quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

dos Comentários (44) a Antárctida e o Canado

Coloco aqui dois comentários de Djorge, com umas pequenas observações adicionais


(1) Comentário sobre a Antárctida    ____________________________________________
Mais uma preciosidade que encontrei num "outro" mapa de Dieppe, que penso, ainda não ter sido mencionado aqui no seu blog.

Trata-se de:


Titre : [Mappemonde en deux hémisphères] Ceste Carte Fut pourtraicte en toute perfection Tant de Latitude que Longitude Par moy Guillaume Le Testu Pillotte Royal Natif de La ville Françoise de grace... et fut achevé le 23e jour de May 1566 Auteur : Le Testu, Guillaume (1509-1572). Cartographe Date d'édition : 1566
Existente na BNF com o link: 

Ora, até ao momento, a cópia que tinha visto, não permitia zoom suficiente que desse para ler o texto na caixa sobre o território Austral "pacífico".
No entanto, uma pesquisa por outro tema, resultou num único link, mas com 2 versões do mesmo mapa, e, esse link que lhe apresento tem um nível de zoom superior e permite a leitura seguinte:

(...)
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Observação 1:
(coloco aqui a tradução que fiz)
Alguns portugueses indo às Indias foram por contrariedade do tempo transportados fortemente a sul, do Cabo da Boa Esperança. Os quais fizeram relatório que  eles teriam tido algum conhecimento desta Terra. Todavia por não haver esta descoberta "outramente" a hei somente e a notei não querendo juntar-lhe fé.
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Neste mapa, Guillaume Le Testu é particularmente cuidadoso, ou parece pretender ser, denotando saber que haveria muita informação falsa ou deturpada em circulação, e nos mapas. Nesse sentido, por várias vezes refere preferir não apresentar o contorno, por não ter certeza nas informações. Mesmo assim não deixa de apresentar a ilha fantasma "Maidas" no meio do Atlântico. O resultado é de um modo geral satisfatório, como seriam o de outros cartógrafos da época, mas não resolvendo minimamente o problema da Austrália, que é confundida ou misturada com a Antárctida.

Ver ainda o postal "E o rei Óscar vai para... um ponto na Antártida!" que cita Ramusio (1560):
... [o Rei de Portugal] não quer que se saiba nem esta nem muitas outras coisas. E sobretudo, é proibido navegar além do Cabo da Boa Esperança em linha direita na direcção do Pólo Antárctico, onde é opinião expressa de todos os pilotos portugueses que se via um grandissimo continente de terra firme, o qual corre levante e poente em redor do Pólo Antárctico. E dizem, que outra vez, um excelente homem de Florença, dito Amerigo Vespuccio com certos navios do dito Rei o encontrou e correu por um grande espaço, mas que depois foi declarado proibido que alguém aí possa andar.
... [o Rei de Portugal] nè vogliono che si sappian nè queste nè molte altre cose. & sopra tutto è vietato il poter navigar oltra il capo di Buona Speranza à dritta linea verso il polo Antartico, dove é opinione appresso tutti il pilotti Portoghesi chi vi sia un grandissimo continente di terra ferma, la qual corra levante & ponente sotto il polo Antartico. & dicono che altre volte uno eccellente huomo Fiorentino detto Amerigo Vespuccio con certe navi de i detti Re la trovò & scorse per grande spatio, ma che dapoi é stato prohibito che alcun vi possa andare.


(2) Comentário sobre o Canadá e o Canado    ________________________________________

Aqui tem o CANADO e a CANADA:

https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b7200390t/f94.item.r=atlas.zoom


O atlas está identificado da seguinte forma na BNF:

Titre : Theatrum orbis terrarum 
[De Mona druidum insula antiquitati suae restituta... epistola... Humberti Lhuyd... Synonymia locorum geographicorum, sive antiqua regionum... urbium... nomina, recentibus eorundem nominibus explicata... (a Arnoldo Mylio)] 
Auteur : Mylius, Arnold (géographe). 
Auteur du texte Auteur : Van Meetkercke, Adolf. 
Auteur du texte Éditeur : (Antverpiae) 
Date d'édition : 1571 
Contributeur : Ortelius, Abraham (1527-1598). 
Auteur du texte. Cartographe
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Observação 2:
Esta questão surgiu ainda num comentário anterior, quando Djorge sugeriu o seguinte:
Segundo o "Dictionnaire universel françois et latin" de 1758, na pag. 1635 Tomo Primeiro, temos a seguintes definições:
" C A N A D E - s.s. Nom que les Portugais donnent sur la mer à la mesure du vin, ou d'eau, qu'on donne par jour à chacun de ceux qui composent l'équipage. Il y a trois cents canades à chaque pipe. "
Do que conheço e pesquisei, seria mais CANADO que CANADE, mas ainda assim admito ser mais um francesismo de um termo Português. (...) somos quase que levados a pensar que alguém teria ensinado os Nativos a pedir vinho quando os Europeus chegavam.
Portanto, Djorge avançou com a possibilidade do termo "canado" referindo-se a essa quantidade de vinho fosse passado aos nativos, e que o uso desse novo nome, poderia ser referido pelos indígenas aos visitantes, pedindo esse vinho, acabando por ficar no novo baptismo da região, que passou de Terra dos Bacalhaus (ou Labrador), para Canadá.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Boss Bottled

Muitas pessoas sentem que têm queda... mas falta-lhes sítio onde cair.
O relato oposto é o dos que levaram milhares ou milhões consigo, na queda.

Há quatro figuras razoavelmente emblemáticas do processo de rápida ascensão e queda: 
- duas antigas, Alexandre e César, e duas modernas, Napoleão e Hitler.

É uma situação que se tende a repetir indefinidamente, e por isso merece alguma reflexão.
Episódios com fotos e filmes únicos da ascensão de Hitler.

Todos temos uma opinião crítica sobre o que está mal, não deveria acontecer ou poderia ser feito melhor. Na maioria dos indivíduos isto não chega ao ponto de pensar que podem ser eles a iniciar ou a protagonizar um movimento de mudança. Mas quando isso acontece, são ainda menos os que conseguem arranjar um número considerável de seguidores, capazes de os seguir no seu rumo.

As pessoas apenas se dão ao trabalho de seguir movimentos numa perspectiva egocêntrica, ou seja, pensando que esse movimento os levará a uma posição melhor. Como é óbvio, quem está bem não vê grande motivo em mudar, e só se mexe se sentir que a mudança traz algo de bom para si ou para a sua comunidade. Estes movimentos têm génese complicada ou mesmo improvável se a situação social é favorável, e uma génese facilitada em alturas de grandes conturbações sociais.

A ascensão de Hitler é um caso notável.
Poderíamos pensar que foi colocado no poder por interesses industriais alemães, e foi... mas não teria sido ele, um soldado e pintor com pouco sucesso, a escolha natural desses mesmos industriais.
São muitos os casos de empresas alemãs que participaram e beneficiaram dessa projecção hitleriana, passando depois a respeitáveis empresas no mercado internacional.
Alguns casos são mais ou menos conhecidos, como a IG Farben, AEG, VW, Porsche, Mercedes-Benz, BASF, Siemens, Thyssen, Bosch, Bayer AG, etc... os casos são tantos que seria mais fácil excluir as empresas alemãs que não estiveram envolvidas no projecto nazi. Deixo aqui um, que me surpreendeu, porque não tinha a Hugo Boss associada ao fabrico do fardamento das SS:
Hugo Boss: a moda em 1932, e 80 anos depois, em 2012. (img)

Que se refira sempre o assunto da 2ª Guerra Mundial com um grande drama sobre os crimes nazis, é uma coisa... que todas as empresas que sobreviveram ao regime, continuem a ostentar a mesma marca, e por vezes métodos semelhantes, pois isso é outra história, que não é conveniente misturar.

É nesse sentido que este caso, como tantos outros casos, foram engarrafados... ao estilo Boss Bottled é claro - success without integrity means nothing.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Sob o signo de Aquário

Começamos este signo de Aquário com o primeiro eclipse lunar que presenciei, por completo, e por mero acaso. Estava simplesmente na varanda, e a Lua começou a ser comida pela penumbra da Terra... é um fenómeno engraçado, vale a pena ser visto uma vez, mas não justifica ficar acordado.

Tinha começado este postal antes, e por isso o eclipse veio a propósito.
Basicamente tinha recolhido uma série de imagens de horóscopos, que remontam a tempos romanos, e que não tiveram praticamente nenhuma alteração, desde então.

Horóscopo com Apolo e a quadriga solar (Bonn RLM 67)

Se até aqui não falei sobre esta tradição astrológica, não é porque não lhe ache interesse, é apenas porque não retirei nenhuma conclusão que seja minimamente objectiva.
Como é óbvio, o nome das constelações nada tem a ver com o aspecto que as estrelas tomam no céu... no máximo isso poderia ser aplicável à Ursa Maior que é também conhecida como "Caçarola", e esse é o desenho mais significativo que pode ser visto por essas 6 estrelas brilhantes.

Assim, os nomes dos signos, que também se ligam a essas constelações, também nada têm a ver com qualquer desenho estelar. No entanto, como é claro, há uma tradição milenar que não deve ser negligenciada. A sua origem mais remota é colocada em 18 signos da Babilónia, a partir do compêndio MUL.APIN, que também começaria com o equinócio da Primavera, mas ao que parece, na Idade do Bronze, isso corresponderia ao nascimento das Pleiades no horizonte, ou seja, o primeiro signo seria Touro e não Aries. É previsto que esta mudança do signo do equinócio demore mais de 2 mil anos, pelo que a "era de Aquário", tão popular nos Anos 60, pela comunidade hippie, ou pelas suas remniscências New Age, falta-lhe muito para chegar!

Tratando-se essencialmente de um fenómeno social, definido por antigos astrólogos, e passado religiosamente aos seguintes, há aí um ponto comum de tradição ancestral que poderia significar algo. Mas o quê? Concretamente, há alguma razão significativa para a escolha de umas noções, ou palavras, e não de outras? Se pode fazer algum sentido a sequência Aquário-Peixes, já parece mais esquisita seguir com Carneiro e Touro, ou depois com Gémeos e Caranguejo... as noções são suficientemente díspares, para reterem algum espanto se quisermos dar a isso algum sentido racional, que parecem não ter.

Ainda pensei ver nesta lista uma lista de possíveis perigos humanitários, ou ciclos históricos que teriam ocorrido. No entanto, tudo parece demasiado frágil para se poder suster com alguma clareza e nexo. Deixo o exemplo de perigos, para que se entenda:

(i) Aquário - o perigo seria construir, ou isolar-se uma comunidade, por completo.
(ii) Peixes - neste caso, seria entendível o perigo de morder o anzol, para fora de pé.
(iii) Carneiro - mais ligado aos arietes, uma obstinação numa ideia até partir a cabeça.
(iv) Touro - uma investida em alvos de curta distância, perdendo visão do redor.
(v) Gémeos - tudo o que pode ser feito por um grupo, pode ser replicado por outro.
(vi) Caranguejo - a regressão, um caminho que sob aparência de avançar, remete a erros passados.
(vii) Leão - a ilusão de um domínio aparente, imposto sob medo.
(viii) Virgem - uma pretensa virtude impoluta, que pode ser também estagnação.
(ix) Balança - de novo o perigo de monotonia por excessiva tentativa de equilíbrio.
(x) Escorpião - o óbvio perigo do veneno que pode resultar de pisar indiscriminadamente.
(xi) Sagitário - pretender almejar alvos em movimento, deixa-nos colados à montada.
(xii) Capricórnio - outro perigo híbrido, entre uma virtude e uma obstinação.

Por outro lado, esta sequência poderia ainda representar épocas humanas, ou épocas mitológicas, correspondentes a períodos históricos bem específicos, mas isso torna ainda mais complicado fazer uma associação que não seja meramente uma especulação arbitrária. De facto, não consegui dos signos astrológicos retirar nada de muito concreto ou meramente assinalável.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Sam Vecente

No número 24 da Rua das Farinhas em Lisboa, mais precisamente no bairro da Mouraria, está uma antiga casa com uma laje, onde está um corvo representando São Vicente, estando escrito: 

"ƧAM VECẼTE"

 
Sam Vecente - Rua das Farinhas, nº 24 na Mouraria (ver aqui ou aqui)

De quando será este apontamento singular?
Bom há registos fotográficos de 1900 que mostram o local e podemos ver que em comparação com os dias de hoje, as modificações foram praticamente só de pintura e restauro.
 

Repare-se que as pedras, varandas e janelas são exactamente as mesmas. O ferro das varandas deve estar ali há séculos e não apenas há um... há muitos! Na imagem de 1900 o corvo mal se vê, só se nota o relevo, pois foi pintado por cima. As pessoas, mesmo algumas sendo crianças, parecem demasiado pequenas.

Transcrevo a citação do blog Lisboa de Antigamente, que remete para o livro "Legendas de Lisboa" (pág. 80-81) de Norberto de Araújo:
Conserva o sítio de S. Cristóvão, no meio do seu encanto de pitoresco alfacinha, uma pedra esculpida que representa um corvo da nau da heráldica olisiponense. Tem este corvo movimento, pisar lesto e olho alerta; sobre a sua silhueta fina lê-se ƧAM VECẼTE.
Neste muito alfacinha bairro de S. Cristóvão, vizinho da Madalena e da Mouraria, no sopé dos muros do Castelo, com os seus becos das Flores, os seus largos da Achada, de cazitas de andar de ressalto e janelas ogivais, e dos Trigueiros, fantasia do acaso urbanista, com a Rua das Fontaínhas e o Largo da Rosa — a pedra do corvo de S. Vicente do prédio de empena de bico, n.° 22 [n.º 24] da Rua das das Farinhas, é uma preciosidade de pitoresco.
Nada em Lisboa assim. Deve ter sido o prédio foreiro aos cónegos regrantes de Santo Agostinho. O foro passou; o corvo não.
imagens que mostram o corvo pintado de preto, e o prédio pode ter pago foro aos cónegos pretos ou crúzios, mas isso leva-nos justamente a um tempo remoto, seguinte à conquista de Lisboa.
Também a forma da escrita aponta para séculos XIII-XIV, mas a pedra pode ter sido feita bem antes e depois colocada ali, decorativamente, tirada de um outro lugar.

A questão principal que aqui gostaria de levantar é que me parece que estes prédios, tal como uma boa parte dos prédios antigos de Lisboa, podem ter mais de 500 anos, e ao contrário do que é costume invocar, não caiu tudo com o abalo do Marquês... nem a casa onde este nasceu.
Por exemplo, as casas do Bairro Alto têm quase todas uma mesma tipologia, e citamos Joaquim Moreira de Mendonça que na sua obra após o Terramoto de 1755, refere-se ao maremoto que ocorreu em 1531, levando à construção do Bairro Alto:
Tenho certeza por documentos autênticos que ainda depois daquele ano se erigiram todas as ruas do Bairro Alto, que ficam para fora das Portas de Santa Catarina e Postigo de S. Roque (...)  "História Universal dos Terramotos" - J. J. Moreira de Mendonça (1758). .
Um aspecto típico dessas casas antigas é que as portas e janelas estão rodeadas por lajes de pedra simples, num formato rectangular, como vemos no nº 24 da Rua das Farinhas.

As razões para esta suspeita são simples...
Após o início da expansão marítima no Séc.XV, Lisboa teve um crescimento enorme, havendo um acréscimo significativo de zonas residenciais, que se processou desordenadamente como era habitual. O primeiro bairro com planificação moderna, quadriculada, foi justamente o Bairro Alto, após o devastador sismo de 1531. Acontece que uma boa parte dos imóveis não eram da nobreza, eram simplesmente de habitação vulgar, por exemplo de marinheiros, mercadores ou mestres de artes. Eram propriedade privada, e não era fácil ao Estado arrasar com toda a propriedade privada alheia... para esse efeito convinha a uma reestruturação e planeamento a existência de sismos, incêndios, etc. Por isso, foi sendo natural que as casas, não caindo, fossem simplesmente restauradas, no mesmo processo que vemos a imagem da Rua das Farinhas ser hoje praticamente igual à Rua das Farinhas há 120 anos. Até que chegassem grandes empresas, capazes de comprar lotes e fazer novos empreendimentos, como só aconteceu no final do Séc.XX, as habitações iam durando até desmoronar pelo envelhecimento da estrutura. E é claro, as zonas mais atractivas para a especulação imobiliária não eram as pequenas ruelas dos bairros típicos, que se foram mantendo, desde há séculos.

Olhando para as ruas e casas de Óbidos, assumidamente uma vila que foi mantendo o seu aspecto medieval, vemos o mesmo tipo de construção com janelas e portas rodeadas por lajes de pedra, com varandas de ferro, o mesmo aspecto medieval que foi herdado também em Lisboa. É claro que, do ponto de vista do agente imobiliário, poderá haver alguma hesitação em dizer que uma casa tem 500 ou 600 anos, mas do ponto de vista histórico e de legado patrimonial será algo bem diferente.



terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Heresia toponímica

Uma das improbabilidades mais descaradas é ver na toponímia holandesa dos descobrimentos nomes associados a santos. Não é que tal fosse impossível, simplesmente era altamente improvável, ou as probabilidades andariam ao nível de árabes baptizarem uma ilha com o nome de "Santa Maria". Com os ingleses passar-se-ia algo semelhante, mas em menor escala.

Vejamos aqui um mapa holandês, que foi depois copiado pelos franceses, de forma que se trata de um mapa publicado em França em 1663-66, mas que se assume ter sido copiado de um mapa de 1644 do cartógrafo holandês Joan Blaeu.

A questão é agora saber de quem os holandeses copiaram... mas não parece difícil perceber.

Em cima, ao centro, lê-se facilmente "TERRA DOS PAPOS".
Não é holandês, flamengo, ou francês. 
Ainda que "TERRA" seja também latim, a contracção da preposição "DOS" só ocorre mesmo em português. Quanto aos "papos" podemos entendê-lo no significado de "papou-os" dado o historial antropofágico das tribos dessa ilha. Trata-se da ilha Papua - Nova Guiné.

Curiosamente o meridiano vertical, que separa "Terra dos Papos" de "Nova Guinea" é praticamente o mesmo que separa hoje a parte da Papua indonésia, da parte independente da Nova Guiné.
Para quem ainda não percebeu... esse meridiano era o do Tratado de Saragoça, o correspondente ao meridiano de Tordesilhas, mas como anti-meridiano - uma dor de cabeça que só foi resolvida no tempo de D. João III. A razão pela qual os holandeses o colocam ali, pode ser apenas coincidência, é claro.

Mas não há apenas essa designação. Acima da "Terra dos Papos" vemos C. de Goede Hoope, o que em holandês quer dizer "Cabo da Boa Esperança". O que faz ali outro "cabo da boa esperança"?
Logo ao lado lemos "Vilems Schoutens Eyl - Olim I. de aguada". Esta "ilha de aguada" parece também vir do mapa português, tal como logo de seguida "I. Arimoa" e "I. Moa".
É ainda curioso aparecer a palavra francesa "Rivier" e depois como abreviatura aparece "Riv" mas escrito como "Riu", ou seja quase como "Rio". Pode ler-se isso na parte da Carpentaria, que eu diria que se fosse coisa portuguesa e não remetida a um Carpentier, pareceria "carpintaria".

Mais abaixo, nesse mesmo mapa podemos ainda ver:

... e, em baixo, do lado direito, vemos então as ilhas "I. St. François" e "I. St. Pierre". Os nomes estão já em francês, mas estas ilhas de São Francisco e São Pedro, seriam designações dos santos padroeiros do capitão e do seu comandante! Ora, normalmente estas histórias arrumam-se de outra forma, por vezes com o nome do navio, mas é mais difícil quando não é o caso, e esta malta eram holandeses protestantes, sem qualquer vontade social de exibir santos padroeiros. Ou seja, no contexto da sociedade holandesa, muito influenciada pelo judaísmo comercial, e protestantismo rígido, estes nomes de santos seriam uma "heresia toponímica"... a menos que já tivessem sido assim designadas, e nesse caso foi apenas honestidade puritana, ou vontade de afirmação de presença num sítio pelo uso da sua designação antiga.

Pode ainda ver-se a designação de Houtman Abrolhos de que falámos antes, que tal como "Pedra Blanca" no sul da Tasmânia. Estas são duas designações que reconhecidamente derivam do português, no caso dos Abrolhos enquanto "abre olhos" similar às ilhas Abrolhos no Brasil, e no caso da Pedra Branca por eventual semelhança com a ilha de Pedra Branca em Singapura. Ver no mapa seguinte, em baixo:

Ainda que se quisesse estabelecer uma qualquer semelhança com Singapura, faz pouco sentido não usar a tradução para holandês do termo, quando tantos outros eram traduzidos. 
Quereria isto significar que os holandeses teriam descoberto que havia uma semelhança entre os mapas portugueses de Singapura, que pretendiam representar ali a Tasmânia? Não parece provável, e vai ficando a curiosidade bem expressa neste mapa, de que os holandeses nunca procuraram completar a informação da viagem de 1643 de Abel Tasman e foram deixando o tempo rolar 125 anos até que Cook, com o simples intuito de observar o "trânsito de Vénus", achou acidentalmente o restante território australiano que falta a este mapa holandês. 
Uma preciosidade do género "novela histórica".

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NOTA (10.01.2019):
Em comentário (de David Jorge) está a observação do uso do termo malaio Nusantara que se ligaria à designação Nuca Antara para Austrália por Godinho de Erédia (ver post anterior). O termo resultaria das palavras malaias ou javanesas: nusa (ilha) e antara (entre), e aplicava-se a territórios tributários do império Majapahit, centrado na ilha de Java. 
Aproveito para adicionar as referências no mapa (1ª imagem) à Batochina e às designações Terra Alta, Cera ou Mola, que teriam sido tiradas também de mapas portugueses.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Nuca Antara - Erédia

É instrutiva a consulta do atlas de João Teixeira Albernaz, de 1630:


... porque, para além de outros detalhes é bastante explícita na descoberta da Austrália por Manuel Godinho de Erédia em 1601:
(clicar no mapa para aumentar)

Há duas coisas escritas, na parte que corresponde à Austrália, que são:

  • NUCA ANTARA - descuberta por Manoel Godinho de Eredia : Ano 1601.
  • Terra descuberta pelos Holandezes a q chamárão Eendracht ou Concordia
A descoberta holandesa é remetida a 1606 por avistamento do holandês Janszoon. 
Ou seja, é exactamente como a carta que estava no fac-simile que Richard Major apresentou em 1863, assunto que abordámos em postal anterior:




O mapa global adiciona à inscrição "por mandado do Vizo Rei Aires de Saldanha":
(clicar no mapa para aumentar)

Como já debati este assunto demasiadas vezes, não vou insistir sobre ele, remetendo esta parte ao postal de Maio de 2011 já referido.

Fica no entanto uma questão razoável.
- O que teria acontecido se portugueses e espanhóis tivessem que dividir a Austrália ao longo do meridiano de Saragoça, o anti-meridiano de Tordesilhas?
Deslocar-se-iam exércitos para a Austrália, um para cada lado da ilha?

Estes atlas de Albernaz aparecem com uma carta espanhola, que se queixa dos enganos sucessivos, e propositados, que os portugueses faziam na demarcação dos meridianos. Aliás, é à conta dessa entrada por território espanhol que o Brasil tem quase o dobro do tamanho que normalmente teria.
O mesmo tipo de problemas iria ocorrer sem dúvida na parte australiana.
Ora, curiosamente, ao longo de toda a exploração marítima acabaram por ser muito reduzidos os conflitos entre Portugal e Espanha. 
Talvez porque se passaram a preocupar com os outros intervenientes na partilha do bolo, foram diminuindo de forma considerável os conflitos de vizinhos. 
A Austrália não parecia ser suficientemente interessante para deslocar grandes exércitos. 
Talvez tenha ficado decidido ser uma "terra de concórdia", afastada da atenção, até que os conflitos na América ficassem resolvidos... porque foi isso que acabou por acontecer. Quando finalmente a Inglaterra saiu vencedora da Guerra dos Sete Anos, o seu domínio marítimo era já completo, e foi justamente James Cook, um oficial que combateu no Canadá, que 5 anos depois irá fazer o protocolo das viagens de "descobertas" pacíficas, em particular, a australiana.

Sob esse aspecto, a Austrália foi de facto o único território que se livrou das contínuas guerras entre potências ocidentais, e poderia chamar-se "terra de concórdia"... se não tivesse depois ocorrido uma chacina ainda mal documentada, que vitimou os aborígenes e especialmente uma população malaia (a única a fazer resistência aos europeus) que nem entra na contabilidade nos livros de história.