terça-feira, 30 de abril de 2019

A reinvenção da roda

Voltando a coches, e à citação do Museu dos Coches (em resposta a pergunta de João Ribeiro):
"A invenção e uso das carruagens não é de muito antiga data na Europa. A primeira viatura desta espécie, que talvez apareceu em Paris, foi o carro que em 1457 ofereceu à rainha de França o embaixador de Ladislau V, rei de Boémia e Hungria - país que parece ter sido o berço daquela descoberta sumptuária."
Antes que me vá esquecendo, e apesar de ter referido algumas coisas nos comentários, não poderia deixar de aqui colocar algumas imagens significativas, que indicam precisamente o contrário.

É claro que a questão não é a existência de quadrigas, que estão extensivamente ilustradas em desenhos da Antiguidade, de egípcios a gregos e romanos. A única questão que se levanta, e de forma despropositadamente absurda, é sobre o uso antigo de carros com 4 rodas.

(i) Dinamarca - Trundholm (carro solar)
O primeiro exemplo que apresentamos é o de um objecto de bronze, bem conhecido, encontrado na Dinamarca (em 1902), representando o que é entendido como um "carro solar". A sua datação, estimada pelo museu nacional dinamarquês, é 1400 a.C.
 Carro solar de Trundholm (circa 1400 a.C.)

O curioso neste caso é que neste caso há mesmo 6 rodas, e não apenas 4.
Sendo um objecto simbólico, o cavalo aparece colocado em cima das rodas e não a puxá-las, mas a presença do cavalo indicia justamente o seu apropriado uso para a locomoção do carro.

(ii) Alemanha - Acholshausen (carro alegórico)
Um outro exemplo de representação de um carro alegórico de bronze, foi encontrado num túmulo de pedra na Alemanha, em Acholshausen, num excelente estado de conservação.

Estes dois exemplos, sendo da Idade do Bronze, não permitem concluir que os carros de quatro rodas fossem usados para fins práticos. Claro que aqui se poderia argumentar que se tratam apenas de objectos ornamentais, porque quando não se quer ver, basta fechar os olhos.

(iii) Suécia - Tossene (petróglifo)
Ainda no norte da Europa, há na Suécia, na municipalidade de Sotenäs (em Tossene), inscrições gravadas na rocha com desenhos rudimentares, mas ilustrativos. Estes desenhos estão datados como pertencentes à Idade do Bronze, e podemos supor anteriores a 500 a.C. Nesses petróglifos é mais comum a representação de barcos, mas encontra-se ainda uma inscrição que explicita bem um veículo de 4 rodas, um carro que seria puxado por animais, provavelmente cavalos.


(iv) Itália - Capo di Ponte (petróglifo)
O último exemplo que trazemos, é já em Itália, na região de Capo di Ponte, em Val Camonica, uma região conhecida por ter o maior conjunto de petróglifos conhecidos. Estas inscrições estão datadas desde o Neolítico até à Idade do Bronze.
Neste caso, no parque de Naquane, vemos uma carroça de 4 rodas puxada por dois animais, provavelmente dois cavalos.

Portanto aqui não restam muitas dúvidas que o uso de carroças vai a um tempo que pode ir da Idade do Bronze ao Neolítico (ou mesmo Mesolítico, circa 4000 a. C.).

Carro ou Quarro, Quadrigas
Ora o que se tornou depois popular na época greco-romana foi o uso de quadrigas.
Ou seja, deixaram-se de usar 4 rodas, passou a usar-se um carro com 2 rodas puxado por 4 cavalos.
O uso de 4 cavalos para puxar um carro parece exagerado, e se repararmos na inscrição egípcia que tem Ramsés II num carro de guerra, vemos que há apenas 2 cavalos que puxam o carro.
Ramsés é puxado por um carro com 2 cavalos na Batalha de Kadesh.

Um acontecimento dramático que marcou o fim da Idade do Bronze foi justamente a Guerra de Tróia e eventos seguintes (como a Batalha de Kadesh).

Na minha opinião, na origem da nossa palavra "carro" = "ca+ro", estão as sílabas "ca" e "ro", e isso pode não ser acidental, já que "ro" se associa bem a roda e "ca" a quatro. Ou seja, quando falávamos em carro isso significaria justamente uma identificação a quatro rodas.
Aliás podemos escrever quatorze ou catorze, e portanto a escrita "qua" muito se destinou a esconder a origem "ca", passando a pronunciar-se o "u", numa provável deturpação da palavra original.

Ora, nesta suposição, foi decidido manter o número 4 como número de cavalos a puxar a quadriga, por referência às quatro rodas, ao mesmo tempo que praticamente não restaram nenhumas representações artísticas de carroças com 4 rodas, vindas do tempo greco-romano. 
Isso não teria sido acidental, foi praticamente uma decisão de regime que se impôs a partir da Idade do Ferro, mesmo que se saiba que os romanos usaram o carpentum (conforme referimos), mas dessas carroças não restou nenhuma inscrição ou pintura.

Carroça no Duque de Berry
No bem conhecido livro de horas do Duque de Berry (c. 1412) vemos alguns carros usados pelos camponeses e de facto parece que em época medieval os carros de duas rodas eram os mais comuns. 
Porém, se repararmos no carro solar, que aparece no topo da imagem, a azul, o que vemos é uma divindade conduzindo uma clássica carroça de 4 rodas, puxada por cavalos alados.
  
Trés riches heures du duc de Berry - mês de Setembro. À direita, zoom onde se vê a "carroça solar".
......

Carroça de rainhas
Ainda mais explicitamente, num manuscrito do Séc. XIV (c. 1325-35) aparece uma carroça, carruagem ou caravana, razoavelmente longa, e onde se passearia a corte real, desfilando perante a população. O manuscrito é inglês, de East Anglia, denominado Lutrell Psalter.
Lutrell Psalter - manuscrito ilustrando uma carroça real. (East Anglia, c. 1325-35)

Há ainda outros exemplos, como na Cosmografia Scotti (que já foi aqui mencionada), onde se pode ver uma Balista montada sobre uma carroça, mas de um modo geral podem ser consideradas raras as ilustrações com carros de 4 rodas, na época medieval.

Reinvenção da Roda
É claro que podemos distinguir entre uma carroça e um coche, em termos do seu aspecto e do sistema de suspensão. Digamos que o carpentum romano seria uma carroça (carruagem ou caravana), enquanto que o coche apresentava uma suspensão da cabine, mais cómoda para os passageiros, especialmente em estradas ou caminhos em más condições.
Depois, a questão da definição particular, é apenas uma menção burocrática.

Interessa, isso sim, que o uso da roda para locomoção terá decaído significativamente com a degradação e completo abandono em que foram deixadas as vias romanas, após as invasões bárbaras, conforme mencionámos há bastante tempo. 
Sem essa infra-estrutura, a locomoção rodoviária, tornou-se mais problemática, e podemos quase falar numa reinvenção da roda, quando no Séc. XV voltamos a ter um uso descomprometido dos meios de locomoção.
Não foi apenas a navegação que sofreu um impulso com o início das explorações marítimas.
Também no solo, e para efeitos de maior progresso industrioso e comercial, passou a ser necessário ter as vias terrestres melhor cuidadas, e prontas para o transporte em carros e carroças.

Por isso, quando o Museu dos Coches insiste na absurda menção da sua inexistência antes do Séc. XV ou XVI, não está apenas a chamar a si o ridículo... está também a lembrar os tempos que fizeram a civilização humana ficar parada no tempo durante milhares de anos. Até que a roda fosse reinventada, usada sem quaisquer embaraços sociais ou religiosos, e não apenas como símbolo de tortura e morte.

01.05.2019

sexta-feira, 26 de abril de 2019

dos Comentários (49) 25 de Abril sem cravos

Em baixo, deixo os comentários de José Manuel de Oliveira, relativos ao postal


Destaco os seguintes pontos:

(i) O ensaio de Rui Ramos sobre "os generais de Abril", na realidade foca sobre a figura do general Costa Gomes (que foi depois Presidente da República), lembrando a sua citação de que as tropas mobilizadas para a revolução não chegavam a 2% do exército, e assim teriam sido insuficientes, havendo resposta do regime. 
É um passo no sentido de se querer saber quem estava por trás, mas Rui Ramos despista o assunto para canto das sereias, querendo focar nos generais, ou mais concretamente em Costa Gomes, ignorando a presença da NATO em Lisboa, com uma força suficiente para deixar a cidade em escombros. Parece preferir invocar que os EUA estariam entretidos com o caso Watergate, e faz por esquecer a forte presença naval canadiana, que até pelas fotos é impossível de ser ignorada.

(ii) Não estando no comentário de José Manuel, coloco em anexo ao texto duas fotografias que me parecem elucidativas. Num caso a fragata portuguesa Gago Coutinho com as armas ao alto (conforme relatado pelo oficial da Assiniboine), e noutro caso o contratorpedeiro canadiano HMCS Huron, com as armas baixas, e portanto em posição de combate. 
Neste ponto, estou convencido que os 5 navios da marinha canadiana participaram activamente no 25 de Abril, como força de dissuasão, e a prova disso é a presença do HMCS Huron, que era suposto já ter saído do Tejo. Aliás, o oficial da HCMS Assiniboine (o único a deixar acessível o registo escrito da operação) reporta que todos os outros navios já teriam saído, mas ao mesmo tempo fala da presença do comandante da HCMS Yukon.

(iii) Zero cravos! O mais difícil de encontrar nas fotografias do 25 Abril são cravos... 
Nos dias seguintes houve bastantes fotos de cravos, mas não do próprio dia! 
Encontrar um cravo numa fotografia do Largo do Carmo, é tão difícil quanto "Encontrar o Wally", ou mais ainda, já que neste caso é bem possível que não estivesse lá nenhum!
José Manuel dá aqui o relato na 1ª pessoa, estando todo o dia no Largo do Carmo.

(iv) Costuma-se falar em 4 mortos pela PIDE, que terá disparado indiscriminadamente contra a população, esquecendo também que um agente dessa polícia que terá sido abatido ao tentar fugir. Assim, e no final de contas, com contas trocadas, resta notar que nada muda quando à verdade fabricada pelo anterior regime se sobrepôs a falsidade descarada do actual.

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Comentários de José Manuel de Oliveira 
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(i) Ensaio de Rui Ramos - Os generais de Abril
Deixo aqui um ensaio de Rui Ramos, a lerem no Observador: 


Sem os generais, a revolução nunca provavelmente teria acontecido, como aliás um desses generais, Costa Gomes, fez questão de notar anos depois: no dia 25 de Abril de 1974, as tropas mobilizadas para a revolução – 150 oficiais e 2000 soldados, a maior parte instruendos das “escolas práticas”, sem qualquer experiência de combate — nunca, em circunstâncias normais, teriam sido suficientes para derrubar um regime que, nesse ano, mantinha mais de 150 000 homens em armas”,
Em 74 apareceu na casa onde vivi um livro com o título Portugal e o Futuro, perguntei o que era aquilo? “era para acabar com a guerra em Africa”, não li, só recordei ser do General Spínola, dele diz Rui Ramos no Observador:
Em Portugal e o Futuro, que em 1974 foi editado, reeditado e traduzido como o livro que explicava o 25 de Abril, Spínola desfiava o rosário habitual dos críticos internos do regime salazarista na década de 1960: o mundo mudara e havia outras expectativas. “O tempo dos dogmas está ultrapassado”. Não se podia fingir que a emancipação nacional não estava na ordem do dia em África, ou ignorar que os portugueses ansiavam por uma prosperidade europeia [a CEE pagava melhor que Salazar…] e não por morrer numa guerra africana, dispendiosa e sem fim. A “crise” era a “mais grave da história de Portugal”. Contra os que, para evitar a desagregação do país, não viam alternativa à ditadura na metrópole e à guerra em África, Spínola sugeria uma via liberalizante e federalista que preservaria a “nação” enquanto ligação entre povos de diferentes continentes, mas em paz e democracia
Pois, mas desde quando os franceses iriam permitir concorrentes com províncias ultramarinas lusófonas a fazerem-lhes concorrência! Spínola quis ser o De Gaulle português e saiu-se mal…

(ii) HMCS Huron
Vasos de guerra não fundeiam frente a posições onde possam ser bombardeados, nesse caso ficam em deslocação velocidade máxima, essa do Contratorpedeiro Huron da NATO bloquear a Gago Coutinho face ao suposto alvo a força de Salgueiro Maia, no Terreiro do Paço em 25 de Abril de 1974, não convence… 
(1)

(2)
(1) Fragata Gago Coutinho (F-473) com armas ao alto. 
(2) HMCS Huron (DD-281) com armas em posição de combate.

(iii) Cravos, nem um...
E mais, não me lembro de ver UM cravo vermelho nos canos das G3, estive lá e no Carmo das 9:00 às 23:00, hora em que os mirones civis foram expulsos pela força da rua da sede da PIDE, antes vi tiros e mortos, cravos vermelhos essa é a mais bacoca desta “revolução”!
Salgueiro Maia no Largo do Carmo. Muita gente... mas zero cravos! Experimente procurar... nesta e noutras fotos.


(iv) A PIDE/DGS abre fogo sobre a população
--- Citações do que pode ser lido em https://journals.openedition.org/lerhistoria/1894
Nas imediações da sede da PIDE/DGS, as ruas estavam cheias de gente que se interrogava sobre o destino da polícia política e exigia a sua ocupação, gritando e, por vezes, atirando pedras ao edifício.
A PIDE/DGS disparou, a partir da sede, por duas vezes, a última das quais pouco depois das 20 horas, o que causou dezenas de feridos e 4 mortos: 
  • Francisco Carvalho Gesteiro, empregado de comércio de 18 anos, 
  • José James Hartley Barneto, de 37 anos, 
  • José Guilherme Carvalho Arruda, estudante de 20 anos, e 
  • Fernando Luís Barreiros dos Reis, um soldado de 24 anos.

O comandante da primeira força militar a chegar ao local após a retirada inicial dos fuzileiros, o regimento de Cavalaria 3 de Estremoz, afirma no seu relatório:
«Cerca das 20h 30, fui alertado pela população de que elementos da DGS tinham aberto fogo (…) Em face desta informação, dirigi-me para a rua António Maria Cardoso e fim de evitar mais derramamento de sangue. Foram enormes as dificuldades para [atingir] o local pois a população com o seu desejo de vingança e completamente fora de si impedia qualquer manobra. (…) A população pedia vingança e que se atacasse o edifício, em cujas janelas se viam alguns elementos da corporação. Verificando que a força era pequena para iniciar o cerco, ordenei a comparência de reforços que estavam junto ao Quartel do Carmo (…). Verificando [ainda] que as forças eram insuficientes, solicitei ao comando do Movimento instruções e reforços para fechar completamente o cerco. Como não foram recebidas ordens para um ataque que continuava a ser exigido pela população, este não foi realizado. Tentei explicar à população a nossa atitude. Após bastantes esforços, fui compreendido e, apesar de não arredarem pé, não interferiram, pedindo unicamente para não os deixarmos fugir. Durante o espaço de tempo que mediou [entre] a chegada das forças de RC3 ao local e a vinda de reforços, constituídos por dois destacamentos da Marinha (…), foram capturados doze elementos da DGS e abatido um que fugira ao dar-se-lhe ordem para se entregar».
Publicado em Almeida, Diniz de, Origem e Evolução do Movimento dos Capitães, Lisboa, Edições Sociais

Tratou-se do servente António Lage, um funcionário da DGS, de 32 anos, morto, pois, nessa situação.
Costa Correia recorda que as forças sob o seu comando, chegadas à sede da PIDE, após os «assassinatos de civis e os feridos causados», eram compostas por um destacamento de fuzileiros especiais e uma companhia de fuzileiros.
«Fizemos o cerco em coordenação com as forças do Regimento de Cavalaria de Estremoz que já lá estava. Tinham pouca gente, por isso combinámos que eles ficariam na parte das traseiras e nós na parte mais dianteira”. O cenário era “de alguma calma durante a noite, mas com populares inquietos com o facto de a PIDE ainda não estar ocupada», lembra Costa Correia.
Perguntando a Costa Correia se não havia agitação pelo facto de terem morrido várias pessoas, este responde: 
«Sim, isso sim. Mas tenho a impressão que muitas pessoas tinham ido para casa ouvir as comunicações e as notícias. Não havia muitos populares na rua naquela noite. De manhã, depois, começou a haver muito mais».
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... e isto é pouco correto pois um comandante chegou ao local da PIDE já noite escura do 25 (diziam que estava a jantar…) e já lá estava nas traseiras da PIDE uma Chaimite, e um pelotão na frente (o tal servente da PIDE já tinha sido abatido antes!), onde tinham na mira das armas uma dúzia de pides nos degraus da porta, este comandante chega ao local a pé e ao meu lado sacou dum revolver à cintura, não usava a Walther… deu um berro 
à minha ordem manda avançar um a um para revistar, ao mínimo movimento suspeito fogo à matar”, 
os pides foram um a um encostados ao muro em frente debaixo de triangulação de atiradores, nesse momento fomos empurrados pelas G3 dos soldados a evacuar os civis… os fuzileiros só chegaram no dia seguinte!

Estive em perigo de vida sem o saber - a Chaimite estava nas traseiras provavelmente para evacuar alguém… como no Carmo!

Provável suspeito de pertencer à PIDE é rodeado por espingardas.
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quinta-feira, 25 de abril de 2019

Do 11 de Setembro ao 25 de Abril

25 de Abril.
Este dia é comemorado em Itália como dia da libertação do "nazi-fascismo", já que nessa data em 1945, Milão e Turim caíram do controlo alemão, e três dias depois Veneza e toda a Itália ficava liberta da presença nazi. Coincide ainda com a comemoração veneziana do dia de São Marcos, de que aqui falámos ainda sobre a festa do botão de rosa
Festa do botão (bocolo) de São Marcos
Tradizione centenaria vuole che il 25 aprile a Venezia, festa di san Marco (che dal dopoguerra casualmente coincide con la festa della Liberazione dell'Italia dal nazifascismo), a fidanzate e mogli venga offerto un bocciolo (in veneto bòcolo) di rosa rossa, in segno d'amore.
 
Cartaz anunciado o 25 de Abril em Itália. Praça de São Marcos com um bocolo humano.

Convém notar que no cartaz vemos a papoila, e não se prende aqui com o Anzac Day, lembrança do desembarque em Gallipoli, em 25 de Abril de 1915... de que aqui também falámos, e que tem como flores associadas a papoila ou o cravo vermelho.

Coincidência notável, de Gallipoli a Veneza, da Itália a Portugal, passando por Londres, ou Viena, o 25 de Abril guardou as suas flores, papoilas ou cravos vermelhos.

Ainda me lembro que a acompanhar o ramo de flores em Maio era questão crucial acompanhar o ramalhete com uma papoila. Se na altura era vista como símbolo de liberdade, creio que só o percebi depois, talvez ao tempo de perceber que de outras papoilas saía ópio, invocando outras libertações de espírito. 

11 de Setembro.
Em 11 de Setembro de 1973, a CIA supervisionou o golpe de estado no Chile, que colocou o general Pinochet no poder, terminando no mesmo dia com o suicídio do presidente eleito, Salvador Allende.
Como é bem sabido, se havia coisa que estava bem presente na cabeça dos portugueses, era o carácter letal, e fora de controlo, a que este tipo de movimentações dava lugar.
 
Salvador Allende tentando escapar ao golpe. Bombardeamento do palácio presidencial. Pose de Augusto Pinochet. 

Também neste caso temos uma data que liga diversas lembranças, mais pelo aspecto sombrio. Desde a fracassada independência catalã, em Barcelona, ao golpe de estado no Chile, até aos atentados de Nova Iorque. A esta data não se associariam flores...

Do 11 de Setembro ao 25 de Abril, em sete meses, o que mudaria seria quase uma inversão.
De um golpe que tirava um governo eleito e colocava uma ditadura militar, para um golpe que retirava uma ditadura e pretendia colocar um governo eleito. 
Na América do Sul, seguir-se-iam movimentações destinadas a cimentar ditaduras militares, através da chamada Operação Condor, enquanto a Europa da NATO veria cair as últimas ditaduras existentes (Portugal, Grécia, Espanha).

Como se conjugavam eventos tão díspares e quase de sinal contrário?
Em 1973 a Inglaterra entrava na CEE, juntamente com a Irlanda e a Dinamarca. A CEE passava de 6 a 9 países. Os 3 próximos países prontos a entrar vão ser justamente os que saem desse regime ditatorial, ou seja, a Grécia, Portugal e Espanha. O novo crescimento da CEE, já UE, dá-se com a entrada da Suécia, Finlândia e Áustria. A UE está assim pronta para acolher os restantes países, acabadinhos de sair do Pacto de Varsóvia. Ou seja, no lado europeu, provavelmente sob orientação inglesa, procurou-se evitar conflitos e fazer transições democráticas pacíficas... tendo colapsado apenas no caso da dissolução jugoslava.
No lado sul-americano, a estratégia foi bem diferente, e a estratégia terá ficado a cargo da linha mais dura da CIA, a linha do 11 de Setembro. Com a queda do muro de Berlim, a necessidade de apoio aos regimes ditatoriais sul-americanos, foi-se desvanecendo, ainda que Cuba continuasse a influenciar os movimentos comunistas.
No final dos anos 90, na transição para o novo milénio, não havia razões para manter a especulação financeira, que tinha servido e sido especialmente eficaz para destruir a economia soviética. Excepto que, uma vez criado o monstro financeiro, ele decidiu justificar a sua existência, nem que para isso fosse preciso criar um perigo efectivo de terrorismo, conhecido como... 11 de Setembro.

terça-feira, 23 de abril de 2019

O elefante na sala: a NATO no 25 de Abril.

Quando em Fevereiro de 1975, o porta-aviões USS Saratoga estacionou em Lisboa, praticamente em frente ao Palácio de Belém, ninguém teve muitas dúvidas de que havia um significado político e militar na presença da frota americana na capital, mesmo disfarçada no enquadramento da operação Locked Gate ("Portão Fechado") da STANAVFORLANT, ou seja da NATO.

Fevereiro de 1975 - o porta-aviões USS Saratoga estacionado no Tejo, em Lisboa. (Jacarandá - foto)

O ano de 1975, do 11 de Março até ao 25 de Novembro, foi crescendo para o chamado Verão Quente do PREC (processo revolucionário em curso), onde a população sentia que o caminho político poderia tomar o sentido de uma ameaça vermelha, conforme fazia capa a Time em 11/08/1975, onde curiosamente chamava 
Lisbon's Troika
... ao conjunto Otelo Saraiva de Carvalho (MFA), Vasco Gonçalves (primeiro-ministro) e Francisco da Costa Gomes (presidente da república).

Por isso, lembro bem que, apesar da imprensa tentar ignorar a presença do USS Saratoga, o que se falava na altura é que os EUA estariam dispostos a intervir militarmente se a política portuguesa evoluísse para uma proximidade do bloco soviético. Havia quem achasse que uma invasão americana resolveria o problema, e poucos estavam importados com a independência nacional, diga-se. As "mocas de Rio Maior" eram brandidas para explicitar que a província não estava alinhada com as manifestações do PCP, e a presença americana só foi incómoda para as alas da extrema esquerda, maoístas, trotskistas ou leninistas.
Foram desta altura muitos murais que se viam em Lisboa, pedindo a saída da NATO, e por outro lado, a NATO perdendo a confiança no regime português, ponderou mesmo expulsar Portugal.

Vem este assunto a propósito das comemorações dos 45 anos do 25 de Abril.
Mais uma vez, pratica-se uma farsa ritual que cheira a mofo, onde se vão buscar alguns dos chamados "capitães de Abril", e onde basicamente as gerações seguintes agradecem a coragem, ousadia, etc...

Há 3 anos, deixei aqui um bom postal que relatava a participação da NATO:


Quantas referências existem na internet sobre a presença dos navios da NATO no 25 de Abril?
Tirando os artigos originais no facebook de Carlos S. Silva, e aquele que deixei, não aparece rigorosamente mais nada! 
No entanto, está bem documentado que a frota da NATO chegou a 23 de Abril e saiu a 25 de Abril. 
Como se ignora o elefante na sala?
- Não se fala dele. 
Podemos tentar procurar no Wikileaks, mas como é óbvio, nos documentos diplomáticos só aparecem as trivialidades conhecidas, reportadas pelos informadores locais.

Há um excelente artigo no Tony Seed's Blog, publicado este ano. Fala de Amílcar Cabral, mas como é um grande artigo, fala do enquadramento do 25 de Abril, da participação das forças navais do Canadá no golpe, e depois no apoio às operações de descolonização, expressando mesmo que o apoio canadiano teria visado esses interesses africanos.
É por exemplo interessante, ao revelar todo o enquadramento da Aginter na operação Gladio da NATO, e explica como a fabricação do Partido Socialista foi feita "de um dia para o outro", com a injecção de 10 milhões de dólares do SPD alemão (via Willy Brandt) e de um montante não revelado por parte da CIA.
"In 1974, when the fifty-year-old fascist regime was overthrown in Portugal, a NATO member, communists and left-wing military officers took charge of the government. At that time the Portuguese social democrats, known as the Socialist Party, could hardly have numbered enough for a poker game, and they all lived in Paris (Mário Soares) and had no following in Portugal. Thanks to at least $10 million from the Ebert Stiftung plus funds from the CIA, the social democrats came back to Portugal, built a party overnight, saw it mushroom, and within a few years the Socialist Party became the governing party of Portugal. The left was relegated to the sidelines in disarray.” 
(Philip Agee, “Terrorism and Civil Society: The Instruments of US Policy in Cuba.” August 9, 2003)

Faltaria dizer aqui que deverá ter sido crucial o uso da maçonaria, o GOL, que adoptou o PS, e Mário Soares, como rosto principal de uma nova política. Mário Soares, que tinha tido uma votação insignificante em 1969, pela CEUD, ganha toda a cobertura mediática para rivalizar com a chegada de Álvaro Cunhal, ambos vindos de Paris, com as cegonhas, para o 1º Maio, comemorado então em conjunto.

O que se terá passado?
Para efeitos de organizar a cabeça com estas e outras informações, uma hipótese que considero é a seguinte.
1º) Após as eleições de 1969 e até 1973 a política de Marcelo Caetano não mudou tanto quanto desejariam os seus aliados da NATO, especialmente no sentido de uma descolonização. A visita mal sucedida a Inglaterra em 1973 terá ditado o fim breve do regime.
2º) A partir de 1973 começariam a ser feitos os preparativos para um MFA. O primeiro sinal que os militares julgam surgir é o da publicação do livro de Spínola em Março de 1974. Mas nem o levantamento do Quartel da Caldas, a 16 de Março, terá precipitado as coisas, pois nem a ovação feita a Caetano no clássico Sporting-Benfica, fariam Marcelo Caetano suspeitar de que haveria repetição do levantamento a 25 de Abril. No entanto, nos bastidores, os preparativos continuavam a acelerar para a chegada da força naval da NATO.
3º) A movimentação das tropas em resposta ao 16 de Março terá servido para entender como seria depois a resposta no 25 de Abril. Quando as forças da NATO chegam para o exercício conjunto a 23 de Abril, toda a logística será tratada, com um envolvimento de um número mínimo de "capitães". A maioria saberia da benção externa, e de uma eventual cobertura caso as coisas corressem mal.
4º) O papel principal da NATO foi de força de dissuasão. O exercício "Dawn Patrol" a ter lugar exactamente no dia 25 de Abril, envolvia meios navais e aéreos. Por isso, esses meios não puderam ser usados pelo regime, pois isso comprometeria as tropas estrangeiras em solo português. Tudo assim se limitaria a uma movimentação clássica do exército, especialmente das tropas estacionadas próximo de Lisboa, que na sua boa maioria tinham sido arregimentadas favoravelmente à revolução.
5º) Temos assim uma situação invulgar de conflito, em que não se envolvem nem meios aéreos, nem meios navais, já que a fragata Gago Coutinho, que iria participar no exercício, acaba por se ver impossibilitada de agir contra as tropas de Salgueiro Maia, pela própria resolução de desafio adoptada pela fragata canadiana Assiniboine.

Consequências
A operação no 25 de Abril foi invulgar, porque ao contrário do habitual, usou-se muito mais cabeça do que força, e serviu como preliminar para as mudanças de regime que logo de seguida se vieram a verificar na Grécia e em Espanha. Toda a mudança de regime que se verificou com a queda do muro de Berlim, ou até com os levantamentos de tropas contra Gorbashev, tiveram o mesmo cuidado de evitar ao máximo qualquer efectivo uso de violência. Só a dissolução da Jugoslávia acabou por cair fora desse cenário razoavelmente pacífico. 
Se esta operação tivesse sido levada pela NATO em qualquer outro país, então Portugal, tal como os restantes países europeus, teria feito uma transição para o regime "democrático", nos anos 1980-90.
No caso espanhol bastou o exemplo português para contaminar essa transição, sem qualquer contexto militar. Ou seja, o plano estava pronto para ser posto em marcha, e foi aplicado de forma exemplar em Portugal... mas sem a benção e presença da NATO, os camaradas Óscar, Bravo, Tango, etc... teriam tido a mesma sorte que os anteriores - seriam simplesmente presos.

NEVER UNPREPARED

domingo, 21 de abril de 2019

Ser humano. Ser o mano.

Os dois últimos postais foram sobre os manos e sobre humanos.

Se há coisa a que os seres humanos não são poupados, é à perspectiva de um pior horror.

Relembro aqui o postal Casanova e as velhas causas, que também tratava dos dois assuntos, e em particular da penosa execução que sofreu Damiens, acusado de tentativa de regicídio em 1757. Também em Portugal, o nosso bom maçónico Marquês decidiu exercer a sua crueldade pública nos Távoras, logo de seguida, em 1758.
O que podemos ver é que o aumento do conhecimento científico não serve para maior empatia, serve também para infligir maior sofrimento. Se Brunilda pode ter sido poupada ao uso de ácidos, Damiens não foi porque a ciência os vulgarizara.

Alguém soube de algo que tivesse inibido a crueldade latente?
- Não me parece. Se o exemplo cristão procurou ensinar a resposta não violenta contra a violência, isso não inibiu a Igreja de ser crédula na crueldade, trazendo mais inferno sob pretexto de nos querer livrar dele.

Creio que a Divina Comédia, de Dante, ficou famosa porque abriu novos níveis de inferno.
Uma tentativa de explicitar maiores horrores, nesse caso eternos, para que aos párocos cristãos não faltasse imaginação tenebrosa para converter fiéis pelo medo. 

Na arte, de Bosch a Munch, com quinhentos anos de diferença, vemos uma mesma tentativa de impressionar, de tornar desconfortável, a posição do espectador.

 
O grito. Edvard Munch (1893). A visão de Tondalys por Hieronimus Bosch ou seguidor (c. 1485)

Da literatura ao cinema, sempre que houve oportunidade, foi dada toda a liberdade ao horror, ao terror, à sua presença no nosso imaginário, até das formas mais sinistras que foram pensadas. Nem sequer as crianças eram a isso poupadas, com contos infantis onde as mais desprevenidas tanto podiam ser o repasto de lobos como de bruxas.

Poderá dizer-se que fomos poupados a alguns registos ainda mais tenebrosos, mas esse é sempre o epílogo do horror - afirma-se poder ser pior que o pior conhecido. No fundo, uma trivialidade também aplicável à ignorância dos intelectuais. 
Ou, como no filme "Contacto", não se fala dos horrores que conhecemos, fala-se dos horrores que desconhecemos, isto acerca da cápsula de cianeto (supostamente dada aos astronautas):
«There are a thousand reasons we can think of for the occupant of the machine to have this with them [cyanide pill] - but mostly it's for the reasons we can't think of.»
As religiões cobram na Terra a entrada para o Paraíso celeste.
Como factor persuasivo, ameaçam com infernos mais tenebrosos que os terrenos.
A perspectiva infernal serviu como seguro de obediência e bom comportamento terreno.
Repare-se como a morte foi excluída, enquanto saída intermédia, proibindo o suicídio.

Nada seria mais socialmente perigoso do que alguém sem medo de morrer. 
Assim a religião não serviu apenas para combater o medo da morte, serviu para combater a falta de medo perante a morte, com a promessa de castigo eterno.

Enfado, em fado
Aquilo que é negligenciado, por falta de reflexão, é que o pior fado é o enfado.
A pior situação não é uma de que podemos sair, vivos ou mortos, é a aquela de que não podemos sair.
O pior Inferno é condenar alguém a ser Deus.
O Deus idealizado ficaria no permanente enfado de conhecer o seu fado.

O problema destas questões teológicas ou filosóficas, é que as falhas e contradições evidentes são varridas para baixo do tapete. Uma retórica grande e nula vai servindo para evitar a simples lógica.
"Alguém que conhece tudo..." é uma noção inexistente, porque inevitavelmente essa entidade desconheceria o desconhecimento. "Alguém que pode tudo..." seria outra, porque nesse caso nunca provaria ser capaz de se tornar eternamente impotente. 
A religião cristã poderá ter pensado resolver estes problemas óbvios, com uma dualidade homem-deus em Cristo, e a sua junção num mistério da trindade. Enquanto homem teria exeprimentado o desconhecimento e a impotência. Mas ninguém experimenta ser impotente sabendo a priori que não o é. Quanto a identificar dois a um, confundir a diferença na igualdade, é o mesmo que recusar o raciocínio. Chutar tudo isso para mistério é apenas a retórica na sua plena nulidade.

Há com efeito um eterno perigo, que é o perigo do enfadamento.
Quando o espírito começa a desprezar o detalhe, ao ponto de não se interessar por nada, então começará a aparecer uma sede do desconhecido. Porque se tudo passar a ser entendido como previsível e óbvio, então a falta de imprevisibilidade começará a aparecer como uma seca no espírito. 
Até neste ponto, a língua portuguesa ao usar a expressão "... isso é uma seca!" revela um aviso de sede, que normalmente é remetido ao emissor, ou que também pode ser falta de abertura do receptor para a novidade ou para a complexidade.

O enfado ocorre, por exemplo, quando mesmo que um emissor mude muito a emissão, considera o que recepciona como sendo praticamente o mesmo. É a situação típica em que há sucessivas reclamações contra uma prepotência, sem qualquer efeito. Por muita razão que o reclamante tenha, o sistema ignora-o sucessivamente. Nalguns casos, o reclamante exaspera ao ponto de recorrer a medidas mais drásticas, que podem incluir terror.
Por exemplo, os judeus zionistas reclamavam pelo estado de Israel, e não o conseguindo de outra forma, recorreram a atentados terroristas. Depois, de forma similar, os palestianos reclamaram contra Israel, e considerando que não estavam a ser ouvidos, recorreram a atentados terroristas...

Quando o indivíduo se dedica e concentra num objectivo, tende a tomar toda a recepção interpretada nesse propósito.
Se não consegue ser ouvido por via pacífica, tende a usar cada vez acções mais drásticas.
Numa sociedade que quer ignorar ou descartar discordâncias, esse será um caminho frequente.


Necessidade de horror?
Será pergunta no passado, porque a continuação parece opcional.
A pergunta pode ser colocada no sentido oposto... ou seja, poderia não ocorrer?

elencámos situações em que a natureza exerce o seu horror de forma cruel, quando serve uns animais como repasto a outros, ou como os faz perecer de fome, sede, etc. Sabendo o que sabemos, a esta possibilidade bastava ser possível, para nada haver que a impedisse de acontecer.

O espírito humano ao adquirir a possibilidade de fabricar coisas positivas, nada tinha que o impedisse de aproveitar essa fabricação, essa mesma genialidade, para o lado negativo, para o lado sombrio.

Podemos requerer uma empatia humana sempre presente, mas a natureza desafia toda a empatia, quando a ausência dela é uma possibilidade igualmente viável.
Aliás, houve casos em que uma maneira de combater o horror foi ficar completamente insensível a ele, foi aprender a viver com ele. Simplesmente essa falta de empatia para com o próximo, acaba por não ter sucesso social, porque é uma recusa de entendimento social.

A irmandade da humanidade, apesar de ser falsificada, com objectivos apaziguadores e inibidores para uns, e proveitosos para outros, teve a virtude de se tornar uma noção consensual no politicamente correcto.
Simplesmente essa irmandade será sempre desafiada, enquanto for aquilo que é... um projecto utópico localizado sem qualquer substrato ou vontade de implementação global.

Enquanto o uso de terror ou horror continuar a funcionarn uma lógica de causa-efeito, não há qualquer razão para desaparecer. Se nem tão pouco poderia desaparecer como fenómeno pontual, ilógico, e imprevisível, muito menos irá desaparecer enquanto fenómeno produtivo que pode provocar uma reacção quando outra não tem viabilidade de acontecer.

Ou seja, a necessidade de horror será tanto maior quanto a sociedade, dominada por alguns "irmãos" se for tornando cada vez mais cega e surda às mensagens enviadas pelos outros.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Brunilda, de princesa a mito

Já aqui mencionei a história de Brunilda, mas o registo é tão singular que merece nova dedicatória.

Em poucas palavras, Brunilda foi uma princesa visigoda, nascida em Toledo, circa 543 d.C.
Casou-se com o rei da Austrásia, Sigeberto, e envolveu-se numa brutal luta de poder com a mulher do rei da Neustria, de nome Fridegonda. Viveu setenta anos, e tentou assegurar a sucessão do filho, netos, e bisneto, acabando finalmente às mãos do filho de Fridegonda, Clotário II, em 613 d.C. 
O ódio remanescente era tal que Clotário II decidiu pela sua execução brutal, primeiro entregando-a às exigências das suas tropas durante 3 dias, e depois sendo esquartejada ou arrastada por cavalos.

A execução de Brunilda (iluminura do Séc. XV)

Falo deste tema, porque ao ver as moedas ibéricas, deparei com uma do rei visigodo Gundemar.
Moeda de ouro de Gundemar, rei visigodo (610-612)

A cidade de Gondomar, com grande tradição no ouro, tem o seu nome herdado deste antigo rei, que assassinou o predecessor (Viterico), e foi hostil a Brunilda.

Esta moeda, e as seguintes, servem também para notar como, de um momento para o outro, as perfeitas caras de desenhos romanos, passaram a dar lugar a coroas com bonecos de crianças.

Mas o nome de Brunilda foi de tal maneira forte, que se foi quase esquecido oficialmente, foi-se impondo pela mitologia, em histórias alternativas, que bebiam em parte do original. Na saga dos Nibelungos passou a nome mítico de rainha da Islândia, foi valquíria na mitologia nórdica, tendo ficado imortalizada com Siegfried na obra prima de Wagner - o Anel dos Nibelungos.
Götterdämmerung - última parte do Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner.
Interpretação de Gwyneth Jones como Brunilda, em 1979 (direcção de P. Boulez).

Desde o "Senhor dos Anéis" até à mais recente série popular "Guerra dos Tronos", todos acabam por ir beber ao mítico ambiente primevo medieval, um ambiente algo sinistro em que a original Brunilda foi uma das protagonistas principais.

A ideia de uma rainha, forte e bela como uma valquíria, trouxe a protagonista até para a banda desenhada da Marvel, e chegou a filme, enquanto rainha islandesa (Kristanna Loken interpretou o papel de Brunilda no filme alemão "Dark Kingdom: The Dragon King", inspirado no Anel dos Nibelungos).

A primeva sociedade medieval, completamente abalada pela queda do Império Romano ocidental, pouco mais tinha que um século quando a história de Brunilda a marcou profundamente.
Chegou-nos ainda a história concorrente do Rei Artur, de Guinevere e Lancelot, mas aqui as coisas chegam a um nível bem mais complicado.

O ambiente é a França merovíngia, em que Childerico se torna o seu primeiro rei, já que o seu pai Meroveu tem uma existência semi-lendária. É através de Childerico e do seu filho Clóvis que se funda a dinastia merovíngia.
Anel e selo de Childerico I (CHILDIRICI REGIS), o primeiro rei merovíngio.
Não é de excluir que a herança deste Anel pudesse ser relevante na história.

A França é unida por Clóvis I, mas dividida pelos filhos na sua sucessão.
Um deles, Clotário I, acaba por reunir o território às expensas de guerras contra os irmãos, mas de novo, na sua sucessão, a França é dividida entre os filhos, e a guerra renasce.
Moeda de prata de Clotário I (CHLOTHAHIRIVI).

De um lado teremos Chilperico, rei da Neustria (Soissons), do outro Sigeberto, rei da Austrásia (Metz), e a meio o irmão Gontrão, rei da Burgundia (Borgonha, Orléans), para além de outro irmão, rei de Paris, que morre cedo.
 

Esq: Moeda de ouro de Chilperico (CHILPRCVS RES). Dir: Moeda de ouro de Gontrão, rei da Borgonha (Burgúndia).

Desde o início Chilperico tenta sem sucesso invadir os reinos dos irmãos.
Ao contrário da tradição de poligamia merovíngia, Sigeberto decide casar com Brunilda, princesa visigoda, e rapidamente reconhecida como rainha de grande inteligência... ou ardil.
Chilperico, com alguma inveja, decide imitar o irmão, e casa com Galsuinta, irmã de Brunilda, prometendo deixar a poligamia, que mantera com Audovera e Fridegonda (entre outras).

Casamento de Brunilda com Sigeberto (crónica do Séc. XV), e moeda de Sigeberto.

No entanto, por instigação de Fridegonda, Galsuinta é assassinada em 569, o que naturalmente causa uma ira permanente na irmã Brunilda e, assim, em Sigeberto. Seguem-se 40 anos de guerra civil entre a Neustria e a Austrásia, resultado do ódio entre Fridegonda e Brunilda.

Se Chilperico contou no início com o apoio do irmão Gontrão, depois e até à sua morte, Gontrão será aliado de Brunilda (e será mesmo elevado ao estatuto de São Gontrão pela Igreja).
Nas diversas batalhas contra Chilperico, os reis Sigeberto ou Gontrão saem vencedores, deixando a Neustria numa posição cada vez mais fragilizada.
Numa tentativa de invasão da Austrásia em 573, o filho mais velho de Chilperico e Audovera (Teodoberto) é morto em batalha, deixando a situação mais complicada.

Em 575 Chilperico está derrotado e Sigeberto consegue a subsmissão dos vassalos da Neustria, mas logo após ser consagrado rei da Neustria, é assassinado por homens a mando de Fridegonda.

Nesta novela digna de série de sucesso, a situação acaba por se inverter, já que o filho de Sigeberto tem apenas 5 anos de idade.
Chilperico consegue assim retomar o seu reino, e a posição de fraqueza passa para a Austrásia.

1ª Regência - filho
Brunilda, agora viúva, é regente na menoridade do filho Childeberto, mas vê-se confrontada pelos nobres da Austrásia.
Como Fridegonda se movia no sentido de eliminar os filhos de Chilperico com Audovera, Brunilda acaba por casar estrategicamente com o sobrinho Meroveu, que seria herdeiro da Neustria. Sendo uma união entre tia e sobrinho, apesar de não ser consanguínea, é ainda provocatória.
Gera-se uma guerra entre o pai Chilperico e esse filho, Meroveu, que é derrotado e fugindo em 578 suicida-se, assistido pelo seu servo.

Brunilda volta-se então para o apoio do cunhado Gontrão, que não tem herdeiros, acabando por conseguir que este declare Childeberto como seu sucessor na Burgundia.

Moeda de Childeberto II, filho de Brunilda.

Em 583, Childeberto faz 13 anos e é consagrado rei, terminando a regência de Brunilda.
Em 584, talvez a mando de Brunilda, Chilperico é assassinado, sendo sucedido por Clotário II, seu filho com Fridegonda,
Em 592 ao morrer Gontrão, Childeberto acaba por juntar os reinos da Austrásia e Burgundia.

2ª Regência - netos
Childeberto, morre novo, com 25 anos (em 595), e tendo dois filhos, um deles (Teodoberto II) herda a Austrásia, enquanto o outro (Teodorico II) herda a Burgundia.
Moeda de Teodoberto II (THEODOBERT), neto de Brunilda.

Ambos são pequenos, e Brunilda acumula a regência dos reinos dos netos (Austrásia e Burgundia).
Em 597 morre a rival Fridegonda, que Brunilda associava à morte do marido e do filho, e que esteve ainda associada a uma infindável série de assassinatos internos na Neustria, inclusivé de bispos, e até da tentiva de matar a própria filha.
Durante algum tempo refugiou-se com o filho em Notre-Dame e conseguiu a protecção do cunhado, Gontrão. Num típico volte-face, pouco tempo depois, tentará assassiná-lo...
O ódio de Fridegonda contra Brunilda seria herdado com zelo pelo seu filho Clotário II.
Túmulo de Fridegonda em Saint-Denis

Crónica e repetida situação, a rivalidade entre irmãos.
Após a maioridade, Teodoberto expulsa a avó da Austrásia, e assim também os seus dois netos entram em guerra, agora com Brunilda refugiada junto de Teodorico, na Burgundia.

Brunilda liga-se então a um novo amante, Protadius, que ela consegue elevar à posição mordomo do palácio borgonhês (um equivalente a primeiro-ministro), preparando uma armadilha mortal ao anterior. Protadius leva Teodorico a invadir a Austrásia, mas acaba morto em 606 numa conspiração dos nobres que queriam a paz entre os irmãos, liderada pelo duque da Suábia. Por sua vez, Brunilda manda-lhe cortar os pés e o duque acabará morto.

O conflito entre os netos de Brunilda não cessa, e Teodoberto II, após perder a guerra contra o irmão, acaba por ser assassinado em 612 com o seu filho, a mando do irmão ou da avó. Mas também Teodorico II acaba por morrer, e em 613 é o seu filho, Sigeberto, bisneto de Brunilda que herda o trono da Burgundia e da Austrásia.

3ª Regência - bisneto
Já com setenta anos, Brunilda vê-se de novo como regente, pela menoridade de Sigeberto II.
Mas desta vez os mordomos dos palácios da Burgundia e da Austrásia não querem ter de novo Brunilda a influenciar o bisneto, e aliam-se a Clotário II, o filho de Fridegonda, rei da Neustria.
Clotário II, Rei da Neustria, e em 613 de toda a França.

É finalmente a oportunidade de Clotário II reunir os reinos sob seu comando, livrando-se logo da descendência de Brunilda, e culpando-a da morte de dez reis, inclusive dos herdeiros que ele mandou matar. A execução de Brunilda, pela brutalidade, terá sido provável promessa à sua mãe Fridegonda.

Durante 3 dias Brunilda é entregue às sevícias das tropas de Clotário II e depois é executada, ou sendo arrastada por um cavalo, ou sendo separada por vários cavalos. O corpo desmembrado é depois queimado, guardando-se apenas as cinzas.

Terminava assim a história de uma princesa espanhola, a loura visigoda nascida em Toledo no cristianismo ariano, convertida no casamento ao cristianismo papal, e regente competente durante a menoridade do filho, dos netos, e do bisneto.
Como Clotário II saiu vencedor desta guerra civil inciada entre a sua mãe Fridegonda e Brunilda, não terá querido que ficasse nenhum registo digno desse nome que honrasse as proezas e ardis de Brunilda.

Esse terá sido o primeiro passo para que o nome e a história de Brunilda tivessem atingido o estatuto mítico, passando mesmo para um panteão semidivino, na figuração do seu nome enquanto valquíria. Sobreviveu ainda no mito o amor inicial de Sigeberto (escrito depois como Siegfried ou Sigurd). Também o nome de Gontrão (Guntram) acaba por poder ser associado no mito nibelungo a Gunther.
Os nomes dos opositores acabam por ser ignorados ou alterados no registo mitológico.

Existiu uma família nobre Nibelungida, associada a um nobre que foi historiador posterior, de nome Nibelungo, que terá continuado um relato burgundio de 642 chamado Crónica de Fredegário.
Porém, o termo Nibelungo (ou Gibichung) seria associado à casa real da Burgundia.
A lenda da Canção dos Nibelungos remete depois a uma destruição dessa casa pelos Hunos de Átila (Etzel), o que aqui corresponderia a uma fabricação temporal, já que essa presença huna tinha ocorrido no século anterior ao nascimento de Brunilda.

Se procurarmos algum nexo na mitologia desenvolvida, ao mesmo tempo que Brunilda era morta em suplício, estaria Maomé recebendo as primeiras palavras de Alá. Não foi a nobreza burgundia a ser destruída um século depois pela invasão árabe, mas sim a nobreza visigoda, de onde era orginária Brunilda.
Quer a anterior invasão huna, quer a posterior invasão árabe, deixaram profundas marcas na Europa medieval, e enquanto invasões externas, ou bárbaras, poderiam ser confundidas, sendo mais comum no europeu central a lembrança huna do que a lembrança árabe (que foi repelida com sucesso em Poitiers por Carlos Martel).
Também, e de alguma forma retendo apenas um lado da história, a Brunilda do mito será sempre jovem, ficando a ideia de que o enredo da lenda prefere reter a personagem até ao momento em que Sigeberto é morto, esquecendo as suas tribulações posteriores. Numa especulação mais solta poderemos entender que Fafnir, o dragão morto por Siegfried, poderia ser uma eventual invocação da morte do filho de Chilperico.

Este é um caso em que a história factual, muito baseada no registo de Gregório de Tours, ultrapassa em complexidade os contornos de uma ficção mitológica muito simplificada.