sábado, 26 de março de 2016

Fio de Brabante

No postal da semana anterior mencionámos a lenda de Lohengrin, na sua embarcação em forma de cisne, e por virtude dessa lenda ser colocada em Brabante - antigo ducado da região belga de Bruxelas, deixamos a sequência que iremos seguir na continuação do anterior: 
  • Âncoras suiças 
    • Cisne de Lohengrin e Elsa de Brabante
    • Cisne de Bolonha (Boulogne-sur-mer) e Bulhão
  • Ducado de Brabante, Condado de Bolonha
    • Godofredo de Bulhão, Conde D. Henrique
  • Ducado da Borgonha
    • Infanta D. Isabel e Filipe o Bom
    • Ordem do Tosão de Ouro
      • Palácio Coudenberg em Bruxelas
      • Abdicação de Carlos V em 1555
  • 1830 e a invenção belga
Na boa tradição das histórias medievais, como a dos Doze de Inglaterra, em que cavaleiros portugueses partem para Inglaterra para defender a honra de donzelas britânicas em apuros; também Elsa de Brabante, sob falsa acusação de fratricídio, sonha que um cavaleiro a virá defender... que será Lohengrin, chegando numa embarcação em forma de cisne (ou puxada por um cisne), cujo nome é Helias.
 

A lenda do Cavaleiro do Cisne tem diversas variantes, e convém não esquecer a própria mitologia grega, que colocava personagens centrais da Guerra de Tróia como resultado da gestação de Zeus, disfarçado em forma de Cisne... e daí o nome do Cisne vindo de Helios ser uma variante de divindade solar.
Zeus teria seduzido Leda (ou Nemesis) e dessa união teriam surgido dois pares de gémeos em dois ovos: Helena e Clitemnestra, que casariam com Menelau e Agamémnon, e ainda os irmãos Castor e Polux. Outra aventura amorosa de Zeus é o conhecido disfarce como touro branco, raptando Europa.

O cisne que traz Lohengrin a Elsa de Brabante, será o irmão... o irmão que supostamente teria morto, e que era apenas vítima de feitiço. O nome Elias liga-se a Helias, o nome do cisne, pela perda do insonoro H.
Wagner fará de Lohengrin uma das suas obras primas, seguindo essencialmente a versão do Séc. XIII, de Wolfram Eschenbach:
Lohengrin de Richard Wagner - Opera de Viena  (conduzida por Claudio Abbado) 

Um dos aspectos centrais desta história é uma ligação do herói Lohengrin a Godofredo de Bulhão, que irá conquistar Jerusalém na 1ª Cruzada.
Ora, um requisito que é feito por Lohengrin a Elsa de Brabante, e comum às histórias do Cavaleiro do Cisne, seria não perguntar pelas suas origens familiares. A quebra dessa promessa fará com que Lohengrin abandone Elsa, após se ter casado com ela (Wagner compõe aqui a célebre marcha nupcial, como prelúdio ao Acto III).

As origens de Godofredo do Bulhão estão ligadas ao Condado de Bolonha, e de Brabante, mas ainda assim ofereceriam algumas dúvidas, tal como aconteceria com o Conde D. Henrique... supostamente seu irmão mais novo, segundo Damião de Goes, conforme vimos antes, tendo em atenção o brazão de Bolonha (Boulogne-sur-mér), com o cisne e com 3 bezantes.
Numa variante da história do Cavaleiro do Cisne, com o nome Elias, a defesa da condessa do Bulhão leva ao nascimento de Ida, que seria a mãe de Godofredo do Bulhão. Wagner terá preferido considerar Godofredo como o irmão de Elsa.

Já referimos que IDA era o moto inicial do Infante D. Henrique, e Bernardo de Brito dá como certo que o Conde D. Henrique não só parou em Portugal quando se dirigia para a Terra Santa, mas acabou mesmo por participar na Cruzada seguinte à Terra Santa, com custos pessoais consideráveis, por ter sido preso e resgatado.

Por outro lado, aparece aqui a ligação à irmã, a Infanta D. Isabel, casada com o Duque de Borgonha, Filipe o Bom, uma das mulheres mais influentes na Europa. É nessa altura que o ducado anexa Brabante, e assim o centro da história de Ida, Godofredo de Bulhão, estão no centro da vida da Infanta D. Isabel e do seu filho, Carlos o Temerário. É o tempo da criação da Ordem do Tosão de Ouro, e de provavelmente inventar convenientemente muitas histórias de cavalaria.
Essa ligação é marcante, porque é Margarida, a filha de Carlos o Temerário, neta de Isabel, que ao casar-se com os Habsburgos, junta mais aquele domínio à casa austríaca.
Ora, quando a casa austríaca se liga à espanhola com Carlos V, os seus territórios são demasiado vastos, e o imperador opta por dividir o império entre o filho Filipe II de Espanha, e o irmão Fernando, que controlará o lado austríaco, mantendo o poder sobre a região de Brabante até às invasões napoleónicas.

Carlos V já usava Bruxelas como centro político e a sua abdicação será mesmo feita em 1555 no Palácio Coudenberg de Bruxelas (este palácio desapareceu num incêndio no Séc. XVIII).
Abdicação de Carlos V - para o irmão Fernando e para o filho Filipe II, em 1555.
Olhando para esta imagem, veremos que quer o imperador, quer o irmão e o filho, todos ostentam o colar da Ordem do Tosão de Ouro, e aliás o palácio de Coudenberg era o centro de funcionamento dessa ordem de cavalaria, ainda que esta divisão de poder tenha constituído dois ramos - o ramo espanhol, de que é sucessor Filipe VII, por via de Filipe II, e um outro ramo, o ramo austríaco, que não tem funções oficiais, dado a Áustria ter passado a ser república. Portanto, também o legado do Tosão de Ouro passou por Bruxelas (onde há aliás um cinema UGC Toison d'Or).

Quando caiu o poder napoleónico foi inventado o Reino da Bélgica, procurando uma herança histórica nessa parte de Brabante, dos duques de Borgonha, mas talvez mais no legado de Godofredo do Bulhão, e do seu irmão Balduíno, enquanto Reis de Jerusalém.
A Bélgica, um país tão recente quanto todos os que foram inventados nas revoluções independentistas patrocinadas pela maçonaria, entre 1815 e 1848, ganhou a sua independência em 1830, após pertencer brevemente à Holanda... e a vontade da França em anexar o território contíguo acabou por levar à invasão prussiana que terminou humilhantemente com a conquista de Paris por Bismarck.
Essa sobrevivência belga mantida por equilíbrios geoestratégicos, permitiu-lhe ainda tomar parte no bolo colonial, cabendo-lhe o Congo Belga, com a benevolência familiar da Rainha Vitória, uma das regiões onde a barbárie colonialista tomou aspectos mais gritantes - estimando-se em 5 milhões de mortos, no reinado de Leopoldo II da Bélgica.

Assim, desde o tempo do ducado de Brabante, passando pelos ideais de cavalaria da Távola Redonda, com Parseval e o seu filho Lohengrin, ou com 12 estrelinhas distribuídas por igual, mantidos como apóstolos de um colonialismo iluminado, Bruxelas acabou por se tornar num centro de consenso de equilíbrios geoestratégicos europeus... sempre com grande vontade de interferir no mundo, mas com grande dificuldade em digerir consequências das assimetrias que a sua gula de poder produz.

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Nota: Acerca deste assunto, sugiro a leitura de uma sequência de textos:
que usa o título da obra de Joseph Conrad (que inspirou o filme de Coppola, Apocalipse Now), e onde se fala do funcionamento de várias organizações secretas na Europa, nomeadamente nas actividades altamente subversivas da Loja Maçónica P2, em Itália, e da Operação Gládio, ou ainda da Aginter Presse (sediada em Portugal, com o apoio da PIDE), numa grande estratégia da CIA contra a influência comunista da época.
A Aginter Presse, pretensa agência de imprensa internacional, era uma
fachada de agência secreta com actividades terroristas, ou subversivas,
contra a influência comunista, e esteve sediada em Portugal até 1974. 
Aditamento (29/03/2016)
O número de vítimas dos Assassinos de Brabante (1982-85) foi de 28 mortos e 40 feridos, um número elevado em termos de mortes, mas não chegando ao ponto dos 39 mortos e 600 feridos ocorridos no Heysel Stadium, em Bruxelas, número ainda superior ao dos recentes atentados bombistas (38 mortos e 300 feridos). 
Ainda hoje está "por resolver" o caso dos assassínios em Brabante, e conforme é escrito na wikipedia:
One theory was that the communist threat in Western Europe was taken as justifying Operation Gladio being activated. However, the Belgian parliamentary inquiry into Gladio found no substantive evidence that Gladio was involved in any terrorist acts or that criminal groups had infiltrated the stay-behind network. The Belgian Gendarmerie were abolished in reforms that came as a result of a perceived lack of satisfactory performance in the Brabant killers case, and that of Marc Dutroux.
O caso de Marc Dutroux foi o primeiro caso largamente divulgado de pedofilia, especialmente porque libertado após cumprir apenas 3 anos de prisão, voltou a reincidir, mostrando largamente a ineficácia do sistema policial e judicial belga. Só após este caso, julgado em 2004, é que houve uma larga atenção aos casos de pedofilia, a nível internacional, que envolveram também acusações à estrutura da Igreja Católica.

Quanto à não resolução dos casos de assassínios de Brabante que se prolongaram durante 4 anos, digamos que... ou era mesmo matéria classificada de serviços secretos, como a Operação Gládio (o que deixou a polícia belga longe da herança do detective Poirot), ou então talvez uma reportagem do Canal História mostre que seriam apenas manifestação de fenómenos alienígenas, coisa também muito comum naquelas paragens...

quinta-feira, 17 de março de 2016

Âncoras suiças (4)

Na sequência do texto antigo Basiliscos de Basileia e Medos de Medusa, e de outros dois sobre âncoras suiças (1) e (2), onde se relatava a descoberta numa mina suiça de restos de um barco antigo afundado, acrescentamos alguns elementos.
Antes de prosseguir, notamos que a Suiça tem Marinha, porque apesar de não ser evidente o contacto com o mar, os suiços são precavidos.

A descoberta dos restos do navio foi tornada pública em 1460, e a mina foi descrita como sendo próxima de Basileia. 
Precisamente nesse ano será fundada a Universidade de Basileia, e curiosamente, num postal de Ano Novo de 1460 (também de Basileia), é apresentada esta figura:
(imagem)
Até aqui nada de especial, ainda que seja estranho o destaque dado à âncora, e a forma da proa do navio ser em forma de "pato, ganso ou cisne"... iremos optar por pensar que é um cisne galináceo, e já explicaremos porquê. É claro, maior coincidência é ser no exacto ano em que saem as notícias do achado do navio, na mina de Basileia... adiante!

Não há muitas imagens de navios fenícios, tirando as várias representações em moedas, normalmente vemos duas mais habituais, uma será de um vaso de guerra (num alto-relevo que está partido), e outra é uma representação num sarcófago, identificada como "navio fenício":
(imagem)
Ora, foi esta que nos despertou a atenção, tendo considerado que poderia ser um "cisne" a encabeçar a proa do navio... e só depois encontrámos o postal de ano novo de 1460 em Basileia. Para além da cabeça do pato, ou cisne, as imagens são muito semelhantes, até na forma como caem as cordas do mastro principal que segura a vela.

A partir de certa altura, a forma mais comum que se encontra a encabeçar a proa, nas moedas fenícias, não é nenhum cisne, mas sim um hipocampo (ou seja, um grande cavalo marinho... nome que é usado também para a sede da memória no cérebro). No entanto, restou-nos ainda uma lenda germânica, de Lohengrin, filho de Parseval, um dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur. 
A estranha embarcação onde segue Lohengrin é justamente encabeçada por um cisne... 
Lohengrin é conduzido num barco com um cisne.
Como já vimos anteriormente, o símbolo de Basileia, não é nenhum cisne, mas sim um galináceo com grande pescoço, temível pela sua capacidade de petrificar pessoas, como Medusa. Esse galináceo, chamado Basilisco, está representado numa moeda comemorativa dos 500 anos da Universidade de Basileia (a mais antiga na Suiça):
O basilisco de Basileia, numa moeda, e no seu verso uma possível
alusão a uma passagem bíblica - talvez do dilúvio, ou da criação
do mundo (devido aos símbolos binários usados) - (imagem)
Ora, sobre essa capacidade de petrificar pessoas, trazemos um texto que ilustra bem o problema:
"Organic Remains of a Former World"  - James Parkinson
(June 1805, Monthly Review)
Conforme se poderá ler, dá-se conta do relato de vários autores sobre a descoberta de 1460, mas explicitando mais. 
Foi encontrado o navio inteiro, com as suas âncoras, mastros partidos, e 40 marinheiros, bem como a sua mercadoria. O barco estava a cerca de 100 metros de profundidade (50 fathom - 300 pés), e aqui é referida a proximidade a Berna e não a Basileia (mas a distância entre ambas é só 100 Km).
O relato prossegue com outros casos de "petrificação", falando em cidades inteiras - poderia ser referente a Pompeia e Herculano (primeiras escavações em 1738-48, pelo espanhol Alcubierre), mas as outras não encontrei traço. O registo de cavaleiros hispânicos petrificados, por exemplo, parece-me desconhecido hoje. 

Porém, o registo que vi originalmente refere um comentário de Sabinus às "Metamorfoses" do escritor romano Ovídio, que aqui deixo sublinhada a referência a "âncoras encontradas em montanhas"... ou seja, sugeria Sabinus que já seria do conhecimento dos romanos este tipo de achados, que surpreenderam alguns em 1460, mas que não seriam surpresa para o Bispo de Basileia que ostentava o báculo com o formato condicente ao achado.

(link)

sábado, 12 de março de 2016

Geografia antiga da Lusitania (2), com consulta a Pinho Leal

Caldeirão entornado
No ano de trinta e quatro,
Lá se foi o Caldeirão,
Só nos ficou por memória,
Um visconde... e a inscrição.
Recorremos a Pinho Leal, para informações suplementares, porque Bernardo de Brito não assistiu aos trágicos capítulos seguintes, mas teve um grande sucessor no final do Séc. XIX, para o relatar.

Ora, o que diz Pinho Leal sobre a destruição "interna" feita em Portugal, em 1834?
Dá-nos como exemplo, o Caldeirão de Alcobaça... diz ele que durante 449 anos foi guardado no Mosteiro de Alcobaça o famoso caldeirão de cobre (..."onde se podiam cozer 4 bois de cada vez!"), um caldeirão apanhado apanhado por Gonçalo Rodrigues em 14 de Agosto de 1385, à logística do rei D. Juan I de Castela, na Batalha de Aljubarrota. 
Se Gonçalo Rodrigues ganhou o apelido de Caldeira, por tomar aos espanhóis o caldeirão; também um nosso contemporâneo (hoje titular!!!) ganhou o apelido de Caldeirão de Alcobaça por conquistar o pobre caldeirão em 1834!  
Escapou este testemunho das nossas glórias, aos surripiantes Filipes, aos rapinantes franceses e a outros que tais, e não escapou à ignóbil voracidade de um português!... Merecia bem que lhe puséssemos aqui o nome por inteiro, para ser conhecido da posteridade; mas... deixá-lo.
Quem Pinho Leal citava, sem nomear, era o membro da Loja 14 de Rennes (França), o Visconde de Seabra: ou seja, o maçon António Luís de Seabra, que em 1834 seria o corregedor nomeado para caos que ficaria lançado sobre o espólio do Mosteiro de Alcobaça. O nome foi fácil de localizar, porque o queixoso acabou por mover um processo ao jornal Braz Tisana, que o acusara.

Pinho Leal continua, explicando em breves palavras o que se teria passado em 1834:
Quando Aben-Jacob, miramolim de Marrocos, invadiu Portugal com um grande exército, em 1195, tomou o castelo de Alcobaça de assalto, mandando degolar todos os frades. (Estes, sequer ao menos, mataram-nos logo, e os frades foram mártires; mas os marroquinos de 1834, fizeram-nos morrer lentamente à fome e nem sequer foram mártires, porque muitos faleceram no desespero, à força de toda a qualidade do suplícios). 
A livraria do mosteiro era uma das melhores do reino. Como aconteceu a todas as das ordens religiosas em 1834, os melhores livros e manuscritos foram roubados & o resto, o refugo, foi para biblioteca pública de Lisboa. Até a mobília e as estantes da biblioteca cisterciense foram roubadas!... 
Portanto, a partir de 1834 estava a modernidade "histórico-científica" pronta para afirmar da inexistência de algumas obras que Bernardo de Brito citava, exemplares únicos pertencentes à Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça. Se dúvidas houvessem (e certamente havia), esta foi uma forma simples de acabar com elas... digamos que nesta época o requinte dos pedreiros no seu esculpir da história, era ainda mais tosco do que hoje.

Só falta a albarda...
A descrição seguinte é a que me interessa mais aqui trazer:
ALBARDOS ou ALVADOSAlguns escrevem Alvados mesmo por quererem escrever errado, para não dizerem Albardolos; por julgarem que vem de albarda.
Deve só escrever-se Albardas que é o seu verdadeiro nome e muito próprio, pois o sitio é frio. (Vide, sobre etimologia, Albardos, freguesia.) Serra, Estremadura, na comarca de Leiria. Faz parte da notável cordilheira de Monte-Junto (o Tagrus dos romanos.)
É nos confins da vila de Truquel. Nasce junto á Vila de Porto de Mós e finda em Rio-Maior, com 30 kilometros de comprido e 6 de largo. É áspera e fragosa.
Do alto desta serra (dizem os frades bernardos) fez D. Afonso I doação a S. Bernardo de todas as terras que daqui se avistassem até ao mar, em 1147.
No sitio onde o rei fez a doação se erigiu depois, para memoria dela, um arco de pedra, que ainda lá está, com uma inscrição comemorativa.
Chama-se ao sitio da serra onde está a memoria Arrimal (Vide esta palavra.) (É provavelmente obra dos frades bernardos.)
Este facto (a doação) é contestado e contestável. Em 1793, fr. Joaquim de Santo Agostinho (Mem. sobre os códices de Alcobaça) prova que este voto é uma invenção dos frades bernardos. Vide Dicc. Chron. e Crit. de J. Pedro Ribeiro, tomo 1.°, pag. 54. Quadros Hist., de A. F. de Castilho, nota à tomada de Santarém.
Esta serra lança um braço para o concelho de Truquel, chamado Cabeço de Truquel.
Nele existe uma extensa gruta, formada por grandes rochedos, feita pela natureza e aumentada pela arte, em eras remotíssimas, para habitação dos povos daquele tempo, segundo é tradição, o que é provável, visto que os povos primitivos não tinham outra casta de habitações.
Em 1869, o sr. Joaquim Possidonio Narciso da Silva, distincto arquitecto da casa real, fundador da Associação dos Architectos Civis Portuguezes, e do Museu Archiologico, que está na egreja gothica do Carmo em Lisboa, inteligente e zeloso amador das antiguidades pátrias, fez aqui uma viagem, de propósito para investigar todas as particularidades da gruta, e se a sua existência pertencia a épocas pré-historicas, como parece provável.
Viu que a entrada da gruta está meio escondida pela rama de espessos arbustos e é baixa e estreita. A primeira gruta é uma espécie de vestíbulo, bastante alta; mas pouco espaçosa; porém, por uma abertura, praticada no rochedo, se passa a outra gruta muito mais vasta, tendo ambas, nas rochas que lhes formam a abobada, uns buracos por onde penetra o ar e a luz. Achou o sr. Silva, a pouca profundidade, uma camada de cinza (com alguns ossos misturados) de bastante espessura e ocupando todo o centro da gruta. Por baixo desta camada de cinza achou uma de areia e por baixo desta outra de cinza e ossos, como a superior.
Em vista disto, é de supor que esta gruta fosse destinada para necrópoles, ou jazigo dos restos mortais desses povos primitivos.
Já era muito; mas o sr. Silva tinha fundadas esperanças de vir a descobrir instrumentos e outros vestígios dos tempos pré-históricos.
Como era noite, interromperam-se os trabalhos. No dia seguinte, quando o sr. Silva chegou á gruta com os criados e trabalhadores para continuar as investigações, viu que dos respiradouros da gruta saiam densas espirais de fumo. Foram os pastores da serra, que julgando lhes iam roubar tesouros, que reputavam seus (apesar de na véspera, o sr. Silva lhes dizer que, se aparecesse algum ouro ou prata, lhe dava tudo a eles) tinham enchido a gruta de mato (para o que tinham trabalhado toda noite) e lhe haviam lançado fogo.
No dia seguinte voltou o sr. Silva, mas o fumo e o calor não deixaram penetrar na gruta; pelo que reservou a continuação dos trabalhos para o dia seguinte ; mas recebendo um telegrama para regressar a Lisboa, ficaram, por enquanto, suspensas as suas investigações.
Por essa ocasião, mostraram também ao sr. Silva na mesma serra, a distancia de coisa de um kilometro da gruta, um dolmen, perfeitamente conservado.
Foi um óptimo achado, porque não havia conhecimento, nem memoria escrita, deste monumento céltico naquela localidade.
Nascem nesta serra três rios, o Alcobaça, o Alcobertas e o de Rio-Maior. Ha nesta serra uma famosa quinta chamada de Vale-ãe-Ventos, que foi dos frades de Alcobaça.
• Esta serra é toda minada por algares. Tem muitas e boas pedreiras de belo mármore, produz muito alecrim, rosmaninho e pimenteira. Cria-se aqui bastante gado e tem muita caça e lobos.
• No braço que lança para Truquel, ha uma lagoa que nunca seca e cria muitas sanguessugas. Há nesta serra uma extensa mata de carvalhos, que também foi dos frades bernardos.
Os povos vizinhos desta serra lhe chamam geralmente Serra de Rio-Maior, por ficar próxima d"esta vila. Ao arco chamam Rei da Memoria, e nutrem fabulosas, e até disparatadas opiniões sobre a origem deste monumento. 
Eu resumiria esta descrição dos eventos que sucederam ao arqueólogo Possidónio da Silva, na Serra dos Candeeiros, perto de Turquel, da seguinte forma... Vem o experto de Lisboa a descobrir o que nós sempre soubemos que existia, e põe-se a falar de um tesouro como ouro, mostrando que pouco sabe da história que é memória... Então quem guardou os segredos durante milénios, mostrou-lhe como ainda o sabia fazer - e se o "explorador" soube como foi fumegado, não terá percebido como foi à pressa chamado a Lisboa.

Possidónio não desistiu de Turquel, e mesmo assim levou o pelourinho da vila para o Museu Arqueológico da capital:
O seu velho pelourinho, que é uma curiosidade archeologica, foi pedido pelo sr. Joaquim Possidonio Narcizo da Silva, e levado era 1869 para o Museu Archeologico do Carmo, em Lisboa.
Se o Sr. Possidónio achava que o lugar de um pelourinho de "estilo manuelino" era no Museu Arqueológico, o que falar então de todos os que eram anteriores ao reinado de D. Manuel?
Ora, o que me parece claro é que o arqueólogo tinha opinião diferente, ainda que tenha deixado registo diverso. O pelourinho só voltou a Turquel passado quase um século, e exibe o sinal de tempos antigos, como tantos outros em Portugal:
Pelourinho de Turquel
Oferece-se aqui uma breve descrição do que têm sido as aventuras dos "expertos da capital" por territórios indígenas nacionais. Ainda que os nativos se mostrassem receptivos e colaborantes com as sumidades da capital, trataram sempre de evitar ao máximo que as antiguidades que guardavam fossem surrupiadas pelos expertos.
Por outro lado, Pinho Leal fala de um dólmen em Turquel, que nem se sabia existir... e tirando o símbolo da vila que o mostra... parece que o último dólmen a ser destruído foi a Anta da Barbata ("segundo a mesma fonte local, os monumentos teriam sido destruídos quando do arroteamento dos terrenos" - www.turquel.com -  ou ainda "desmantelada há muitos anos por pessoas que ali fizeram escavações, na esperança de encontrar uma cabra e um cabrito de oiro a que certa lenda se referia - o que eles afirmam terem encontrado foram restos humanos."):
Anta da Barbata (Turquel) - destruída num "arroteamento de terrenos"
Ali próximo há o conhecido dólmen das Alcobertas, que ficou a fazer de capela junto à Igreja, numa interessante convivência entre passado e presente religioso:
Dolmen na Igreja das Alcobertas.
Portanto, na arqueologia nacional, em contraponto às "Descobertas", temos as "Alcobertas"... toponímia que certamente aponta para origem árabe, visto começar com "AL".
Um pouco o mesmo se passa com "Alquimia", que é sem dúvida de origem árabe, mas que se parece com "Al-química"... e seja isto talvez porque a palavra árabe importou o termo "quimia" de outra língua, ou seja, bem se vê, da raiz grega!
Já com "Al-cobertas", não se vislumbrando no árabe ou no grego o termo "cobertas", ficamos sem hipótese alguma de entender o que a palavra "coberta" poderá querer dizer. Deixamos esse mistério para os expertos...

Sobre as grutas em Turquel que Possidónio da Silva terá explorado, na zona do Cerro de Turquel, pois está aqui um breve relato (que fala essencialmente das explorações no Séc. XIX). Depois de serem chamados a Lisboa, parece que o expertos já nem saíram da capital, e os velhos métodos fumegantes dos pastores deram resultado - ou melhor, um resultado que permitiu que uma boa parte dos vestígios fosse só destruída no final do Séc. XX, quando os descendentes dos pastores já tinham outros interesses.

E se estou a ser irónico, é porque é para mim um total espanto este mapa ibérico de registos rupestres:
Mapa de registos rupestres pré-históricos na Península Ibérica
Passada a fronteira e os registos ficam escassos ou inexistentes...
E mesmo que este mapa tenha sido feito por espanhóis, não revelando algumas inscrições em pedra, que sabemos existir também em menires no Alentejo... o que é espantoso é praticamente estarmos reduzidos à gruta do Escoural, não foram as gravuras do Côa (mesmo na fronteira), para não dizer que não existe nenhuma gruta com inscrições rupestres em Portugal, quando comparamos com Espanha.
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Nota (13-03-2016)Texto editado, tendo em conta o destino reportado à Anta da Barbata (provavelmente destruída nos anos 1980) - www.turquel.com.


sexta-feira, 11 de março de 2016

Base Cartográfica

A Cartografia Portuguesa está muito dispersa na internet, e apenas uma pequena parte está na Wikipedia, não sendo sempre fácil colocar mapas aí, devido à política de rigoroso controlo de direitos legais que a wikipedia respeita.

Fomos contactados por David Jorge, que decidiu compilar uma grande base de dados cartográfica, especialmente focada na cartografia nacional:
e que tem mapas com elevada resolução.

Foto anterior - a localização foi mudada - está agora em Mega.nz

Em particular, David Jorge interessou-se pelo planisfério atribuído a Sebastião Lopes e Pedro Lemos (com datação atribuída de 1590):
Planisfério de Pedro de Lemos e Sebastião Lopes, datado 1590.
(download
Este mapa com datação tardia tem vários detalhes curiosos, nomeadamente na parte da Terra Nova e Labrador, onde se focou o David Jorge - sendo de 1590 não menciona posses francesas, evidenciando as portuguesas... ou qual seria a correcta interpretação da bandeira azul listada?

Mas não só. Há ainda uma cartografia de toda a parte Árctica com razoável precisão, especialmente se notarmos que a posição das bandeiras e indicará uma datação de c. 1530, ou seja, 60 anos anterior à atribuição oficial. Este mapa seria uma provável cópia de mapa anterior, também onde se poderá ter inspirado o Theatrum Mundi de Lavanha e Teixeira.

O Instituto Hidrográfico usa como símbolo uma Rosa dos Ventos, atribuída ao mesmo cartógrafo Sebastião Lopes, nesta outra carta de 1558:
Carta de 1558 de Sebastião Lopes, com a Rosa dos ventos,
usado no logotipo do Instituto Hidrográfico. (download do mapa)
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Nota - Actualização de 25/02/2017
- actualização do site para Mega.nz, conforme comentário de David Jorge.

Ver nova actualização (11.06.2018):
https://alvor-silves.blogspot.com/2018/06/dos-comentarios-37-ligacoes.html

segunda-feira, 7 de março de 2016

Revolta Lamacena

No Livro V, Cap. XI, da 2ª Parte da Monarchia Lusytana (página 76), de Bernardo de Brito, dá-se conta de uma revolta que teria ocorrido na Hispania romana, em tempo do imperador Trajano, e que teria sido apenas suprimida com o envio de 14 legiões romanas. 

Revolta hispânica e destruição de Laconi Murgi
Em consequência, diz Brito, que muitas das antigas cidades da Lusitânia eram antes fortificadas, mas foram completamente arrasadas pelos romanos nesta época, sendo reconstruídas em local vizinho, mas já sem qualquer protecção murada. 
Terá sido esse o caso de Lamego.
(...) diz Santo Isidoro, Vaseu, e o Gerundense [Bispo de Girona], que houve uma notável rebelião de muitas cidades de Espanha contra o Império Romano, sem especificarem a causa, nem darem razão dos meios por onde o negócio correu, só conformam em que mandou Trajano quatorze Legiões para reprimirem o levantamento, e atemorizarem os naturais da terra, que segundo se deixa entender, estavam deliberados de negar a sujeição devida aos Romanos, e pelo que li em algumas Epístolas de Plínio, o menor, deviam nascer estas inquietações das tiranias e exortações que cometiam os Governadores Romanos, que fiados nas mudanças ordinárias do Império, e vendo a brevidade com que mudavam senhor, atendiam mais a enriquecer-se, que a governar com justiça & inteireza, como por este tempo se viu em Cecilio Classico, Governador da Andaluzia, cujos excessos foram tão feios e exorbitantes, que foram muitos espanhóis a Roma, queixar-se no Senado, e sem dúvida que lhe dera satisfação na pessoa do delinquente, se ele próprio se não matara por evitar as afrontas de se ver em poder de justiça; mas o que não pagou em pessoa, satisfez sua fazenda, à custa da qual se mandaram pagar alguns dos roubos que tinha feitos, e saíram condenados em degredo todos os oficiais que o ajudaram no pro-consulado, cada um deles conforme à maior ou menor culpa que se lhe provava.
Também foi acusado por roubos e injustiças outro governador a quem Plínio chama Berbio Massa, & advogaram no Senado por parte dos Espanhóis, Herenio Senecion, & o mesmo Plínio, donde venho a conjecturar que a Rebelião de que os autores fazem menção, seria por se livrar das tiranias destes pretores e oficiais da República & deveria ser o levantamento notável, pois se mandou tão grande poder para o quietarem; mas como não há quem dê notícia do que passou nesta guerra, convém-me a passá-la em silêncio, com dizer só o fim dela, que foi o que ordinariamente têm todas as que começam sem fundamento, nem cabeça que as governe, rendendo-se tão sem ordem, como se levantaram sem fazerem boa paz, nem prosseguirem a guerra, por onde seriam exemplares os castigos que se fizessem nas pessoas de importância, quando o que fez nas pedras foi tão grande, que as mais das Cidades fundadas em lugares fortes, foram arrasadas por terra, & mandadas edificar de novo em sítios abertos, sem muros nem Fortalezas, em cuja confiança se tornassem a rebelar de novo. 
Foi este um lastimoso estrago, em que Espanha perdeu as Cidades de mais lustre & antiguidade que tinha. O Bispo Gerundense lamenta a ruina de Lamego, chamada antigamente Laconi Murgi (como já contei na primeira parte da Monarchia) & ele chama cidade dos Lamacenos, afirmando ser em fortaleza de sítio, grandeza de muros, & frequência de povo, maior que todas as outras de Espanha, & porque suas palavras mostram melhor sua grandeza, referirei as próprias: 
Prima itaque omnium Lusitanae erit urbs Lamacenorum, quindam opulentissima, grandi murorum ambitu circunsepta, inter flumina Doriam, & Liminum vulgus ungium vocat, colapsa vero refertur, Trajani imperatoris temporibus propter rebellionem. Erat autem ipsa urbs Dorio flumini satis propinqua, vivina Portugalliae regno. Erat praeterea maior omnibus urbibus hispaniae secundum Claudium Ptolomeum.
Quasi dizendo que a primeira e principal cidade que havia entre todas as da Lusitania, era a dos Lamacenos, que fora em tempo antigo opulentissima, & cercada de grandes muros, situada entre os rios Douro & Limino, a quem os moradores da terra chamavam Ungio, & deve ser o que hoje se chama Balsamão, ou Borosa. Foi esta cidade destruída nos tempos de Trajano, por causa de certa rebelião: estava esta cidade muy propínqua [próxima] ao Rio Douro, & comarcã ao Reino de Portugal: era além disto a maior cidade que havia em toda a Espanha, segundo Cláudio Ptolomeu.
As quais palavras declaram bastantement, e o sítio da terra, a grandeza da cidade, o tempo de sua destruição, e a causa pela qual foi assolada: & creio sem dúvida, ou ao menos com bastante probabilidade, que nesta conjunção se mudou Lamego de seu primeiro sítio, que foi onde agora se chama S. Domingos da Queimada, muy arriscado & forte por natureza, para este em que ao presente está fundada, que por ser mais chão e menos defensável, o mandariam edificar nele os Romanos: onde floresceu andando o tempo, se não tanto como no primeiro assento, todavia de modo que sempre foi Cidade Episcopal, como veremos no discurso desta história.
Entre as Legiões que vieram nesta ocasião a Espanha, foram a segunda Augustal, e a terceira chamada Italica, & assim nestas, como em todas mais, militavam muitos Portugueses, valorosos nas armas e que nesta ocasião foram de muito proveito às cidades e terras de onde eram naturais, intercedendo com os pretores e capitães (...)
Brito continua com um recado "filipino", pelo relato de alguns lusitanos, ao serviço de Roma, que pela sua intervenção impediram que a insurreição tivesse sido pior castigada nas suas vilas, falando ainda do caso de Arouce (ou Araucitana), donde teria surgido a vila de Moura.

Esta história, que Brito encontrou registada pelo Bispo de Girona, aparece associada a lendas locais, como em Gentil, Marques: "Lendas de Portugal" (Círculo de Leitores, 1997 [1962], Vol. II, pp. 303-308). que parece associar o episódio ao nome da freguesia de Queimada:
— Salvé, Trajano! Trago-te boas notícias.
— Que fizeram dos revoltosos?
— Mortos. Todos mortos!
— E a terra?
— Queimada! Liconimargi e os seus arredores são um montão de cinzas. Mas a rebelião findou!
 
e outra menos extensa que se liga à Ermida de São Domingos da Queimada... falando apenas dos amores de um oficial romano com uma "moira" de Queimada, mas coincidindo pelo menos com a atribuição das tribulações ao tempo do imperador Trajano.

Sobre as razões... 
Bernardo de Brito que, segundo os detractores vindouros, estava sempre pronto a falsificar tudo e mais alguma coisa (... "pela mente de ladrão, todos o são"), não tinha aqui mais nenhuma informação e adianta como possível explicação um despotismo generalizado dos pretores ao tempo de Trajano... que teria originado uma revolta por toda a Hispania.

Vou tomar o relato de Brito como plausível, porque simplesmente não alcanço o "sinistro plano" do monge de Alcobaça para inventar esta e outras histórias, citando para o efeito o Bispo de Girona... está visto, outro dos "inventores de grande imaginação"... que não agradaram à clientela histórica posterior, por razões muito mais fáceis de enumerar.

Tratando-se do tempo de Trajano, imperador nascido perto da actual Sevilha (Hispalis), podemos notar que a regência do primeiro imperador romano "não romano", se notabilizou por uma grande construção monumental. São muitas e impressionantes, as pontes atribuídas a Trajano, e das mais variadas formas e feitios! Não causa comichão ver tanto monumento atribuído a Trajano, mas causava muita dúvida ver uma parte desses monumentos atribuídos a Hércules, pela população inculta.

Pois. Trajano estaria muito longe de ser o primeiro, e igualmente longe de ser o último, se tivesse decidido atribuir a si mesmo obras anteriores.
Agora, é muito natural que uma decisão desse tipo tivesse levado a uma insatisfação generalizada da população. Renomear a Ponte Salazar como Ponte 25 de Abril é algo diferente de renomeá-la como Ponte "Durão Barroso", ou qualquer coisa do género.
Uma homenagem a esbirros ao serviço de poderes externos, empenhando a memória pátria a troco do protagonismo pessoal, seria facilmente pouco compreendida, e poderia desencadear um processo de revolta por toda a Hispania... nesses tempos passados, bem entendido.  

É ainda interessante a observação de que as ruínas de cidades romanas nos aparecem sem muralhas defensivas, característica mais adequada às que estavam na península itálica... o que depois facilitou a conquista bárbara, com o abandono dessas cidades sem protecção, e o regresso às vilas muradas por castelos.

Cortes de Lamego
Falando de Lamego, e como Bernardo de Brito ficou com as costas quentes de ter "inventado" as Cortes de Lamego, pena foi que não tivesse tido imaginação para ligar as duas coisas. Ou seja, o que impediria o monge de Alcobaça de inventar a história de que as cortes foram proclamadas em Lamego, com o simbolismo de comemorar a revolta ocorrida no tempo de Trajano?... 
Se não havia nenhum registo histórico, como pretendeu Alexandre Herculano, e vários outros, por que razão foi o monge lembrar-se de colocar essas cortes em Lamego?

Porém, a questão pode ser mais simples de compreender, havendo vontade disso.
Primeiro convém notar que se Bernardo de Brito menciona as "Cortes de Lamego" na sua Crónica Cistersence, o texto é transcrito pelo cronista-mor seguinte: António Brandão, em 1632. 
É o mesmo António Brandão que introduz o assunto com toda a cautela, dizendo que o documento que dispõe não deve ser tomado como fonte absolutamente segura.
Portanto, quando se apontou a origem da desconfiança a Alexandre Herculano, é simplesmente ignorar a leitura do original, onde a transcrição é feita com o devido aviso.

Os documentos em causa teriam vindo transcritos de Toledo, relacionando-se isso com a deposição de D. Sancho II pelo irmão D. Afonso III, no primeiro golpe de estado interno, coordenado por "poderes de bastidores".  Ora, o texto das Cortes de Lamego dispunha claramente contra essa deposição arbitrária, e por isso não haveria qualquer interesse em guardá-lo pelos sucessores de D. Afonso III e D. Dinis. Isso também justificaria a razão pela qual não se ouviu falar do documento aquando da crise de 1383-85... por essa altura estava convenientemente esquecido, e só D. Sancho II teria tido interesse em guardá-lo no seu exílio em Toledo.
A sua recuperação, usada depois para justificar a coroação de D. João IV, seria obra do monge de Alcobaça, que tão maltratado tem sido no seu desejo independentista.

Agora, o mais ridículo... Independentemente de Bernardo de Brito, e monges acólitos, terem forjado tal documento, no desejo de libertação dos soberanos espanhóis, interessa perceber a razão pela qual era tão conveniente declará-lo como falso no início do Séc. XIX, e não antes... porque antes deu jeito.
No início do Séc. XIX, D. Pedro IV pretendia colocar a filha, D. Maria II como herdeira da coroa portuguesa, casando-a com D. Miguel... num processo paralelo ao que tinha ocorrido com a rainha D. Maria I casada com o tio D. Pedro III. 
Porém, ou porque a beleza de D. Maria II não fosse resplandecente, ou porque se juntasse em redor de D. Miguel muita gente contrária aos planos da maçonaria, que D. Pedro IV seguia à risca, gerou-se o clima das "Guerras Liberais"... tendo como desfecho final a imposição de D. Maria II casada em 1836 com um príncipe estrangeiro - D. Fernando II, de Saxe-Coburgo-Gotha. 

O texto das Cortes de Lamego, verdadeiro ou falso, mas que tinha interessado ser verdadeiro desde 1640, dizia a este propósito: "Dure esta lei para sempre, que a primeira filha do Rei nunca case senão com português, para que o Reino não venha a estranhos, e se casar com Príncipe estrangeiro, não herde pelo mesmo caso;". 
Portanto, a situação era mais confusa, mas certamente que a Alexandre Herculano, adepto da causa de D. Pedro IV, não interessava nada encontrar qualquer referência às Cortes de Lamego, e era muito mais cómodo ver aquela lei como invenção conveniente de Bernardo de Brito, que já tinha as costas quentes, por esta altura... mesmo que tivesse sido António Brandão a publicar o documento.

Ora, o que é fácil, muito fácil mesmo, é encontrar razões de sobra para que os historiadores vindouros, epitetados de "científicos", tivessem procedido a uma mutilação histórica, muito do agrado da nova estória que seria contada em francês e inglês, e desprezando por completo a história ibérica anterior. E se é perfeitamente compreensível que fosse anulado o registo histórico assente no Velho Testamento, é absolutamente incompreensível que fossem anulados outros registos, cuja invenção não teria servido para nada aos autores... que aliás se baseavam em historiadores gregos e romanos, tidos como credíveis, desde Heródoto a Plínio... mas cuja supressão servia antes uma certa narrativa conveniente, que queria anular a todo custo uma história ibérica anterior aos Romanos.   

Ainda que haja necessariamente as dúvidas que o próprio Brandão assinalara na transcrição, as Cortes de Lamego, não se podem julgar pela opinião de Alexandre Herculano e contemporâneos, por maior razão de dúvida sobre si, do que a dúvida sobre as intenções de Bernardo de Brito.

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Cortes de Lamego
(texto traduzido do latim pelo cronista-mor António Brandão,  na sua
3ª Parte da Monarquia Lusitana, 1632, Livro X, Cap. XIII, folhas 141-145 ) 

domingo, 6 de março de 2016

Alvo de Maia (Volume 7, nºs 1 e 2)

Ficam aqui os links para os números 1 e 2 do Volume 7, correspondente a este ano 2016.
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