Começam assim as "Tripas" do Padre José Agostinho de Macedo (1823):
Se quem se mete com rapazes amanhece borrado, como poderia eu ficar muito limpo metendo-me com Tripas! E que tirei eu a limpo de todos os meus combates? Livros, e livros, escritos, e escritos contra a Seita Pedreiral, um denodo, uma valentia a toda a prova na época em que a Veneranda com as mãos de fora, com a faca, e queijo na mão, partia e repartia muito à sua vontade, ataquei esta vil canalha, ou miserável cambada de gaiatos (...)
Macedo escreve as Tripas numa altura de mudanças, de oscilação entre liberais e miguelistas... e ele próprio acabará por oscilar, apesar desta veemência:
Mas, dificilmente encontramos uma denúncia tão explícita contra a Maçonaria:(...) nem os temi, quando os via de dia no Gabinete e de noite na Loja, e com arrojo tal que não há um bom Português, que quer dizer um bom Realista, que não conhecesse que a minha vida andava em perigo, porque ousei ser o mais franco Campeão da Pátria, das Leis, da Religião, do Trono, da virtude, e da verdade. Com tudo isto dei bom burro a dizimo! Acho-me com as mãos atadas. Boa recompensa! Ah Portugal, Portugal! Se eu me tivera lançado no partido infame dos Pedreiros Livres, teria em sua época chegado às honras, e ao fastigio das coisas humanas e menos pateta do que eles, ainda no mais eminente boleo, eu me saberia conservar seguro, e teria cravado hum prego de galiota na roda da fortuna. Mas seja embora o meu jantar uma sardinha, ou sardinha nenhuma, nunca farei nada bom, e nada mau, por paga, ou recompensa humana.
Está dito ate à saciedade, e mostrada até evidência, que um dos fitos da Pedreirada é o extermínio da Religião; a terra com os altares (e quando se consertarão muitos que eles agora demoliram?) Eles crêem tanto em Deus, como eu creio neles. Mesmo a frasezinha que trazem sempre no bico — O Supremo Arquitecto, o Grande Arquitecto, é uma irrisão manifesta. Tirado este principio da existência de Deus, e de Deus revelado, que Religião pode ter quem nega seu Divino Autor? Só para os Pedreiros há a Religião do Juramento, sendo um dos preceitos do Decálogo, é cousa para eles de zombaria, porque o anunciador do Decálogo - Moisés; é para os Pedreiros Livres um dos três Impostores, Moisés, Jesus Cristo e Maomé; e sendo para eles galhofa o Juramento, não há cousa em que estes patifes mais tenham insistido. Desde que apontou a Regeneração não temos feito mais que jurar, jurar, jurar, e para quê, ou porquê?Porque eles conhecem que a totalidade da Nação é sã, e querem segurar-se com a Religião do juramento que liga a consciência.
O discurso gira em torno da aprovação da Constituição de 1820 (notando que 24 de Agosto carregava o simbolismo do Massacre de S. Bartolomeu, algo que não teria passado despercebido à tendência jacobina, ateia, influenciada directamente pela Maçonaria Francesa, enquanto que a tendência liberal, teísta, estava mais ligada à Maçonaria Inglesa). Ainda sob o espectro do "reino de terror" jacobino, da Revolução Francesa, continuava José Agostinho de Macedo:
Converteram-se de Procuradores em Déspotas descarados. Proclamaram, a Soberania do Povo; mas este Povo não éramos nós, eram eles. Depois de extorquirem a maior parte das Procurações como nós sabemos, não nos deixaram mais acto algum de soberania, e fizeram irrevogáveis os poderes que lhe concedemos. (...)
O primeiro sinal do Despotismo, e da nossa desgraça foi a enorme força armada de que se fizeram continuamente cercados nossos Augustos, e Soberanos Procuradores. Com Bayonetas nos trouxeram a quimérica, e ilusória Regeneração, com Bayonetas nos ditam Leis com mais orgulho e soberania que o Sultão aos Eunucos do Serralho.
Macedo não resiste a personalizar: Ferreira Borges, e em particular Manuel Fernandes Tomás...
Chorai Povos, que morreu Manoel Fernandes! Quem não estoiraria de riso por, baixo, e por cima? Sairmos no outro dia de nossas casas cobertos de dó, alimpando os olhos, e respondendo aos que nos perguntassem porque chorávamos? Morreu o Manoel Fernandes . . . . E quem era esse Manoel Fernandes? Era o Patriarca .... De quem ? Dos patifes.
O discurso do maçon "Manoel Fernandes", dito "patriarca dos patifes"... pois, pois, mas findo o riso de Macedo,
Manuel Fernandes Tomás acabou mesmo imortalizado no frontispício do parlamento, na Assembleia República.
Macedo, é claro, não se coibiu à época de propor outro epitáfio:
"Aqui jaz Manoel Fernandes, que escapou de morte de forca, porque morreu de diarreia.
O que devia fazer o Carrasco, fez o Boticário."
Sim, no Séc. XIX, a censura do "politicamente correcto" não estava tão implantada...
Macedo, e muitos outros à época, consideravam que a nossa Constituição era uma variante pobre da Espanhola, mas vai mais longe, acusando mesmo a traição de um projecto de união ibérica (a união de estados europeus sob a mesma lei, consolidaria o projecto maçónico):
(...) que acarretaram toda a qualidade de males, e desventuras sobre este Reino; que nos reduziram à extrema indigência: que dissolveram todos os vínculos do estado social: que abrogaram todos os foros Nacionais: que nos venderam ou ajustaram vender aos Castelhanos, pois a união à Espanha era o seu ultimo recurso, como eles mesmos sem pejo declararam, não só em seus burricais discursos, mas em seus miseráveis escritos: que nos deram, e nos obrigaram a jurar a Constituição Espanhola mais abrejeirada (...)É especialmente interessante, e por muitos transponível para um discurso acusatório recente:
(...) que conceberam projectos de destruição, com especialidade no segundo Club Maçónico chamado, Cortes Ordinárias: que puseram um jugo de ferro a todo o Povo Português, fazendo-lhe a mais escandalosa traição que ainda se viu no mundo; que espoliaram o Real Erário, a que davam o nome de Tesouro Público, aumentando a Dívida Nacional até ao ponto de ser insolúvel por séculos.Pois, nota-se aqui um problema que parece herdar protagonistas com 200 anos de história, e que continua no modo:
(...) que reduziram à mendicidade inumeráveis famílias, privando os seus respectivos chefes de seus ordenados: que excluíram dos empregos os que legitimamente os tinham, e ocupavam, para introduzirem em seu lugar os adeptos da Maçonaria (...)
É claro que a exclusão de empregos, ou a espoliação do Erário Público, não terão o mesmo correspondente em termos de método e modo, ao fim de dois séculos, mas não deixa de haver um certo tom profético, até porque no original os verbos aparecem na forma antiga como "reduzirão", "conceberão", "espoliarão", remetendo para um futuro que encontra paralelo no presente, até no club, e na assembleia...
(...) que atropelaram todos os princípios da Justiça confíscando, prendendo, degradando, e expatriando homens beneméritos, conspícuos, e honrados, só por serem denunciados pelos Espiões, sem outra alguma forma de Processo, e só pela ridícula nomenclatura de Corcundas (...)
Esta parte é mais radical, mas é instrutiva para compreendermos a noção de "Corcunda", que se projecta figurativamente no "Corcunda de Notre-Dame", de Victor Hugo, é de 1831 (escrito oito anos depois), onde a figura de "corcundas" se aplicaria aos opositores da Revolução de Julho de 1830, que Vitor Hugo apoiaria, após éditos do anterior rei francês, Charles X (que em particular impunham o fim da liberdade de imprensa).
A "Liberdade", de Delacroix, marchando contra os éditos reais franceses de Julho 1830.
É claro que há duas faces nesta moeda. Se Macedo lhe mostra a Cara, havia também a Coroa... como Macedo acaba por reconhecer, as últimas Cortes legislativas eram de 1697. Ou seja, a Lei não era actualizada há mais de 120 anos... mas depois vem o espanto, à época - e a que nós já nos habituámos:
(...) porque tudo quanto se tratou no espaço de anos e meses se podia discutir, e resolver em oito dias (...)
Macedo fala então das célebres Cortes de Lamego, e que "a nossa Legislação civil, e económica, talvez fosse a mais luminosa dos povos civilizados da Europa". Por isso estranha a adulação dos legisladores a Benjamin Constant e a Jeremy Bentham, salientando
(...) este Gebo Londrino é o ídolo dos Publicistas Regeneradores da infeliz Lusitania, e havia quem exigisse o busto de corpo inteiro, só para ter a feliz ocasião de lhe imprimir todos os dias ardentes beijos em sua parte posterior. Eu não sei o que eles liam de Jeremias Bentham? (...)
Não sabemos se terá ou não escapado ao Padre Macedo que Jeremy Bentham tinha proposto o Sistema Panóptico, de que já falámos... ou seja, o sistema de controlo em que os guardas não são vistos pelos prisioneiros. Se soubesse, talvez não tivesse realizado como isso se poderia aplicar ao controlo de toda a sociedade. Afinal, os legisladores iriam mudar constantemente as leis, sob representação popular, um controlo exercido por guardas, que se sentavam confortavelmente nas assembleias legislativas, recebendo ordens de uma aristocracia invisível na manifestação do seu poder.
Macedo ironiza a verborreia legislativa, com a venda do vinho aos quartilhos:
"- Oh! Questão importantíssima! Oh coluna firmissima da publica prosperidade! Quem há-de vender vinho aos quartilhos?"
E, é claro, depois denuncia uma prática que se revelou secular...
Ah! Mandriões! (...) São Legisladores e encomendam as Leis a outros de fora? (...) Com que a Nação paga 4$800 diários a cada um de vocês para fazerem as Leis, e ainda em cima há-de pagar aqueles a quem vocês as encomendam, pois estão prometendo tantos, e mais quantos de prémios a quem fizer Códigos: e isto quando? Quando a Mãe Pátria anda a ponto de pedir uma esmola, ou em perigos de perder a sua honestidade, e flor, só para lhe meter na barriga a vocês Mandriões de alto bordo!!
Poderia continuar com as citações do Padre Macedo, que pelo seu tom directo, aguerrido, levam-nos a um tempo passado, onde ainda se via uma exposição contundente dos perigos do regime parlamentar que se iria instituir como "o melhor sistema".
Um sistema de fabrico perpétuo de leis, que baralham os povos pela sua ignorância, e protegem as elites pela sua flexibilidade. Afinal, não podemos invocar o desconhecimento de leis... de leis em constante fabrico, de códigos com alçapões para fuga de um capital e armadilhas para capturar o outro. Um sistema onde as leis são chaves, para manter uns presos, e deixar os outros livres da sua aplicação.
Hoje, o politicamente correcto evita a crítica deste parlamentarismo, convocando todos os demónios que alertam para os perigos doutros regimes... evitando assim a objectiva crítica do sistema actual.
A moeda esconde agora a Cara, e exibe a Coroa, uma coroa que falsamente ilude a população para a responsabilidade de um poder que perdeu, quando foi enfiada numa prisão de espelhos, num Panóptico, que lhe ilude uma liberdade, uma falsa representação, e lhe esconde a face da maioria dos seus carcereiros, que usufruem do trabalho forçado duma população encarcerada.