Um dos interessantes aspectos evolutivos é a abnegação individual das células animais.
Lembrando a origem celular, os animais começam por ser uma única célula, chamada ovo.
No entanto, ao fim de pouco tempo, essa única célula vai-se duplicando sucessivamente, e no final de contas, no caso humano, estima-se que o número total de células, formadas a partir da primeira, a partir do ovo, sejam
37 biliões (... em inglês "triliões"), ou seja, há 5000 vezes mais células num homem, do que a totalidade de homens na Terra.
Se tão cientes estamos da nossa individualidade, então em que célula estamos nós?
Há alguma célula no corpo humano que possa reclamar tal importância, que sem ela deixaríamos de ser? Bom, é claro que não... mas não é claro porquê.
Com efeito, sabe-se que as células vão sendo substituídas, ou morrendo, sem darmos conta do processo. O mais natural é que as moléculas do ovo inicial já nem estejam no nosso corpo. Portanto, aquele "eu" que se associa ao corpo físico, fisicamente não se associa a nada de concreto.
A única característica que os organismos multicelulares partilham entre as suas células é terem todas a mesma codificação do DNA. As células podem ser extremamente diferentes - entre um neurónio que é comprido, e uma célula de Merkel, que está na pele, na extremidade do nervo, o ponto comum é esse material genético.
No entanto, duas células de Merkel de fulanos diferentes são praticamente semelhantes, enquanto a única coisa em comum entre o neurónio e uma célula de Merkel, será a ligação pelo axónio.
Aliás o ponto chave da medicina é que praticamente de um fulano para o outro, tudo é muito semelhante no funcionamento, e se prevalecesse alguma individualidade nem a medicina exisitiria.
Do unicelular ou multicelular
A questão fundamental neste aspecto dos seres eucariotas, que vão desde amebas, unicelulares, até plantas e animais, é que as células são individualizadas por um núcleo. Simplesmente houve alguns seres eucariotas que não evoluiram em organismos complexos, permaneceram como células únicas, e não formam nenhum organismo, como é o caso das amebas. Com efeito, a maior cadeia de DNA não é a humana, é justamente a de uma ameba, a
Polychaos dubium:
A questão evolutiva é perceber a vantagem da associação celular, em que as células desprezaram a sua individualidade para definir uma nova individualidade, enquanto grupo ou organismo.
Enquanto uma ameba sobrevive sozinha, uma célula num animal só sobrevive enquanto o animal viver. Não haveria especial razão para as células perecerem todas quando o animal morre, excepto que, falhando a sua completa dependência na alimentação sanguínea, perderam toda a sua capacidade de encontrar subsistência autónoma.
Uma célula animal é um ser social. Tem um lugar e uma função específica na estrutura do organismo. A sua operacionalidade é crucial para certas funções, algumas vitais. A moeda de troca nesta organização extremamente complexa é a rede sanguínea, que funciona como uma rede comercial que garante a alimentação de todas as células. Uma falha nesta alimentação leva à morte celular, os tecidos tornam-se putrefactos, e todo o organismo arrisca perecer se as suas partes não estiverem saudáveis. Ou ainda, por quebra do protocolo de obediência celular, algumas células tornam-se rebeldes, desenvolvendo uma estrutura cancerígena, em que voltam a gozar de uma liberdade temporária, até que o seu sucesso é a falência do organismo, o que finalmente redunda num completo insucesso para todas as células, obedientes ou rebeldes.
Social - do animal ao multianimal
Não é difícil perceber que há um ponto comum na associação celular com vista à formação de um organismo animal, com alguns animais que evoluiram num sentido social. Tal como as células perderam a sua individualidade em favor de um organismo superior, de que faziam parte, também formigas, térmites, abelhas ou vespas, ganharam características sociais, em que cada indivíduo passava a funcionar como uma célula, e a colónia passava ganhar características próprias de um novo organismo.
Porém, nada disso é tão significativo quanto o que veio a acontecer no caso humano.
O aspecto social ganhou uma importância tão marcante que os indivíduos, tal como as células, passaram a ter uma subsistência quase completamente dependente de uma rede comercial.
As redes comerciais começaram a funcionar como fluxos sanguíneos que alimentavam cidades e aldeias. Os indivíduos começaram a especializar-se em certas tarefas, tal como as diferentes células são especializadas em diferentes tarefas, consoante o órgão a que pertençam.
Porém, o aspecto mais curioso é que mesmo em termos de filosofia social, surgiu o comunismo, onde a individualidade era colocada bem abaixo da colectividade, como se estivesse a ser formado um organismo superior, bem mais importante que as células individuais.
Não interessa tanto perceber se essa colectividade era apenas um meio de dar uma extensão de poder aos indivíduos que detinham o poder, interessa notar que todos os mecanismos presentes na passagem da individualidade para sociabilidade, parecem ser copiados do processo que levou as células a decidirem pela pertença a organismos multicelulares.
O ponto interessante é que da estrutura multicelular surgiu uma nova entidade, um organismo que assumiu em si a individualidade perdida pelas células... da mesma forma que a individualidade perdida pelas pessoas numa sociedade comunista seria herdada pelo Estado. Poderá questionar-se então se essa nova entidade que se forma pela fé das pessoas num organismo social, ganhará ela própria uma consciência autónoma das pessoas que a constituem? Enfim, tal como a consciência humana nada parece estar ligada a qualquer "consciência celular", poderia esta evolução em agrupamento multi-animal levar a evolução a um nível superior?
Ora, é claro que não, mas não deixará de haver quem julgue de forma diferente, mesmo que nenhuma razão objectiva se ligue ao assunto.