No final de 1577, início de 1578, apareceu um grande cometa nos céus, e podemos ler os maus augúrios que tal avistamento causou, nas "Memórias do Reinado de D. Sebastião" de Diogo Barbosa de Machado (1751):
Com efeito, pouco depois, em 1578, morrem D. João de Áustria, meio-irmão de Filipe II e D. Sebastião, seu sobrinho. As duas mais jovens promessas da cristandade na luta contra os turcos, parecem assim ser levadas pelo cometa. Assim o cometa parece ter levado o cometimento bélico medieval dos D. Quixotes substituindo-o pelo pragmatismo do poder oportunista, que teriam os novos Panças.
Mas no meio da história ficcionada que se fabricou, na mitologia sebastianista do desejado e do encoberto, fica ainda uma possível encarnação messiânica de D. Sebastião, que ao interpretar uma promessa divina judaica, recebeu um ódio visceral - que os judeus de Marrocos nutrem ainda por D. Sebastião.
Em comentário por email chegou-me indicação de um vídeo (de 2016) sobre a problemática sebastianista, aqui protagonizado por Manuel Gandra.
Conforme podemos ver, Gandra afirma da existência de documentação relevante, de que terá publicado fac-similes, em Espanha, obtidos por via da falecida duquesa de Medina-Sidónia.
Em breve... do que se pode entender, a tese de Gandra será que D. Sebastião teria ficado prisioneiro em Marrocos, mas não pretendeu regressar a Portugal...
Mais, Manuel Gandra avança para uma derrota propositada em Alcácer-Quibir, no sentido de poder dar cumprimento a uma versão
profética de Pseudo-Metódio, que visaria depois um reaparecimento em força. Diz ainda que D. Sebastião seria um preso solitário, vivendo abastadamente com uma corte em Marrocos... e esqueçamos a contradição de termos. Teria um plano de regressar (talvez na manhã de nevoeiro), reunindo grande exército para finalmente derrotar o Islão, dando início a um Quinto Império, conforme a profecia. Nesse sentido teria desembarcado em Inglaterra, e depois acabaria por ir parar e morrer em Limoges, sem concretizar o regresso. Acrescenta,
en passant, que haveria correspondência de D. Sebastião a
Marco Túlio Catizone, seu sósia, a que se acrescenta o executado "prisioneiro de Veneza".
Quanto aos documentos que Gandra menciona colocamos aqui três, que nos foram gentilmente cedidos da cópia do livro de Gandra, e deles fazemos uma breve transcrição:
---------------------------------- (1) --------------------------------
El Rey
Duque primo, el corregidor de Cadiz me ha embiado la Carta que seza con esta que es de un Captivo que esta en Alarache, la qual me ha parecido que seos embies pª que la veais y procureis entender è informarvos particularmente de la sustancia que el rey puede tener y avisarme de lo que seos ofreciexe acerca de ello, procurando que sea todo com el recato y secreto que el negocio requiere y saveis que combiene de Madrid. à 11 de Henero de 1587 años...
------------------------------- (2) -----------------------------------
El Rey
Duque primo: He visto un carta de xiiii del presente y la de Diego Marin. de xxx del passado y dos del Xariffe para el y el Alcayde de Alcaçar en Arabico que (haviendo se traduzido aqui) contienen lo que vereis por la copia dellas, que con esta se os embia. Y cierto se a sus palabras de haviera de dar credito, por las que en ellas escrive paresce querer de veras, que con los captivos de Fez se haga la entrega de Alarache pues no se hizo con los que Marin tenia, y embio en los tres navios que alli se hallavan, mas yo lo dubdo agora tanto como antes si ya por ventura la necessidad no le fuerça a hazer virtude maiormente si ha sabido el apparato de galeras y gente que Alarache quedava haziendo en Constantinopla por orden del Turco a xx de Abril para la empreza del Reyno de Fez...
--------------------------------- (3) ---------------------------------
El Rey
Adelantado de Castilla parente, .. Capitan general de las galeras de España, teniendo entendido lo mucho que importa al serviço de Dios y mio y por conseguinte al beneficio de nos Reynos y subditos, tenez en Affrica el puerto pueblo y fuerte de Alaracha, embres in havia cinco años e medio poco mas o menos a Pº Venegas de Cordova y en fu companhia à Diego Marin (come platico de la tierra gente y lengua Arabiga) para que continuando la platica, començada com Mulei Moluco, hermano del Rey Xariffe que o y es se pidiesse de mi parte la dicha plaça, offresciendole partidos y conditiones que pareceo que podiram mover a darmela, y despues de haver passado muchos dias y muchos dares e tomares, ..lamente se contento devera e nello comando en recompensa La Villa e fuerça de Mazagan que por estar mas cerca de sus tierras julgo te feria mas a proposito (...)
------------------------------------------------------------------
Larachas nas cartas
A primeira coisa que podemos ver na interpretação de Gandra das cartas, é que se força uma identificação da praça de Larache com um possível preso em Larache. Nada parece sugerir isso, aliás o que parece é haver uma tentativa de troca da posse das praças de Mazagão e Larache.
Parece haver menção a um cativo português em Larache, mas poderia tão somente ser um sósia, já que era hábito os reis fazerem acompanhar-se de personagens semelhantes, para efeitos de despiste, conforme
pudemos ver nas tapeçarias de Pastrana.
Toda a teoria de Gandra parece ser assim um retorcer da leitura das cartas, no sentido de conformar à hipótese de um rei que teria ficado cativo em Marrocos, ao ponto de confundir o nome da vila africana com o próprio nome do preso.
Cometimento do cometa
O único ponto com alguma novidade nesta interpretação seria o de conformar a decisão de D. Sebastião em insistir na batalha - mesmo com "maus augúrios" de cometas, a uma leitura retorcida do apocalipse de Pseudo-Metódio.
A ideia de que D. Sebastião teria forçado a expedição, e especialmente que teria feito propositadamente para que a expedição corresse mal, para assim se ajustar à profética, parece-me rocambolesca e desajustada. Ficar como "encoberto" na sombra de um renascimento do nevoeiro, até obter um exército suficiente para desafiar o turco, parece impensável, mais típico de um egocentrismo deslumbrado destes dias, do que ajustável ao voluntarismo de D. Sebastião.
Ninguém veria o rei aguardando em Marrocos por melhores dias, enquanto Portugal passava para as mãos do seu tio, e se perdia nas lutas de sucessão de D. António, com o apoio inglês.
Um desaparecimento que equivale à morte
Qualquer ideia de que D. Sebastião poderia ter sobrevivido à batalha, ficando como prisioneiro de um destino onde não o reconheciam como rei de Portugal, seria equivalente à sua efectiva morte. Não interessa muito especular a partir daí, porque o rei só era entendido como rei, se tivesse nessa pretensão o apoio inequívoco de quem estava próximo de si. Quando o perdeu, fosse por efectiva morte, desaparecimento, ou armadilha interna, remetível a um golpe de estado, ou complot entre Filipe II e a casa de Bragança... pois tudo isso seria equivalente, e apenas diferente no grau de maquievelismo exercido. Não havia nenhuma prova de realeza absoluta, acima das condicionantes humanas. O valor da realeza era o berço, e longe do berço, D. Sebastião acabaria por ter o destino de um mero sósia real.
Conforme consta ter dito D. Sebastião a propósito do cometa de 1577-78:
"o cometa diz que acometa"
... e com esta laracha acometeu a Larache.