segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

A questão dos qu'estão (3)

Qual o nosso papel nesta peça?
... ou dito de outra forma, qual é o sentido da vida?

Numa perspectiva hedonista, que tem sido dominante no último século, o objectivo humano será alcançar uma certa "felicidade", mal definida. Como assim visa o auto-prazer, trata-se quase de uma motivação erótica, aplicada ao indivíduo, ou menos egocentricamente, à humanidade. 
A perspectiva hedonista, que se associa a um materialismo, é quase um desejo orgásmico, semelhante ao das criaturas que perecem imediatamente depois de se reproduzirem (p.ex. o polvo)... no entanto, sem estar ligado ao aspecto de uma reprodução sem limites, a perspectiva hedonista só encontra sentido na ausência de sentido da existência, um certo nihilismo.

Numa perspectiva mais religiosa, o papel humano está intrincadamente ligado à divindade, e no caso católico, à salvação no julgamento divino, conduzindo a um paraíso, em vez de purgatório, ou pior um irremediável inferno. Escondido, está o mesmo objectivo final, de chegar a uma felicidade eterna, como se fosse um regresso à infância, com um Pai protector a zelar pela brincadeira no recreio (aliás praticamente só é garantida entrada directa no paraíso a inocentes criancinhas).
 

Ora, acontece que é nulo o interesse universal em definir seres felizes, ou satisfeitos consigo mesmo.

Aqui, voltamos ao princípio antrópico. Há necessidade lógica de um universo formado conter a explicação da sua existência em si mesmo... porque não há mais parte nenhuma onde ela possa estar.

Para haver existência é preciso "olhos" que vejam o existente. 
Mas aqui é preciso perceber o que são estes "olhos"... não se trata de fazer uma reprodução do já existente. Aliás para esse efeito, desde logo a natureza teve sempre réplicas perfeitas, começando pelo processo de mitose, na divisão celular. 
Quando o que vê é igual ao que é visto, ambos vêem o mesmo, ou seja, nada... 
Os "olhos" de que aqui falamos trazem uma interpretação inteligente.
Só quando conseguimos classificar o que vemos a alguma forma abstracta, quanto mais não seja pelo número, só aí lhe estamos a dar existência. 
Porquê?, porque noções abstractas, como os números, são eternas, intemporais e universais, quando identificamos algo a essa noção abstracta será como dar-lhe uma "benção eterna", neste caso a benção da existência, que também é representada pelo número 1, na sua individualidade.

Há imensas coisas que não conseguimos individualizar... esse tem sido um progresso constante de conhecimento. Individualizar não é sempre dissecar no específico, é muito mais vezes agrupar numa categoria, tipo ou conjunto. Só quando conseguimos reconhecer uma unidade em coisas distintas é que lhe conseguimos dar existência, por vezes através de uma palavra simplificadora. Por exemplo, as ondas de rádio terão sido algo completamente imperceptível ao olhar humano, que estava apenas sintonizado para captar a luz visível. Quando se conseguiu juntar todas as ondas electromagnéticas numa única teoria da luz, de Maxwell, os olhos foram mais longe, e pouco depois entrámos nesta era de telecomunicações.

Assim, percebemos que há um interesse universal subjacente à nossa existência.
No entanto, para granjearmos existência a outrém, precisamos de assegurar a nossa existência, e só foi conseguido quando o primeiro hominídeo reflectiu sobre si mesmo. Quando? Não sei, mas aparentemente antes do "conhece-te a ti mesmo" ser afixado no Templo de Delfos.

Para vermos que não estamos sozinhos nesta matéria, basta reparar que procurar a verdade pode ser tortuoso, mas sabê-la, ou pelo menos encontrar um nexo nas coisas, é recompensador e satisfatório.
Haverá quem procure afastar-se da realidade, com ou sem alucinogénios, mas isso traz um preço pesado associado. As situações absurdas podem ser trágicas, mas é também inerente aos humanos rirem-se do absurdo... não tanto por ocorrer, mas por se darem conta da impossibilidade, ou da improbabilidade, associada.

Acresce que, ainda que a sociedade reprima o humor negro, ou de certa forma uma capacidade de transformar dor em prazer, coisas vistas como tendências sado-masoquistas, há um capacidade de entendimento que vai além do expectável na nossa natureza, que normalmente será vista como absurda... mas também é aquilo que nos permite contornar situações quase incontornáveis.

Assim, e respondendo à questão inicial, o nosso papel é o de espectadores, que inevitavelmente são chamados a ser actores, porque não há distinção entre o palco e a plateia. A dor é normalmente o que nos chama ao palco, mas em qualquer circunstância, é possível distanciarmo-nos o suficiente de nós mesmos, para vermos o nosso personagem apenas como mais um elemento da peça. Fazendo isso, despindo todo o pesado contexto envolvente, é mais fácil relativizar ou inverter as coisas.

No entanto, ainda que nos saibamos espectadores, temos um papel único... que é ser críticos da peça em cena. Convém não esquecer que o objectivo supremo, e inalcançável, será o entendimento dentro do próprio universo. Nesse aspecto somos elementos importantes para discernir esse nexo. Podemos dizer que a apreciação de cada um é igualmente importante, mas isso seria o mesmo do que considerar que a apreciação crítica de um trabalho complexo não depende do conhecimento que se tem sobre o assunto em causa. 

Podemos assim ver o papel da humanidade como testemunha da obra criadora do universo, visando uma melhor compreensão da sua perfeição. Ao fazê-lo, dominará cada vez melhor as suas peças, e poderá contornar limites antes impostos naturalmente, em direcção a um mundo mais moldado à sua medida, e menos à sua condição nata. Sempre que o fizer afastando-se da realidade envolvente, da visão de si mesmo e dos outros, estará trilhando um purgatório, cujo inferno é o absoluto isolamento. Digamos que temos direito ao recreio, se aprendermos a criá-lo e partilhá-lo em conjunto.
Por inevitabilidade, uma espécie inteligente está condenada a isso, só não é claro que seja a nossa.

domingo, 26 de janeiro de 2020

dos Comentários (59) - Tradição e Tradução.

O principal deste postal será recuperar uma questão antiga sobre "outra inteligência", ou de que forma nos seria inteligível uma inteligência estranha (por exemplo, alienígena, ou extraterrestre).

Desde já, dois comentários que se inserem na tradição e património nacional:
  • José Manuel de Oliveira comenta o tesouro da nau Bom Jesus, com link para programa da RTP (2016). Trata-se de um tesouro que está em museu na Namíbia, e pelo qual o estado português manifestou pouco ou nenhum interesse. Inclui-se aí um astrolábio notável:
  • Amélia Saavedra menciona o romance de Fernando Campos, "A sala das perguntas", onde a propósito de uma ficção sobre Damião de Góis, atribui autoria do poema Adeste Fideles. 
  • Aqui convirá dizer que, como as primeiras pautas surgem numa notação musical antiga, não é de excluir que a composição pudesse ter origem mesmo no Séc. XVI.  Com efeito há um livro de 1780 (15 anos antes do hino ter sido tocado na embaixada de Portugal em Londres), em que Coghlan solicita subscrição para imprimir a música:
  • É neste tipo de pautas musicais, com origem em Guido de Arezzo, que foram escritas as músicas medievais, e análise de maior detalhe, na simbologia, permitiria até estabelecer uma data mais concreta para este tipo de partitura, que já estava ausente dos compositores europeus do Séc. XVIII (vejam-se as partituras de Bach, ou de Handel)
  • Segue-se então o texto de 2018, e que surge a propósito de outro comentário de José Manuel que se relaciona com o assunto da existência de inteligência ou entendimento diferente do humano. Na altura o texto ia com este título mas com o nº 36 "dos comentários".

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....................... 26 de Março de 2018 (draft) .......................

Numa conversa/discussão que decorreu há mais de um ano, e que o João Ribeiro encontrou de novo, deixei uma questão pendente:
- Poderá haver um tipo de inteligência diferente da nossa? 
Ou seja, a encontrarmos outra inteligência, com outra linguagem, haveria sempre uma tradução possível? 

Tinha pensado em fazer um postal sobre o assunto, mas acabei por me esquecer.
É uma boa altura de escrever mais qualquer coisa sobre isso.

Começo por remeter a uma questão de diferença entre duas palavras, mas transfiro o que tinha escrito sobre a sílaba "tra" para outro post, porque este não era aqui o propósito.

Tradução e Tradição
Começando com "tradução", mesmo do latim temos "trans"+"ducere" que significa "através" da "condução". Mas este sufixo "dução" refere-se mais a um "ducto", a um canal, estrada, ou passagem, por onde se conduzia. Neste caso, o ducto é o canal de comunicação, e numa tradução somos conduzidos por um canal que liga uma língua a outra.
No caso de "tradição", é remetido a "trans"+"dare", mas parece-me etimologia latina enviesada considerar o "dar", havendo "dictionem" que significa "dicção", que remete ao simples "dizer". Assim, tradição é uma passagem do que é dito, e a uma boa dicção vê-se sílaba a sílaba...

Há uma substancial diferença.
No caso da tradição é procurada uma passagem literal, muitas vezes procurando manter letra a letra, através dos tempos, e numa tradução é procurada uma passagem de ideias semelhantes, em línguas diferentes.

Os sons que ouvimos produzidos por outros animais, e que servem de comunicação entre si, são pouco significantes para nós. Ou seja, se foi possível comunicar com qualquer tribo humana, e por mais remotamente perdida que esta estivesse, foi possível encontrar tradutores para ser feita a passagem de ideias, no caso de animais essa tarefa ficou bastante mais complicada.
Com efeito, na maioria dos casos, o esforço para a tradução foi quase sempre feito no sentido dos outros aprenderem a nossa língua. Os indígenas nascidos com outra língua, aprendiam uma das línguas ocidentais, e serviam depois como tradutores.
Mas isso implica vontade e capacidade de aprender uma língua, algo que foi conseguido com os nativos face às línguas das potências colonizadoras, e só em casos raríssimos vemos qualquer vontade dos ocidentais em aprender uma língua tribal. Talvez a situação idealizada para entender linguagem de animais terá sido no romance de Tarzan, onde o pequeno fora criado pelos Mangani, uma espécie ficcionada, entre chimpanzés e gorilas.

A linguagem visa o entendimento... (... e não o desentendimento! )
O propósito da linguagem é uma comunicação, onde o receptor entende a mensagem do emissor.
Se o emissor se arma ao pingarelho, e usa terminologia que sabe que o receptor não entende, não visa a comunicação, nem o entendimento com ele.

Caso não se definissem noções semelhantes, o entendimento seria impossível, cada um teria a sua linguagem própria, ou antes, nem sequer faria sentido haver linguagem, porque não haveria interessados na comunicação.

O desentendimento é o ponto de partida, porque cada um de nós vê um universo completamente diferente. Como se fosse preciso testar o caso, a natureza coloca-nos a situação de gémeos, em que o ponto de partida é o mesmo, mas que pequenas circunstâncias fazem desviar para uma evolução que pode ser completamente diferente.
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Não me recordo porque razão não continuei o texto, mas para além de eventual falta de tempo, ou de oportunidade, é também possível que o texto não tenha fluído com argumentos mais decisivos.

O ponto seguro, do qual parti, para afirmar que não haverá inteligência significativamente diferente da nossa, está na própria forma da linguagem, que está muito pouco, ou quase nada, relacionada com a nossa particularidade animal. É claro que "ouvir" se baseia nos ouvidos, "cheirar" no nariz, "ver" nos olhos, etc... mas até na forma como essas palavras são usadas figuradamente, nem sempre estão ligadas aos nossos sentidos.

Emerge o problema da origem da linguagem, ou melhor de palavras universais, que se aplicam a situações muito superiores, muito abstractas, e que só ligeiramente dizem respeito à nossa vida na Terra. Por isso, o mais natural, será considerar que havendo inteligências noutras paragens, essas linguagens teriam chegado pelo menos ao mesmo tipo de noções abstractas que temos, já que não há nenhuma razão para serem exclusividade nossa.
Por exemplo, a noção de quantidade é universal, mesmo em propriedades, de que não duvidamos. Sabemos que se vinte maçãs cabem numa caixa, então dezanove dessas maçãs também cabem lá.
Não é possível a nenhuma entidade violar este princípio.
Até podemos duvidar disso, quando as vinte maçãs estavam colocadas de forma optimal, e depois é difícil até colocar dezanove... No entanto, sabendo que a maior foi possível, não podemos duvidar que a mais pequena também seja. Ora, isto não está escrito na natureza em parte alguma. É uma propriedade matemática de que não duvidamos, que foi induzida pelas noções abstractas que adquirimos.

Por isso, podem existir noções que ainda não adquirimos, mas é certo que muitas das que adquirimos são universais, e partilhadas por todos os seres inteligentes. Quanto à linguagem de seres menos inteligentes, muito vai sendo feito no sentido de procurar o seu nexo, sendo exemplos interessantes os casos de biólogos que foram viver no meio de animais (por exemplo, gorilas), e começaram a perceber os comportamentos, e assim a linguagem dessa comunidade, não se esperando aí grandes noções abstractas, por insuficiência dos próprios.



segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

A questão dos qu'estão (2)

Não ocorrendo nada de forma acidental, haverá alguma forma de controlo? Ou seja, coloca-se a interrogação sobre a existência de alguma entidade que presida a um eventual controlo.

A questão tem diversos níveis, começando pelo mais simples, à escala humana - ou seja, se existe ou existiu uma elite que foi controlando a deriva humana, de forma mais ou menos acidental ou propositada - até chegar ao ponto da escala sobre-humana, que ora coloca a evolução animal como planeamento extraterrestre conspirativo, ora leva a conceitos teológicos de criação divina.

Em reflexão relativa à imagem do postal anterior, deixo aqui o Homem no outro lado do espelho.
Porquê? Porque, seja sobre impotência ou máxima potência, toda a discussão é feita entre homens, ou ainda, no seu aspecto mais profundo, por cada homem na reflexão em si mesmo.

Limitações ilimitadas
Um argumento típico é o de que não podemos reflectir em aspectos sobre-humanos, porque está para além das nossas capacidades. Parecendo fazer todo o sentido, cai numa contradição prática, pois podemos, por exemplo, trabalhar com números que excedem largamente os átomos, ou partículas, do universo físico. Ou seja, trabalhamos facilmente com noções estão muito acima da escala material admitida pela Física.
Segundo contas recentes, o número de átomos no universo físico observável andará pelos 1082 átomos, estimativa por alto, sendo um número de 82 dígitos, o que não é nada...
Basta notar que o número de dígitos de Pi está com o recorde de cálculo em 31 biliões de dígitos, e há mais de trezentos anos, em 1706, Machin calculou à mão 100 dígitos de Pi. Convém notar que para calcular o perímetro do universo com um erro inferior ao tamanho de um electrão, bastaria usar Pi com "apenas" 40 dígitos (isto indo pelo dogma da velocidade máxima da luz e da suposta idade do universo em menos de 15 milhares de milhões de anos).
Isto apenas para exemplificar que podemos trabalhar com noções muito acima de qualquer correspondente material conhecido. Podemos manipulá-las com certeza matemática.

Por isso, é incorrecto argumentar sobre a incapacidade de reflectir sobre coisas que nos transcendem.
Não é por não tocarmos no Sol que não existe toda uma teoria astrofísica que assume compreender os seus processos físicos. Não podendo entrar na cabeça de outro, não deixamos de procurar antever o pensamento alheio. Qualquer pensamento humano é uma especulação baseada nos sucessos e insucessos da nossa experiência de vida. Se há coisa que o caracteriza é não lhe conhecermos limitações, podendo insistir na falsidade, como se tratasse de uma indiscutível verdade.

Portanto, antes de reflectir sobre a divindade, esclarece-se que nada o impede, excepto parar de ler.

Aspecto teológico.
Qualquer entidade, incluindo a divindade, está confinada ao seu próprio universo.
Claro que se assume que o universo divino transcenderá o universo material, mas não pode deixar de ser uma qualquer estrutura.
Pode uma entidade divina controlar tudo o que se passou ou vai passar no seu universo?
Sim, mas nesse caso terá que se identificar ao seu próprio universo.
Até aqui parece estar tudo na paz eclesiástica, dizendo que Deus se identifica ao universo.
Porém, estando tudo contido em Si, do princípio ao fim, não poderia exercer qualquer acção, porque nada há para ser alterado, impedido, ou efectuado.

Romantizando o assunto, a suprema concretização divina seria definir o que iria acontecer, de entre tudo o que poderia acontecer. Alcançado esse objectivo supremo, não restaria qualquer espaço de acção, e sem possibilidade de acção a divindade morreria. O legado deixado, seria este universo, o único viável, para habitarmos. Seria esse o fim divino? Não, se reencarnasse sem memória, em cada ser inteligente... e daí o legado habitual, em que todos os humanos se vêem como pequenos deuses.
Esta versão romantizada é história, mas corresponderia a um sacrifício muito diferente de perecer humanamente, mantendo a vida divina. Neste caso, corresponderia a perecer propositadamente com a finalidade única de tornar possível a existência universal.
É história, porque é dispensável, e o legado, o universo, formar-se com ou sem protagonista criador é folclore facultativo. Não teria outra viabilidade, porque nem a inexistência era viável.

Noutra tendência, é argumentado que cada homem tem livre-arbítrio para escolher o seu percurso. A divindade sabe o que acontece se a escolha for uma, ou outra, mas não sabe o que o homem escolhe.
Estando viva, não se distinguiria de nós - há coisas que sabemos e outras que não sabemos.
Além disso, sabendo que nós iremos escolher o que escolhemos, qual a necessidade de sequer considerar as outras hipóteses? Não ocorrendo, são apenas ficção ou arte.
Aliás, falar do livre arbítrio humano seria pensar que algo poderia ser acidental... ora, sobre isso já falámos (no postal anterior). 
A hipótese reconfortante é que, estando definido o desenvolvimento do princípio ao fim, ficaremos sempre sob os auspícios da herança de um universo eternamente viável.

Aspecto humano.
É indiferente saber se temos competidores humanóides na inteligência, já que na prática é admitido que essa inteligência seria semelhante, e manifesta-se também entre nós, entre aqueles que são mais capazes que outros.
É ainda indiferente saber se existiu uma civilização alienígena que nos criou em tubo de ensaio, porque as nossas dúvidas de criação passariam a ser as dúvidas sobre a criação dos criadores.

Interessa saber se no meio da noite pré-histórica emergiu alguma tribo capaz de exercer um controlo superior sobre os restantes.
Quando? - Para esse efeito ser notado, o controlo de que estou a falar deixou de ser o controlo das tribos vizinhas, ou melhor, alargou-se, com a sucessiva conquista das tribos vizinhas.
Por isso, estamos a falar de um tempo de escassez, em que a sobrevivência passava por uma luta de territórios. Os territórios mais populosos, mais sujeitos a variações de alimento, e de certa forma confinados por razões geográficas - ou seja, ilhas razoavelmente grandes - teriam sido palco do desenvolvimento hostil de humanos extremamente competitivos.

Nesse aspecto convém notar que a estrutura tribal sempre contou com um chefe, mas fez ainda aparecer sacerdotes ou xamãs, algo que não seria a priori natural de ocorrer em diferentes paragens remotas, e com pouco contacto entre si. Uma hipótese é que estes xamãs seriam um ponto de contacto que formaria uma primitiva sociedade secreta, reguladora da civilização humana.
Sem esse controlo superior, o que aconteceria por medo do exterior, seria uma radicalização das disputas, até ao ponto de apenas sobreviver um povo. Como isso não ocorreu, e foram-se mantendo diversos povos, em estados civilizacionais bastantes diferentes, isso é indicador que pode ter existido desde cedo uma estrutura reguladora do poder. Essencial é que teria que ser secreta, sob pena de se tornar visível para a população, e assim passar a ser um alvo a dizimar, nas lutas de poder, para além dos alvos visíveis, que seriam os chefes tribais.

Uma parte fulcral da sociedade medieval europeia era exercida não apenas pelo poder secular dos reis, mas também por um outro poder centralizador, colocado no papa, detentor do poder temporal. Este terá sido um dos aspectos mais visíveis da presença de uma fonte diferente de poder, que era exercido não pelas armas de ferro, mas sim pelos jogos políticos realizados através da Igreja.
Parece-me bastante crível que sempre tenha estado presente esse poder, sempre de forma algo submersa e secreta, e que mesmo na Idade Média tenha sido suficientemente secreto para poder estar acima do alvo visível que era a Igreja, ocultando-se nos seus meandros... tal como provavelmente hoje se ocultará no meio de meandros financeiros.



domingo, 12 de janeiro de 2020

A questão dos qu'estão (1)

Há duas perspectivas que se opõem relativamente à compreensão das coisas:
- Nada é acidental (holismo);
- Tudo é acidental (nihilismo).
Em que ficamos?
Essa é uma questão, e não vou seguir aqui a "via do meio", a minha resposta é a primeira.

Este pretende ser o primeiro texto de uma espécie de auto-entrevista.
Não irei tentar ficar pela objectividade, e darei a minha opinião actual, interesse ou não.

Para despoluir a informação com que fomos crescendo, e que nos foi fazendo acreditar em uma coisa ou noutra, procurarei justificar não apenas a minha opinião, mas também argumentar sobre outras que sei serem veiculadas.

Começo por este assunto, porque houve aqui uma grande inversão de mentalidades, que começou no Séc. XIX, e foi fazendo caldo cultural dominante no Séc. XX, e ainda hoje.

Imagem de imagens (daqui) - sobressaindo o Homem da criação (de Miguel Ângelo). 

A inversão ocorreu devido a uma eventual necessidade política de ir impondo um ateísmo militante, contra a filosofia religiosa que existia anteriormente.
O palco principal dos acontecimentos foi a Europa, com o desfalecimento completo do poder papal e com a ascensão meteórica da maçonaria e da sua máquina financeira, mas foi imposto praticamente sobre todas as religiões, mantendo um foco de resistência cultural no Islão.

A posição ateísta chegou assim ao ponto extremo do nihilismo, o que seria natural, pois sendo o Homem um acidente evolutivo, não se encontraria algo que tivesse um significado transcendente. Não havia razão superior para a sua existência ou para o significado dos seus pensamentos... 

A visão darwinista, do acaso evolutivo, beneficiaria um propósito sádico, que igualaria os homens aos demais animais (algo muito em voga actualmente). O propósito não é sádico quando se pretende que o tratamento animal seja semelhante ao humano, mas será quando isso implicar que o tratamento humano seja semelhante ao animal. O nihilismo encerra uma bomba moral letal, porque em última análise só advoga a moral enquanto esta vencer a imoralidade.

Pelo outro lado, quando se advoga que nada é acidental, a questão é sempre colocada no sentido teológico de uma entidade criadora. Ou seja, as pessoas acreditando em deuses remetem a razão das coisas a essas divindades.
Acresce que isso é visto modernamente como um pseudo-problema psicológico, em que o Homem seria uma criança órfã e sozinha, quando se via sem a protecção de uma divindade paternal. 
Nesse contexto, o ateísmo chega a considerar que essa procura de nexos transcendentes revela que ainda não se atingiu a maturidade adulta. De certa forma, foi pensado que "a morte de Deus" seria um luto que se teria que fazer como "um luto paterno" chegada a humanidade a um estádio adulto.

Não apenas isto... esta conversa da treta alarga-se, e é dito que as "teorias da conspiração" são uma necessidade holística, de horror ao acaso, ao que é acidental. Ou seja, seria uma versão moderna do "horror ao vazio" medieval. 
Mais uma conversa de psico-treta, que será sem dúvida útil de alimentar por todos os conspiradores.
Se o pessoal começar a acreditar que há algo estranho, e não acreditar nas patranhas como coincidências, então arrisca ser candidato ao diagnóstico de um problema psicológico, e o assunto fica resolvido de outra forma.

Não há nada "acidental"
Neste assunto não considero que seja opinião pessoal, tem mesmo que ser assim.
Porquê?
Escrevo aqui A, sem nenhuma razão aparente. Haveria imensas possibilidades para o texto, mas decidi escrever isto. Só muito parcialmente tenho um efectivo controlo sobre tudo o que faço. Há coisas que faço, que não sendo completamente acidentais, em grande parte são.
Em cima poderia ter escrito B em vez de A? Não!
É claro que é só chegar ali e mudar, mas a questão não é essa.

Se tivesse escrito B, teria ido parar a um universo diferente deste.
Alguns físicos dirão que isso seria perfeitamente possível, porque haverá "multiversos" e não apenas um "universo", e nós estamos neste... por acaso. Podem dizer isso ou estar calados, porque apenas poderemos ter informação de um único universo, de forma que tudo o resto é ficção.
Também podem dizer que será por razão das nossas escolhas... e isso já faz mais sentido, mas mesmo assim não faz nenhum, porque só temos noção do eu que ficou neste universo, por isso o restante será só um exercício inútil, bom para filmes da ficção.

Conclui-se assim que estamos num único universo e não há outros (ou é indiferente se existirem).
Agora, podemos pensar que quando os dados rolam numa mesa de um casino e sai 3+4, isso foi completamente acidental, e poderia ter saído 1+6, ou outra combinação.
Mas não é pelo facto de não conseguirmos perceber porque caiu 3+4 e não 1+6 que isso se torna num facto "acidental" ou "aleatório".
Seria aleatório se existissem ambos os universos - um em que os dados deram 3+4 e outro em que os dados deram 1+6. No entanto, como só há um universo e é nesse universo que estamos, o sair 3+4 foi um facto, e sair 1+6 ou outro, seria apenas uma das 36 possibilidades. Na prática, podemos ver a questão como aleatória, mas na realidade saiu aquele valor e não poderia ter saído outro.

Então, qual a razão de as coisas acontecerem de uma maneira e não de outra?
A primeira resposta é dada com outra pergunta:
- Quem quer estar num universo em que consegue prever tudo?
Já referi, e insisto, que a previsibilidade leva à ausência de imprevisibilidade, e a sede de imprevisibilidade é algo que garanto que ninguém vai querer passar.
O conhecimento de tudo, de tudo o que nos é exterior, seria quase equivalente a sermos fechados para sempre num quarto pintado de branco. Poderia ter o aspecto paradisíaco de uma ilha encantada cheia de pessoas que nos idolatravam, mas a partir do momento em que a atitude dos intervenientes passasse a ser previsível e repetida, o lindo colorido passaria a ter uma só cor - a cor de um eterno enfado, ou aborrecimento.

Isso responde parcialmente à questão.
Se ao lançar certos dados, antevíssemos que o planeta poderia colapsar, alguém os lançaria?
Por estranho que pareça, a resposta é sim... e diversas reacções em cadeia foram lançadas em experiências atómicas ou nucleares no Séc. XX.
O controlo da experiência, ou seja de que a reacção em cadeia e a explosão vai terminar, ocorre normalmente por falta de material para prosseguir. Mas os cuidados devidos, estiveram muito longe de ser acautelados. Ainda hoje em dia se fazem experiências com matéria, anti-matéria, e tentativas de criação de micro-buracos negros, como se estivéssemos a dar kalashnikovs às crianças no Natal.

Será sorte que as coisas não tenham saído fora de controlo?
Ou vendo a questão de outra forma... sabendo-se que certa experiência arrasaria o planeta, alguma vez ela poderia ocorrer?

Não é preciso ver a questão internamente... basta reparar no que aconteceu em 1994 com o cometa Shoemaker-Levy 9, que colidiu com estrondo contra Júpiter:
Parte do Shoemaker-Levy colide contra Júpiter em 1994 
À direita, igualmente brilhante, está Io, satélite de Júpiter.

Faltam-nos neste caso aquelas imagens espectaculares da NASA, que estaria distraída, e por isso temos apenas más imagens da colisão. O cometa tinha sido capturado pela órbita de Júpiter e por isso era alvo de bastante atenção, mesmo assim, estas são as melhores imagens da colisão (havendo outras, coloridas com mais ou menos arte)

Uma situação de colisão terrestre com um objecto da dimensão do Shoemaker-Levy, seria um evento catastrófico de aniquilação praticamente total.
Portanto, se isto fosse uma questão de jogar aos dados, a vida na Terra, e em particular o Homem, têm tido uma grande sorte ao jogo...

É isto "sorte"?
Se desaparecesse qualquer suporte para vida inteligente... ou seja, neste caso, se a humanidade desaparecesse e não fosse substituída por outra vida inteligente, quem poderia afirmar da existência do universo? - Ninguém.
O problema do universo é que é preciso existir vida inteligente para o universo existir.
Não são as pedras, os calhaus, as rochas, as árvores, ou o rato do campo que deambulam filosoficamente sobre a existência do universo, sobre o seu início ou o seu fim.
Por isso, o custo de existência, foi gerar vida inteligente.

Significa isso que antes de existir o Homem, não existia universo?
Se a vida inteligente não viesse a ser um produto do universo, então não existiria.
É preciso abandonar o conceito de causalidade, que é cego temporalmente, vendo apenas na direcção do passado para o futuro.
A causalidade não vem apenas do passado, vem do futuro.
O passado não pode determinar um mundo sem futuro, que cesse de existir!
Somos testemunhas de um universo que existe hoje, independentemente do que se passará amanhã.
Esse amanhã não pode anular o tempo passado. O término definitivo da vida inteligente significaria isso - que nunca no tempo futuro haveria possibilidade de testemunhar existência alguma, mas isso não apaga de nenhuma forma que este passado tenha existido.

O problema é todo esse - um universo desde que exista não pode desaparecer definitivamente, sob pena de contradição da sua existência.
É nesse sentido que acredito que, ao contrário do que nos é dado a pensar, todo o passado é arrastado para o futuro. Ou seja, que entre nós está todo o testemunho dos tempos passados. Obviamente que não seremos capazes de fazer essa arqueologia do passado, mas avançando cientificamente, poderemos fazê-lo cada vez melhor.
Simplesmente, não acredito que o tempo sirva de lixeira para destruir o passado.


domingo, 5 de janeiro de 2020

Alvo de Maia - volume 10

Está feita a acta de 2019.
Um PDF de 365 páginas para juntar aos anteriores, fazendo agora um total de 3668 páginas.


Alvo de Maia - Volume 10 (2019)

Agradecendo as contribuições de José Manuel de Oliveira, João Ribeiro, David Jorge e IRF.

Todos os volumes estão disponíveis em

sábado, 4 de janeiro de 2020

A imprensa em 2020 - aquém e além

A informação sempre foi uma componente principal de qualquer forma de poder.
A forma como é distribuída e manipulada pode ter um efeito crucial na acção alheia. As ideias são usadas como meio simples de aquisição e imposição de vontades, com propósito díspar do original.

Pertencemos às gerações que sobrevalorizaram o poder da imprensa centralizada, por jornais. rádio e televisão, enquanto forma quase única de informação fidedigna. O sistema foi de certa forma poderoso e teve o seu apogeu no final do Séc. XX. 
Porém, com a entrada do Séc. XXI e o aparecimento das "redes sociais", poderá questionar-se a evolução do sistema informativo... em que aplicações como Facebook, Twitter, Youtube, Whatsapp, Instagram, ou mais recentemente o Tik Tok, começaram a definir outros interesses e outras direcções.

Facebook, Instagram, Youtube, TikTok,
Twitter, Google+ (desaparecido), Blogger, Whatsapp,
Televisão, Rádio, Jornais

Há alguma diferença?
Claro que há alguma, mas... para o que interessa, não haverá nenhuma diferença.

Os mais jovens entretêm-se com a moda... o Tik Tok estará agora mais na moda do que o Instagram, e dizem que o Facebook é só para velhos. Enquanto isto, cria-se a ideia nos petizes de que a informação é mais dirigida aos seus interesses... sendo claro que os seus interesses são assim dirigidos.
Aparecem os típicos fantasmas - o Tik Tok tem propriedade chinesa, e haverá quem alerte para o perigo da China querer monitorizar as preferências da juventude ocidental (claro que se forem os EUA não parece haver problema).

Ora, convém notar que todo este mundo informativo tem um aspecto real e um aspecto imaginado.
Real, porque por estes canais passam efectivamente importantes factos ocorridos. 
Imaginado, porque a nossa capacidade de distinguir a realidade da ficção será cada vez mais ténue.

Mais importante que isso, tem o aspecto dirigido, de forma mais ou menos subtil com aquilo a que se chamam agora os influencers - ou seja, a malta gira que vai colocando a palhaçada de que o circo necessita para sobreviver.

É assustador ver que a geração mais nova está de tal forma dirigida que parece praticamente incapaz de procurar, por sua iniciativa, o que quer que seja... Tendo praticamente acesso a tudo com um simples clique, os cliques que fazem são os cliques da moda na partilha pelos amigos.

Controlo da informação
Se poderíamos considerar que os meios de comunicação tradicionais - televisão, rádio e jornais, estavam fortemente condicionados na sua liberdade pelo controlo estatal - que restringiu o número de canais ou jornais existentes... a ideia de permitir acesso global em diversas plataformas foi uma pseudo-abertura. Para captar a atenção das pessoas seriam necessários os processos clássicos de publicidade. Mas o principal instrumento de controlo foi o próprio convencimento da população de que poderia escolher apenas o que lhe "interessava".

Como sabem hoje os jovens das notícias? 
Por exemplo, o assassinato do general iraniano pelos drones americanos (ocorrido ontem), terá sido recebido em grande medida através de notícias que chegaram via Tik Tok, Instagram, ou Facebook.
Para os grandes agentes de informação ou desinformação internacional é razoavelmente indiferente se o jovem vê televisão na sala com os pais, ou no telemóvel enquanto conversa com os amigos. 
Interessa apenas dar destaque ao assunto.
Não são os grupos de amigos que definem os tópicos de conversa, exceptuando as conversas de café que ocorrem nas redes sociais, e que antes ocorriam mesmo nos cafés.

A actualidade, os focos de interesse, vão continuar a ser dirigidos como foram antes. Ou seja, através das grandes organizações noticiosas que definem o que é ou não é para ser noticiado. Já era assim com os jornais de grande tiragem, com as rádios ou televisões nacionais, e não vai ser diferente com a existência das novas plataformas de comunicação.
A maior crítica virá como já era hábito através da sátira. Se no tempo anterior ao 25 de Abril havia tímidas críticas por via dos espectáculos de revista do Parque Mayer, no tempo posterior são raros os casos de crítica satírica que se consigam manter de forma mais ou menos contínua.
O controlo da informação continuou de boa saúde.

Aquém
A novidade que a sociedade judaico-maçónica nos foi trazendo, e terá sido uma revolução de costumes e procedimentos, foi um controlo de informação que não passava por atacar e hostilizar quem procurava manifestar-se contra o sistema. A dissidência foi aceite e os fogos reais passaram a fogos verbais, sendo a receita consumida pela sociedade sem perdas consideráveis para a classe dominante, e com um incomensurável rendimento de maior produtividade.
Assim, a partir dos séculos XVIII e XIX os jornais foram-se tornando num instrumento crucial de controlo de opinião, permitindo ao mesmo tempo uma explosão de ideias. No Séc. XX o papel dos jornais, das rádios, do cinema e depois das televisões, acabou por ser tão importante que basicamente as acções militares já não poderiam ser desencadeadas sem se pensar na guerra da informação. 

No entanto, durante o Séc. XX vemos uma ideia absolutista, uma certa ideia de verdade universal, que conviria ser preservada e transmitida pelos órgãos de informação. A imprensa internacional foi sendo estabelecida e solidificada de forma a aquecer ou arrefecer ânimos da opinião pública, mas sempre com a preocupação do público na verdade.

Além
Aquilo que passámos a ver neste início do Séc. XXI foi a introdução da ideia relativista de verdade, em que a verdade pode interessar ou não... O jovem não sente necessidade de ler jornais ou assistir ao telejornal, porque tudo vai bem no país das maravilhas. Segue apenas os seus interesses mundanos, e eventualmente poderá interessar-se por algum tema da moda - "alterações climáticas", "migração dos refugiados", ou "terrorismo internacional". Há já grupos bem definidos para orientar a opinião nestes assuntos, e se no final de contas restarem 5% dos jovens que tem interesses mais complicados, pois com essa percentagem o sistema aguentaria bem, e aguenta ainda melhor porque nem esses números se verificam. 

Assim, ao contrário do que se poderia iludir, se a internet permite uma certa liberdade de agremiar conjuntos de pessoas com ideias comuns, as redes sociais acabam apenas por ser uma forma de alienação da realidade, sempre controladas a um nível superior, que as torna ineficazes ou incapazes de revelarem qualquer alternativa. Certamente que se poderá usar os exemplos da primavera árabe, ou dos protestos de Hong Kong, para mostrar como as redes sociais podem ser eficazes... mas nesse caso estamos a falar concretamente de movimentos dirigidos pelo exterior, provável ou certamente por via da CIA ou MI6.

Na prática e até que a temperatura se torne insuportável, a cozedura em lume brando não provoca a mesma reacção de repulsa do que a ebulição.