Ao dizer-se que a Guiné mencionada no Séc. XV referia apenas a uma parte de África, usa-se um critério similar a dizer-se que a Tróia de Homero estaria no concelho de Grândola.
Com isto não quero dizer que nenhuma, ou as duas, sejam verdade... simplesmente quem aceita a primeira costuma achar a segunda ridícula!
Peguemos no exemplo das ilhas de Cabo Verde, que se contam como 10, algumas das quais parecem aparecer mencionadas num documento de 1462 de D. Afonso V:
(...) pedyndo nos o dito Ifante que, porquanto foram achadas xij (12) jlhas, saber: çinquo per Antonyo de Nolla, em vida do Ifante dom Anrrique meu tio, que Deos aja, que se chamam: a jlha de Santiago e a jlha de Sam Felipe e a jlha das Mayas e a jlha de Sam Christovam e a jlha do Sal, que sam nas partees da Guinea e as outras sete foram achadas por o dito Ifante, meu jrmão, que sam estas a jlha Brava e a jlha de Sam Nycollao e a jlha de Sam Vicente e a jlha Rasa e a jlha Bramca e a jlha de Santa Luzia e a jlha de Sant Atonio, que sam atraves do cabo Verde em especiall lhe mandassemos fazer carta d ellas; e, visto sseu rrequerimento, e querendo lhe fazer graça e mercee, temos por bem e lhe fazemos d elas livre, pura, jnrevogavell doaçom antre vivos valedoira d este dia pera todo sempre, pera elle e pera todos herdeiros e soçesores e deçemdentes que despois d elle vierem. (...)Mas neste documento há uma distinção. Há 5 ilhas vistas por Noli, nas "partes da Guiné":
- Santiago, S. Filipe, Mayas, S. Cristovão, Sal
Há outras 7 ilhas, vistas do Infante D. Fernando
(irmão de D. Afonso V) "através do Cabo Verde":
- Brava, S. Nicolau, S. Vicente, Rasa, Branca, S. Luzia, S. António
Ora os nomes não coincidem bem, mas há equivalências para se ajustarem a Cabo Verde, incluindo aí os ilhéus, chamando-os Branco e Raso (mesmo não sendo nem uma coisa nem a outra), bastando notar que a capital do Fogo é São Filipe, e que a ilha Boavista seria S. Cristovão. Há outra Boavista na Terra Nova.
Portanto, se quisermos ligar com Cabo Verde, arranja-se uma colagem de nomes, de tal forma que seriam consideradas "partes de Guiné" uma certa divisão das ilhas... mesmo que a Brava esteja junta ao Fogo (S. Filipe), e me pareça ser complicado não ver a ilha Brava estando em S. Filipe (mas poderá haver quem argumente o contrário):
A ilha Brava vista de S. Filipe, na ilha do Fogo. (imagem)
- S. Cristovão (por Colombo, agora St. Kitts and Nevis)
- S. Luzia (Saint Lucia)
- S. Vicente (por Colombo, St. Vincent and Grenadines)
- Santiago, por Colombo a Jamaica (também Santiago de Cuba)
- S. Nicolau, por Colombo, baía no Haiti, (também segunda cidade de Aruba)
- S. Filipe (e.g. um dos distritos de Barbados)
- S. António (e.g. um dos distritos de Montserrat)
O nome seria ilha das Mayas e não ilha do Maio, sendo auto-explicativa referência a Maias, mas notamos que havia ainda uma suposta ilha fantasma, por vezes denominada Maydas.
Há uma ilha Brava na Costa Rica, e o Sal, tanto aparece como ilha Virgem britânica, como podemos ter em atenção a ilha Bonaire.
A ilha do Sal - Bonaire
A ilha de Bonaire, perto de Aruba e Curaçao, tem bom ar de nome francês "bon aire", mas está em mapa de João de Lisboa com o nome "boinaro", o que soa a algo diferente.
Bonaire é uma das maiores produtoras de Sal das caraíbas, exibindo montanhas de sal:
Montanhas de Sal em Bonaire - Caraíbas
Com efeito, os espanhóis não deram muito uso às salinas já existentes, quando aí chegaram em 1499, porque sal não lhes faltava, mas mesmo assim usaram-no. Quando os holandeses conquistaram a ilha em 1638, esta tornou-se principalmente numa mina de sal.
Comparativamente, a ilha do Sal em Cabo Verde teve uma pequena exploração em Pedra de Lume, que só começou a ser explorada em 1796, sendo actualmente simbólica e turística a sua produção, mas será importante para dar justificação ao nome que a ilha teve e tem.
Dimensão da exploração natural de sal em Bonaire, junto à costa; e na ilha do Sal, onde está reduzida a uma escavação artificial/cratera em Pedra Lume. Em 1805 foi feito um canal até à costa. (imagens do Google Maps - com a mesma escala)
Onde estão as outras?
Poderá pensar-se que os nomes serem iguais em lados diferentes, é normal, por falta de imaginação, mas o problema é que há uma quantidade significativa de ilhas cujo nome se perdeu.
Vejamos a doação de D. Afonso V ao irmão, Infante D. Fernando:
Quanto às ilhas de Madeira, Porto Santo e Desertas, não há dificuldade aparente, mas que ilhas são
- S. Luís, S. Dinis, S. Tomás, Stª Iria, S. Jacobo e de Lana?
... que nem em cartas aparecem?
Nesta altura (1460), podemos atribuir 5 ilhas aos Açores:
- S. Miguel, Stª Maria, Graciosa, S. Jorge, e Jesus Cristo (Terceira)
Podemos dizer Faial e Pico serão duas delas (talvez S. Luís e S. Dinis). O Corvo estava declarado em carta de 1453 a favor do duque de Bragança, e esse grupo seria designado ilhas das Flores (Alcáçovas, 1480), distinto das ilhas dos Açores (as outras sete).
Das ilhas referidas dois anos depois, e que seriam de Cabo Verde, constam apenas:
- S. Filipe, S. Cristovão, e as Mayas.
Em apenas dois anos, mudava os nomes? Aqui não aparece nenhuma ilha do Sal, ou outras...
Malagueta de Guiné
Além do salgado, já no picante, com pimenta-da-Guiné, fica esta carta de D. Afonso V:
Bom, gatos de algália poderiam ser qualquer coisa, mas são agora civetas-africanas. Unicórnios é mais complicado, mas imagino que se referisse a rinocerontes, ainda que seja oficialmente cedo para avistar esses bichos, a sua distribuição não ia até à costa da Guiné. Por laca referiu-se normalmente um produto oriental, da Índia e China, mas poderia aqui designar outra coisa, com aspecto de lacre.
No entanto, aparece aqui ligado a "tintas de brasil", e se há coisa que me parece que não bate muito certo é esta ligação da Guiné a tintas do brasil... porque ou seria o tal pau-brasil que vinha da Índia, da rota-da-Seda, ou então seria o pau-brasil que vinha do Brasil. Em 1470, oficialmente, não se estava nem num lado, nem no outro...
Quanto à malagueta, ou pimenta-da-guiné, não sendo pimenta, foi depois confundida com a malagueta verdadeiramente picante, a americana. Com pimenta-na-língua confundiram-se as Costas.
Marfim de Guiné
Não fazendo qualquer tenção de ver apenas um lado da questão, numa outra carta é dito fazer-se referência a dentes de elefante que vinham da Guiné.
Ora, não havendo elefantes na América, esta Guiné terá que incluir a África.
O que não é claro, nem aqui o fica, é se a Guiné incluía apenas terras africanas... e parece que não.
... de África e de Guiné
Por exemplo, numa outra carta, para Diogo Cão, fala-se nas partes de África e de Guiné, ou seja há uma necessidade de distinção, sendo certo que África se referia ao continente por inteiro:
Tanto mais que o título que os reis usam é o seguinte:
- 1471 - Dom Afonso V, por graça de Deus, Rey de Portugal, e dos Algarves, d'aquém e além-mar em África.
- 1481 - Dom João II, por graça de Deus, Rey de Portugal, e dos Algarves, d'aquém e além-mar em África, e Senhor de Guiné.
- 1506 - Dom Manuel, por graça de Deus, Rey de Portugal, e dos Algarves, d'aquém e além-mar em África, Senhor de Guiné, e da conquista, navegação e comércio d'Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia.
D. João II decidiu juntar o senhorio da Guiné, achando que "aquém e além-mar em África" não era suficiente, mas essa Guiné foi título não especificado a uma região concreta.
Quando D. Manuel em 1506 acrescenta Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia não sente necessidade de incluir o Brasil (ou Terra de Vera Cruz), vai depois (1509) usar-se um "etc" para não estar a enumerar novos territórios. Só em 1815 é que o reino do Brasil é constituído e finalmente incluído na lista de nomes, com um destaque principal, para ser logo perdido em 1822, com a independência.
O que não se encontra minimamente provado é que o título de Guiné se referisse apenas a África.
Aliás quem duvidasse disso, receberia nojo e sentimento de D. João II, conforme o revela Rui de Pina, no capítulo "Descobrimento das ilhas de Castella por Collombo":
O ano seguinte de mil quatrocentos e noventa e três, estando El-Rei em Val do Paraíso, que é acima do Mosteiro de Stª Maria das Virtudes, por causa das grandes pestilências que nos lugares principais daquela comarca havia; a seis dias de Março, arribou a Restelo em Lisboa, Xpºvam Colõbo, italiano, que vinha do descobrimento das ilhas de Cipango e d'Antilha, que por mandado dos reis de Castela tinha feito, da qual terra trazia consigo as primeiras mostras da gente e ouro, e algumas outras coisas que nelas havia; e foi delas intitulado Almirante. E sendo El-Rei logo disso avisado, o mandou ir ante si, e mostrou por isso receber nojo e sentimento, assim por crer que o dito descobrimento era feito dentro dos mares e termos do seu senhorio da Guiné, em que se oferecia dissensão, como porque o dito Almirante, por ser de sua condição um pouco alevantado, e no recontamento de suas cousas, excedia sempre os termos da verdade, fez esta coisa, em oiro, prata e riquezas muito maior do que era.
Para D. João II, o seu senhorio da Guiné consistia em tudo o que estivesse abaixo das Canárias, ou do Bojador, e assim interpretava o Tratado de Alcáçovas, que desde 1479-80, até à data da viagem de Colombo estava em vigor. Ora, isso significava toda a navegação abaixo do Trópico de Cancer, e o seu senhorio da Guiné não era apenas em África, mas seria em todo o Atlântico, a sul das Canárias, incluindo as Caraíbas, onde Colombo tinha acabado de desembarcar.
A "contra-argumentação oficial" é a de que D. João II usou a larga interpretação do senhorio da Guiné porque lhe conviria... mas isso não explica um pequeno detalhe - Colombo em 1498 escreveu que decidiu viajar mais a sul para procurar o continente de que lhe falara D. João II, tendo aí encontrado a Venezuela... que passou a ser chamada "Terra Firma" (ou seja, continente).
Por isso, parece muito difícil sustentar que o termo Guiné, pelo menos conforme usado por D. João II, se referisse apenas a uma parte de África. Tudo aponta no sentido oposto... no sentido de que a Guiné fosse a América escondida pela África.
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Notas adicionais (04.09.2020)
O padre jesuíta António Cordeiro, na sua História Insulana das Ilhas de Portugal (1717) reporta também que a ilha Brava, apenas distante 7 léguas da Ilha do Fogo (na realidade está a metade, a menos de 20 Km), esteve "encoberta" durante 7 anos:
Quem quiser aceitar que isto é normal e viu fotos da ilha Brava a partir da ilha do Fogo (como a que mostrámos em cima), será porque abdica da sua vista ou do seu raciocínio. É claro que haverá cegos argumentos retóricos, mas o problema é esse, é a conformação de uma normalidade histórica a uma estória da carochinha.
Há ainda dois mapas de João de Lisboa que mostram as ilhas de Cabo Verde, num caso estão só designadas as ilhas descobertas por Noli, e a "braba", a ilha Brava, e no outro estão as dez nomeadas:
Em ambos os mapas aparece uma ilha da Graça que nunca foi descoberta.
Finalmente, António Cordeiro noutro momento diz que a ilha Brava está apenas a 5 léguas, e na confusão de nomes, diz que a ilha de Santiago foi inicialmente Boavista, e que o nome Boavista teria caído... Como menciona a ilha de S. Cristovão é natural pensar que essa passou a ser Boavista, mas queixa-se dos escassos registos sobre as ilhas.
Diz ainda que das ilhas era tirado muito âmbar, e que por ali passaria o ouro vindo do cabo Verde, algo que ele dizia ter desaparecido, pois dizia que nessa altura não faltava ouro, vindo do Brasil. E se fala do fogo no Pico do Fogo, não fala de qualquer sal na ilha do Sal.