domingo, 27 de agosto de 2017

Âncoras (5) - Ancara, Angorá

Por vezes os novelos são tão intrincados trazem à memória coisas tão simples, como lembranças de infância, em que via a minha avó a tricotar, rendas (que não eram de altice, ou doutra chulice), e que me renderam apenas uma colcha, e sobretudo agradáveis memórias. 

A empresa Âncora já não existe, mas basicamente era a que fornecia todos os fios de tricotar, saindo da revolução industrial na cidade paroquial escocesa de Paisley (por via de George Clark), onde as instalações Anchor Mills já servem apenas como museu.
Esta memória teria relevo num blog de nostalgias, mas aqui o relevo diz respeito ao símbolo da cidade de Ancara, capital turca, que era expresso em moedas romanas antigas:
 
A representação de Ancara com o símbolo da âncora, em moedas romanas (imagens daqui, daqui e daqui).

Há assim uma ligação entre Ancara e Âncora.
Claro que poderíamos dizer que "âncora" e "ancara" são palavras muito parecidas, mas isso não seria nada mais do que simples especulação... e há bastante mais que isso!

Pausanias
Primeiro, é razoavelmente estranho associar uma âncora a uma cidade muito longe da costa, a 1000 metros de altitude face ao actual nível do mar. No entanto, há um registo lendário sobre o nome que justifica a âncora. É o geógrafo Pausanias que o refere, quando menciona a invasão gaulesa:
Este povo ocupou a terra na parte mais distante do rio Sangarius, capturando Ancyra, uma cidade dos Frígios, que Midas, filho de Górdio, tinha fundado em tempos antigos. E a âncora que Midas encontrou, até ao meu tempo [Séc. II], estava ainda no santuário de Zeus, bem como uma fonte, chamada Fonte de Midas, cuja água, dizem, Midas misturou com vinho para capturar Sileno.
Pausanias: Description of Greece (Tradução de W. H. S. Jones & H. A. Ormerod). Londres, 1918. 

Na tradução inglesa usa-se "Ancyra", outra escrita de Ancara, pois é usada a transliteração do upsilon em ípsilon, senão ficaria Ancura - quase idêntico à pronúncia de Âncora. Os tradutores colocam até uma nota de rodapé, afirmando "A legend invented to explain the name Ancyra, which means anchor". Por outro lado, a palavra grega tem um gama e deveria ler-se "agcura", que foneticamente continua quase igual a "âncora", e daí pode surgido a variante Angorá, adjectivo gentílico usado para dessa região turca. Em particular, gatos e cabras felpudas, angorás, cuja lã era apreciada em tempos vitorianos - levando à sua exportação para a Austrália, por exemplo. Poderia haver assim uma sugestão de ligação da marca Âncora à lã angorá, através do símbolo da âncora da cidade turca.

Âncora em altitude
Se Midas (ou quem quer que fosse) encontrou uma âncora em Ancara, o problema seria de saber como teria ido ali parar... ou seja, se fazia parte de uma construção para uma embarcação - e nesse caso não seria nada de muito estranho, que merecesse referência especial... ou se essa âncora fazia parte de um navio ali encalhado - bom, e nesse caso, a hipótese seria um dilúvio mundial. Ora, isso seria já algo digno de registo, que mereceria menção para a posterioridade, e daria um sentido profundo ao nome de Ancara.
É nessa hipótese que coloco este texto na sequência de outros textos sobre âncoras suíças, porque também na questão das âncoras encontradas em Basileia, o problema era semelhante... mas com menos de metade da altitude.
Há ainda um outro ponto... é que Ancara não está muito longe do Monte Ararat, a referência bíblica para o evento diluviano. Portanto, seja por razão histórica ou lendária, os eventos conjugam-se.

Galácia
Já falámos da invasão celta que Breno levou até às portas de Roma em 390 a.C. Essa mesma expansão celta teve um outro episódio significativo, com movimentações armadas que ameaçaram os gregos em 278 a.C., sob direcção de um outro Breno, tendo os gauleses sido derrotados nas Termópilas, antes de poderem saquear os tesouros gregos de Delfos.
Diversas expansões celtas entre o Séc. VI a.C. e o Séc. III a.C.

A pesada derrota celta, com a morte/suicídio de Breno, forçou os restantes a tentarem uma incursão pela Ásia Menor, cercando Bizâncio, e acabando por se fixar na região de Ancara, depois de terem sido convidados pelo rei Nicomedes da Bitínia e derrotados pelas tropas de Antíoco, numa história conturbada.
Interessa que um grande número de celtas, ou galátas, como eram também conhecidos pelos gregos, acabou por se instalar na região de Âncara, levando à definição de uma região que em tempos romanos - e ainda hoje - se chama Galácia (e que dá origem ao nome Galatasaray, como principal clube de Âncara).
É assim interessante que no centro da região turca, em torno de Ancara, se encontrasse um grupo de gauleses, que definiram um estado e identidade próprias, durante vários séculos.
Terão aderido ao culto da deusa Cíbele e de Átis, culto que era próprio da região vizinha da Frígia, e que foi adoptado pelos gregos e também pelos romanos. Os sacerdotes eram eunucos, denominados Galos (ou Galli) nome suficientemente ambíguo, mas que remeteria para também para os gauleses emigrados, que nas partes da Lídia, eram abstinentes de carne de porco (constando essa ideia de que teriam sido javalis e porcos, enviados por Zeus, a alimentarem-se dos restos humanos de Átis).

Bom, mas tirando os diversos detalhes, mais ou menos soltos, não deixa de ser curiosa esta ligação antiga entre a Gália e a Galácia... ao ponto de que as invasões turcas nunca parecem ter incomodado os franceses. De facto, entre França e Turquia basicamente houve sempre um "clima de paz", até à Primeira Guerra Mundial, onde a Turquia se teve que redefinir, para evitar a completa partilha do território pelos vencedores... mas já não com a capital em Istambul, mas sim em Ancara.
Assim, quando enquadramos a acção e documentação turca quinhentista, nomeadamente na cartografia, convirá não esquecer que pelo lado da Turquia aparecia também a França.


sábado, 26 de agosto de 2017

sábado, 12 de agosto de 2017

Pirâmide de crânios

No mundo quinhentista, um dos vários antecedentes que levaram a uma escalada de tensão entre turcos, árabes e cristãos, ocorreu em 1560, na ilha tunisina de Djerba, num episódio particularmente cruel e macabro. 
Expor corpos mortos, como forma de impor respeito ou terror, terá sido uma prática antiga, em particular medieval, onde desde esqueletos pendurados e cabeças espetadas em lanças, faziam parte de uma paisagem ameaçadora, com o intuito de manter a ordem... a ordem existente, claro está, pouco interessando outra. Mas, estas exibições macabras raramente durariam mais que alguns dias, meses ou anos.

Ora, pela sua duração - durante 320 anos (de 1561 até 1881) - a exibição de uma pirâmide empilhada com crânios de cristãos decapitados, conhecida como Borj er Rous ("Torre de Crânios"), foi talvez uma das mais longas exibições de impiedade, construída ao largo do castelo Borj el Kebir, à vista de todos os que passassem pela ilha de Djerba.

A pirâmide de crânios tinha 9 metros de altura, e teria sido erguida com um número que poderia atingir as 5000 vítimas - soldados invasores.
Estampa com a Pirâmide de Crânios, de soldados cristãos, mortos numa invasão falhada.

O macabro monumento só foi destruído pelos franceses, quando em 1881 a França invadiu a ilha, e a Tunísia ficou então como protectorado francês. As ossadas foram levadas para um cemitério cristão, e em substituição, os franceses ergueram um obelisco com dimensões semelhantes.

Foto com o Obelisco francês, que veio a substituir a Pirâmide de Crânios.

Antes disso, podemos ler um artigo relevante, na revista portuguesa Archivo Popular, que contava a história desta batalha em Djerba, e do destino funesto que ocorrera ao exército enviado por Filipe II, que pretendia recuperar o controlo da ilha, e de Tunis - antes conquistada pelo seu pai, Carlos V. 
Aquando do artigo (1840) o macabro monumento ainda se encontrava em exibição em Zerbi... (Zerbi ou Gerbi, foram outras formas de escrever Djerba):


Extractos da notícia do Archivo Popular em 1840 (nº3 pág. 22 , continuada no nº4 pág. 30)

Brevemente, a esquadra cristã tinha como almirante principal o genovês Giovanni Andrea Doria, incluía as forças do grão mestre maltês Jean de la Vallete (ver Santelmo), e o vice-rei espanhol da Sicília, Juan de La Cerda (ou Lacerda... em ambos os casos, "La Cerda" significa "A Porca", antigo nome dos duques de Medina-Sidónia). 
La Cerda, o vice-rei espanhol, ficara responsável pelo desembarque, onde contava com José de Savedra para o comando das tropas. De início, a população árabe foi apanhada desprevenida, as tropas cristãs lideradas por Savedra cometeram excessos, particularmente atrozes, e segundo o Archivo Popular, isso motivaria uma vingança desesperada (usando uma comparação notável com os índios norte-americanos). Acresceria ter sido uma vítima de Savedra a princesa Zobah, filha única do chefe árabe Yokdah, provavelmente um corsário, para aguçar a forma da vingança. 
Tendo sido eficazes os pedidos de ajuda árabes à armada turca, levaram à fuga do almirante Doria, e à fuga de La Cerda (que nem havia desembarcado), ficando os soldados cristãos liderados por Savedra à sorte do cerco da população, tendo sido todos decapitados, por ordens de Yokdah, que teria sido particularmente cruel com Savedra, colocando depois o seu crânio no topo da pirâmide.  

O crânio no topo da pirâmide, do comando da armada, não foi a cabeça que ficou no topo da pirâmide de caveiras. Filipe II não estava, Doria escapou, e La Cerda também, ficando apenas Savedra como crânio visível, já que a inteligência se guardou convenientemente nos bastidores.

Ao contrário de Carlos V, seu pai, Filipe II nunca ousou participar nas incursões à Tunísia. Em 1574, Tunis acabou por cair em domínio turco (até à conquista francesa), e o Mediterrâneo continuou a ser alvo dos diversos ataques da armada turca, por Turgut Reis, com ênfase em Malta, e os raides de corsários bérberes estendiam-se até ao Atlântico, do Algarve às costas da Irlanda e Islândia. Algo que praticamente só terminou com o domínio marítimo de ingleses e franceses no Séc. XIX.

Nesta expedição, conhecida como Batalha de Djerba a derrota cristã foi enorme, tendo perdido mais de 60 navios e uma estimativa de 14 000 homens.
O monumento vitorioso foi bastante macabro, e foi repetido pelos turcos, na concepção da Torre das Caveiras, aquando da primeira tentativa de revolta da Sérvia, em 1809... já que os rebeldes de Stefan Sindelic preferiram fazer-se explodir, do que serem empalados pelos turcos.
A ideia de que as civilizações muçulmanas, ou cristãs, têm na base uma filosofia religiosa que promove o respeito pela "pessoa humana", confirma-se... sempre que não há excepções, e as excepções ao respeito humano, foram quase sempre a regra. Para conveniência da reescrita histórica, esta pirâmide macabra é colocada como "obra de corsários, piratas", parecendo que durante 320 anos, nenhum poder islâmico teria capacidade de fazer o que os franceses fizeram - demolir!

Também aqui vemos como certas derrotas são convenientemente ocultadas, nos bastidores da história de Filipe II, e outras empresas mais francas e destemidas, como a de D. Sebastião, tiveram o badalo acusatório sempre a funcionar. Como se o Infante D. Henrique não tivesse sido levado também a empreender uma desastrosa aventura terrestre a Tanger, onde salvou a sua vida em troca da vida do seu irmão, o Infante D. Fernando. 
A cobardia, desonra e falta de carácter, parecem manter um lugar cimeiro na história mundial da falta de vergonha, mais preocupada com alguns fins alcançados, do que com a falta de princípios pelo meio. Enquanto os historiadores continuarem a ser piores que bobos da corte do despotismo vencedor, é certo que a moralidade reinante continuará pelas ruas da amargura.


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Viriato I, Apimano, Cesarão, Cancheno...

A lista de celebridades lusitanas contra o poder romano, normalmente só inclui um nome - Viriato.
No entanto, há várias referências a outros protagonistas, e em particular a dois Viriatos.

Viriato I
Este primeiro Viriato podemos vê-lo mencionado em [1], em 3 pontos distintos:

  • "Em Portugal houve dois Viriatos: um era Regulo, que passou com Annibal a Italia acompanhado de seus vassallos, como refere Silio Itálico lrv. 3, o outro foi mais conhecido, e destro na lança, que no cajado, como diz Camões, e segundo aííihna Justino liv. ult, não produziu Hespanha outro varão mais valeroso em muitos séculos do que Viriato."  (pg. 269)
  • (a propósito de Aníbal): "constavam suas tropas, além de africanos, de um grande número de Lusitana soldadesca, vetones, turdulos, e celtas, da qual era commandante Viriato I." (pg. 150)
  • "Escolhida pois Itália para theatro da guerra, principiou Anibal a assombrar os romanos; e sendo muitas, e repetidas as batalhas, em que os nossos occupavam sempre as testas dos exercitos, como lugares mais arriscados, vencendo os cônsules Cneyo Servilio, Cajo Flaminio, Lucio Emilio, e Cayo Terencio, nenhuma grangeou para a fama nome de maior permanência, que a chamada batalha de Canas; na qual depois do primeiro Viriato ter morto seis mil romanos, lhe tirou a vida o cônsul Paulo Emilio, cuja perda resarciram os nossos incitados da indignação, e vingança, chegando a escalar cincoenta mil soldados inimigos em recompensa de um só Viriato."  (pg. 150)  [Sil. Ital. lib. 10. Resond. lib. 3. de Antiquít.]

Apimano, Cesaron e Cancheno
  • "Entre os nossos capitães, que deixaram resplandecente nome na venerável duração da memória, foram Apimano, Cesaron, Chancheno, Viriato, e Sertório, cujas gloriosas proezas occupam até as historias dos que pertenderam diminuir-lhe a fama." (em [1])
  • "N’este governo (de Marco Manilio) floreceu um insigne capitão bracarense, chamado Apimano, a quem se seguio Cesaron, que ambos aterraram os romanos." (em [1], p.153)
  • "Os Lusitanos tendo escolhido para seu Capitão o esforcado Apimano, abismaram as Aguias Romanas, e puzeram essa perturbação a toda a Roma. Senhor das campanhas o nosso Capitão Apimano, imperiosos com o seu governo os Lusitanos ganhavam victorias, e fora ellas muitas Cidades. Por sua morte escolheram para successor de Apimano ao Lusitano Cesaron e o fizeram seu commandante com tanta fortuna, e gloria da Pátria , como susto e terror da mesma Roma. A passo largo buscava o Pretor Lucio Mumio ao nosso Cesaron , que encontrou erabaracado na passagem do Guadiana, e se valeo deste embaraço para o esperar em Villa-Viçosa, onde medidas valerosamente as armas, cedeo o valor Lusitano ao maior numero de forças Romanas, e quando os nossos fugiam, Cesaron para; inrísta a langa contra os tímidos, compóe-se logo hum esquadrão , os Lusitanos todos correm a buscar as suas bandeiras , e conseguem derrotar ínteíramente o Inimigo, com perda de maís de dez mil Romanos. Que valor! Que herocidade! "   (em [2])
  • "Triunfante entrou Cesaron por Lusitania , carregado dos despojos Romanos , quando em outro encontro nos desbaratou Mumio, e perdeu a vida Cesaron. Os Lusitanos elegeram logo por seu Capitão a Cancheno, Cidadão de Lisboa, que ganhou a Cidade de Cunisturgi, penetrando até Gibraltar, sem haver quem lhe impedisse o passo. As nossas tropas se dividiram, humas forao continuar a guerra na Andalusia, outras passaram a conquistar em África as Cidades Carthaginezas." (em [2])
  • Capítulo XXVI da Monarchia Lusytana de Bernardo de Brito: "De como os portugueses de Entre-Douro e Minho tomaram por seu capitão a um bracarense chamado Africano e das Guerras que fizeram aos Romanos"
  • Capítulo XXVI da Monarchia Lusytana de Bernardo de Brito: "Da guerra que os portugueses tornaram a tomar contra Roma, debaixo da Capitania de Cesaron, e da insigne victória que alcançaram do Pretor Lúcio Mumio."
  • "Victoriosos os Bracarenses e aliados, foram queimando tudo desde o Guadiana até ao Estreito de Gibraltar, sem dar perdão a morador, ou edifício, que pertencesse ao povo Romano; subiram pela Anduluzia tão felizes que os Vetões Portugueses da Extremadura juraram perder as vidas por defender as bandeiras do General Bracarense Africano; ganharam Cidades, e Presidios Romanos, em que deixaram novas guarnições; só lhes resistiam os Blastofenices, cercada a Cidade, e Apimano querendo dar exemplo ao exército no escalar os muros, foi o primeiro que subiu para montallos; porém os defensores que já se julgavam perdidos, querendo vender caras as vidas, mataram Apimano às lançadas; e o exército vendo-se sem Capitão, perdeu logo o costume de vencer, cada hum buscou a sua pátria, e cessou por algum tempo a guerra. Elegeram os Bracarenses, e aliados em lugar de Apimano outro Português valoroso, chamado Cesarão, este prevendo o despique dos Romanos compôs nosso exército entrou nas terras, que obedeciam a Roma, e foi tal o damno, e o roubo, que a toda a presla os vexados pediram ao Consul Quinto Fulvio Nobilior viesse socorrellos, e domar os povos de Celtiberia, e os Numantinos, de quem os Romanos sempre tiveram receyos bem fundados..."     (em [3]) 
  • "Vemos Apimano,  nome que a Historia nos transmittiu como de um esforçado  capitão, e com grandes talentos para a guerra, ser nomeado general d'aquelle povo : vêmol-o obrigar os povos vizinhos a insurgirem-se contra o poder de Roma, e reunirem-se às suas bandeiras : vêmol-os lançarem-se sobre os romanos e expulsarem-os das suas terras : vêmol-os, em fim, ousarem esperal-os novamente em campo, vencerem-os, e tomarem-lhes até o proprio arraial, onde acharam ricos despojos! A noticia d'esta derrota immediatamente se enviou de Roma novo Pretor que perdeu tambem a pri meira batalha que se aventurou a offerecer aos Lusitanos : e estes atravessaram o Guadiana, e fizeram tributario todo o paiz até o Estreito ! Depois de tantas derrotas, estes feitos de armas podem reputar-se maravilha". (em [4])
  • "Neste meio tempo Apimano morreu na escalada de Blatophenice; e este golpe fatal desvaneceu, em parte, as esperanças dos Lusitanos, que levantaram immediatamente o cerco para na patria fazerem as ultimas honras funebres ao seu general. -  Bem conheceu este povo as tençôes de Roma com aquelle reforço que mandou à Peninsula, sob as ordens de novos capitães, e por isso tractou quanto antes da sua defeza. Noméaram para general a Cessarão ou Cœsaras, que servira sob as Ordens de Apimano." (em [4])
Só depois deste trio: Apimano, Cesarão e Cancheno, é que sucede Viriato a reunir as tropas contra os romanos, e sendo quem teve mais exito, terá aniquilado a memória do primeiro Viriato. 
Estes três nomes desaparecem quase por completo na literatura do Séc. XX, mas reais ou lendários, fizeram parte da literatura ou historiografia portuguesa.

Referências:
[1] "Mappa de Portugal. Antigo e Moderno." de João Baptista de Castro (1700-75), edição de 1870 revista e acrescentada por Manuel Bernardes Branco.
[2] "Gabinete Histórico", de Cláudio da Conceição, edição de 1818 dedicada a D. João VI.
[3] "Academia dos humildes, e ignorantes", de Joaquim de Santa Rita (1762).
[4] "História de Portugal" de Francisco Araújo (1852)




sexta-feira, 4 de agosto de 2017

São Martinho e São Sebastião, de El Greco

A 4 de Agosto de 1578 deu-se a batalha de Alcácer Quibir, e o desaparecimento de D. Sebastião, com 24 anos de idade. Deixamos aqui dois dos seus retratos mais conhecidos, e depois uma representação de São Martinho, pelo pintor espanhol "El Greco", de origem grega.

 


Que o quadro de El Greco, realizado uns 20 anos depois de Alcácer-Quibir, na figura de S. Martinho me fez lembrar imediatamente as representações anteriores de D. Sebastião, pois isso não há nada a fazer, e que o tenha visto pela primeira vez exactamente neste dia (4 de Agosto), também não.

Adiante... porquê São Martinho?
Ora, acontece que Malyn Newitt no seu livro "Portugal in European and World History", diz na página 93, algo muito interessante, a propósito da "Armada Invencível" de Filipe II:
"The flagship of the Armada was the now veteran São Martinho, which had accompanied Dom Sebastião to Morocco and had already served three times as the flagship of Spanish armadas in the Atlantic."
Ou seja, existia um grande galeão português, de nome São Martinho, que teria acompanhado D. Sebastião na expedição de Alcácer-Quibir, e que encabeçava em 1588, dez anos depois, a frota comandada pelo Duque de Medina-Sidónia, no planeado ataque à Inglaterra. (Esta informação é razoavelmente diferente da que consta na Wikipedia, enfatizando que o galeão teria sido construído em 1580.)

Independentemente do resto, ficam algumas questões: 
- o que aconteceu aos galeões, naus, ou caravelas, que transportaram o exército de D. Sebastião a Marrocos? Aparentemente, de Tanger terão regressado a Portugal, sem uma boa parte do exército de D. Sebastião, que acabou preso em Marrocos; 
- quem teria dado a ordem de regresso, uma vez que o rei estaria "desaparecido em combate"?
- ou ainda, quem tinha ficado com o comando da força naval estacionada em Tanger? estaria excluída a opção de atacar navalmente Laracha, para proteger uma retirada? 

Doménikos Theotokópoulos, muito antes de ser catalogado como "El Greco", começou por pintar, assim que chegou a Toledo, em 1577, a figura de um São Sebastião algo confiante e indiferente às setas que lhe atravessavam o corpo:

Porém, no final da sua vida, entre 1610-14, irá fazer um outro retrato de São Sebastião, muito mais estilizado, e o qual chegou ao Séc. XX dividido em duas partes, tendo a parte de cima sido recortada. 

Não penso que tenha havido propriamente uma vontade de mutilar a parte superior, mas muito mais uma vontade de separar a parte superior da parte inferior. Para perceber a razão desta necessidade de separação, mostramos a parte inferior do quadro de S. Martinho e a parte inferior deste quadro:
... ora o que se veria em ambos os quadros seria a mesma paisagem - Toledo à distância, com as mesmas muralhas, arcos e pontes.

A inconveniência do assunto seria estabelecer a relação entre um e outro... entre um São Martinho, que tem uma figura de cavaleiro que - desde as feições, à armadura, à cor do cabelo, e jeito das mãos - se pode identificar com o retrato de D. Sebastião feito por Cristovão de Morais; e entre o outro, que sendo de São Sebastião, se identificaria naturalmente com o monarca sacrificado, pelo nome do santo.

Além de tudo o resto, a genialidade de El Greco parece evidente, mesmo na técnica... como se tivesse saltado uns séculos para antecipar o movimento modernista parisiense, onde Picasso viveu, e muito se terá inspirado nele. 
Que El Greco não poderia ignorar o drama de D. Sebastião, isso parecerá visível até para um cego, pois para um grego sob domínio veneziano e sob ameaça turca, que chega a Toledo no momento em que D. Sebastião vai desaparecer em África, combatendo a expansão turca, seria difícil considerar que em nada lhe interessava a matéria. 
Porém, por outro lado, trabalhando para Filipe II, já terá sido uma sorte ter resistido o quadro de São Martinho, facilmente argumentando que o modelo poderia ser um qualquer outro cavaleiro alourado, com armadura da época, e que não fosse D. Sebastião, montado no seu cavalo branco - até porque faltava o nevoeiro (... e mesmo assim a pintura original acabou nos EUA). 
Que outra associação mais directa levaria a que lhe "cortassem as pernas", parece ter acontecido literalmente com o segundo quadro de São Sebastião, dado exibir a mesma paisagem de Toledo, que esteve assim, com a parte das pernas separada do corpo.

Que o mendigo se encontra numa posição semelhante à reservada ao canídeo, no quadro de Cristovão Morais, e que o último São Sebastião terá afinal passado da posição de cavaleiro à posição de martírio, poderá ou não relacionar-se com o destino dos pretendentes sebastianistas, que acabaram condenados e mortos... sendo o Prisioneiro de Veneza mais credível que os outros.

Enfim, tudo poderá não passar de uma pequena série de coincidências... como também se pode encarar como uma série de coincidências - o sol nascer e pôr-se todos os dias. A diferença está na compreensão - num caso pode ficar-se dependente de rezas e sacrifícios para o sol ir renascendo, noutro tipo de compreensão isso tornou-se simplesmente ridículo...


Aditamento [5/08/2017]:
Donizetti, o grande compositor italiano do "Elixir do Amor", teve seu último sucesso na grande ópera "Dom Sebástien", cantada em francês e estreada em Paris em 1843, com base numa peça ficcionada de P. Foucher, com um grande sucesso teatral em 1839.

Dom Sebastien - ópera de Donizetti (em 1998, pela Orquestra de Bolonha).

Apesar do libreto ser inspirado no tema da sucessão do rei português, juntava num mesmo palco D. Sebastião, Camões, o Prior do Crato, e até uma princesa árabe, visando adicionar à história elementos exóticos e românticos.
Donizetti terá escrito a Mayr:
           «Neste momento estou a escrever uma nova ópera em cinco actos para Paris. É D. Sebastiano di Portogallo - você vai reconhecer a história da mal fadada expedição organizada pelo rei contra os mouros, a perda do seu exército e a sua morte que ainda hoje permanece misteriosa. O assunto resume-se a isto. Vai ainda incluir o grande poeta Camões - a inquisição que trabalha secretamente para tornar Portugal num escravo de Espanha - um pouco de tudo na realidade.»

Esta foi a última ópera das 75 escritas por Donizetti, que após isto foi entrando num estado de demência progressivo, levando à sua morte alguns anos depois.
Esta ópera é especialmente pouco conhecida em Portugal, onde não sei se alguma vez terá sido apresentada, apesar do grande sucesso que teve na sua estreia em Paris, há quase 175 anos.


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Raczynski: Les arts en Portugal (1846)

Conde Atanazy Raczynski
Os condes Raczynski foram considerados uma das famílias mais influentes na Polónia, até pelas ligações que teriam aos Habsburgos, que dominavam o Império Austro-Húngaro. Como em toda a boa família aristocrata, um aspecto muito relevante é a sua capacidade serpentina, ou seja, a faculdade de se tornarem praticamente invertebrados, ou vertebrados altamente flexíveis, o que no caso significou colaborar com a ocupação prussiana da Polónia no Séc. XIX.

O conde Atanásio Raczynski serviu o consulado do governo prussiano em Portugal, durante 1842-48, e aproveitou a sua estadia nestas paragens bárbaras para relatar (em francês) o "estado da arte" em Portugal, num conjunto de 29 cartas compiladas sob o título "Les arts en Portugal".

O relato acaba por ser importante, porque só uns 20 anos antes é que Cirilo Machado, em 1823, tinha compilado sistematicamente um registo de pintores, gravadores, escultores e arquitectos que tinham trabalhado em Portugal, com o título: 


... sendo por isso considerado o primeiro historiador da arte portuguesa. 
Aliás Cirilo Machado nem sequer teria publicado a obra, foi por iniciativa do seu editor (da Impressora de Victorino Rodrigues da Silva), que a obra saiu sob a forma de livro, e viu a luz do dia.
Como estas coisas tendem a apagar-se de novo, porque afinal as sombras vivem do ocultar da luz, estive entretido a colocar estas menções na Wikipedia em português, onde praticamente não havia qualquer referência ao assunto. Mas quero destacar especialmente as palavras do editor ao publicar a obra de Cirilo Machado:
"Julgamos fazer à Pátria, e à Glória Nacional algum serviço publicando estas Memórias, que seu Autor recolheu com sumo trabalho, e que a sua modéstia, e natural encolhimento não ousou publicar em sua vida. Ninguém poderá duvidar que são muito escassas, e até inéditas as notícias de todos aqueles Artistas, que enobreceram a Nação por meio de suas Obras, quando os Vasaris, Rafaeis Sopranes, Rossis, Leonardos da Vinci, e Palominos se ocuparam em deixarem à posterioridade um monumento precioso, tem havido entre nós o mais ingrato silêncio, não perpetuando a memória de muitos Portugueses nelas insignes."
No entanto, como seria de esperar, o impacto desta obra foi reduzido, e só tive conhecimento dela notando o nome de Cirilo Machado como título da 27ª carta de Raczynski. Mesmo o relato de Raczynski, apesar de extensamente divulgado à época, teve um impacto europeu reduzido, e a arte portuguesa continuou como uma pequena nota de rodapé europeia, escrita em francês.

No entanto, Atanásio Raczynski vai começar por apresentar uma tradução de um texto notável de Francisco de Holanda, resultado da sua estadia em Roma, onde este teve a oportunidade de travar extensas conversas pessoais, acerca de pintura, com o famosíssimo Miguel Ângelo. Um livro com esses diálogos está disponível em português:

de Francisco de Holanda (1546)

É sobre esses diálogos que me interessa fazer uma pequena consideração, porque Francisco de Holanda diz o seguinte no prólogo:
Mas de uma coisa é infamada Espanha e Portugal, e esta é que em Espanha, nem em Portugal, não conhecem a pintura, nem fazem boa pintura, nem tem sua honra a pintura; e vindo eu de Itália há pouco tempo trazendo os olhos cheios da altura do seu merecimento e os ouvidos dos seus louvores, conhecendo nesta minha pátria a grande diferença com que esta nobre ciência é tratada, determinei-me bem, e como fez César ao passar do rio Rubicão, o qual era muito vedado com armas aos romanos, assim eu (se me é licito comparar, sendo pequeno, com homem, tamanho senhor) me ponho como verdadeiro cavaleiro, e defensor da alta princesa pintura, oferecido a todo o risco por defender o seu nome, com minhas poucas armas e possibilidade.
.........................
Isto é especialmente curioso, porque dificilmente vemos hoje que a Espanha tenha tido um problema de pintura (o mesmo não se passando em Portugal). Contudo, basta reparar que a sucessão de grandes vultos da pintura espanhola, de El Greco e Velasquez a Picasso, passando por Goya e tantos outros, toda essa sucessão é posterior ao reinado do imperador Carlos V, que aliás escolheu o italiano Ticiano como retratista.
À data em que escreve Francisco de Holanda (1546), Doménikos Theotokópoulos estava numa Creta ocupada por Veneza, tinha 4 anos, e estava ainda muito longe de se tornar conhecido como "El Greco". Portanto, a frase justifica-se por não terem ainda aparecido os primeiros grandes vultos da pintura espanhola.
Mas a frase de Holanda ainda surpreende, por revelar que o impacto de Nuno Gonçalves, ou mesmo Grão Vasco, entretanto falecidos, se tinha havido algum, teria sido puramente nacional, e muito circunscrito. Com efeito, nem o trabalho de Grão Vasco, desenvolvido especialmente em Viseu, teria merecido a fama cortesã lisboeta. Quando D. Manuel tomou posse do reinado, os Painéis de S. Vicente teriam desaparecido do olhar público, e provavelmente só terão sido brevemente desenterrados durante a posterior "reinação" de D. Sebastião. Como essa obra, tantas outras, inconvenientes às mitologias manuelina e bragantina, terão sido varridas para debaixo do tapete.

Finalmente, com a descoberta das pinturas rupestres em Altamira, e em tantas outras cavernas  e grutas espanholas, ficou bastante caricato ver-se escrito que, em Espanha, "não conhecem a pintura, nem fazem boa pintura". É claro que tal conhecimento antigo, pré-histórico, estaria afastado de Francisco de Holanda, e do comum cidadão renascentista, mas não estaria fora do conhecimento de alguns círculos próximos do poder de Roma, não se resumindo aí a uma academia de jogos florais.

Para terminar, ainda com uma referência a Raczynski, Joaquim de Vasconcelos que, em 1896, edita a obra ("Quatro diálogos da pintura antiga..."), diz o seguinte:
Finalmente, abonam a boa educação literária do Holanda, as precoces relações com André de Resende, uma celebridade peninsular, que tinha regressado em 1533 a Portugal com relações universais, europeias. A amizade entre os dois é anterior à saída do Holanda, que partiu aos 20 anos. Raczynski, que quasi nada sabia da história da Renascença literária em Portugal, e ainda menos da história dos humanistas portugueses, avaliou mal a posição do nosso pintor na corte e na sociedade do seu tempo, antes da viagem à Itália. Não percebeu como Holanda, educado nos paços de dois Infantes, e pensionista d’El-Rei, pôde entrar facilmente nas relações de Miguel Angelo, o qual sabia muito bem que atrás do Rei de Portugal estava seu omnipotente cunhado, o César [Carlos V]. Vittoria Colonna sabia-o igualmente; não ignorava que os Colonnas tinham parentes em Portugal, os Sás Colonnezes, uma numerosa e ilustre família. Não estava em Roma o Cardeal D. Miguel da Silva, amigo de Castiglione, e certamente da Marquesa, para lho lembrar?
............ 3/08/2017