaque no Templo de Delfos, mas já resultaria de tempos mais remotos, muito anteriores a Zaratustra. Basicamente seria com esse início da verdadeira consciência do eu que a filosofia teria despontado para começar a abordar o problema fulcral.
O problema fulcral é simples, ainda que esteja enredado numa teia de preconceitos.
Como poderia o universo existir, se não desenvolvesse em si uma consciência autónoma, capaz de o observar e entender? - Conforme já disse aqui múltiplas vezes, não seriam os calhaus, as árvores, os burros ou os ursos, a entenderem a sua existência. Só os homens têm essa capacidade, a capacidade de reflexão e auto-reflexão, de definir mini-universos em si mesmos. O universo precisou de uma inteligência autónoma para se reflectir em si mesmo.
Tudo o que existe, existe por uma razão. A razão de tudo não pode ser exterior ao universo, sob pena de o universo não incluir tudo o que existe, e contrariar a sua própria definição. Também não será nenhuma parte do universo a conter essa razão, sob pena de se identificar com ele. Mas ainda que a razão completa esteja fora de alcance, podemos saber o suficiente para compreender o assunto na sua generalidade, e mais do que isso, não nos interessarmos pelos detalhes, e sabendo porquê.
Concluindo, o horror foi uma prenda do processo, e tendo existido antes, não tem razão para agora desaparecer por si. Pode deixar de ter utilidade prática, como teve antes, e levar para caminhos que já trilhámos. Interessa saber que a existência teórica do horror não é apagável, mas será opção própria entender onde isso leva - normalmente a lado nenhum..