7) Sanchoniato - a mitologia fenícia
Há poucas referências a Sanchoniato, um historiador fenício, mas foi alvo de atenção no Séc. XIX, e nos livros "Ancient Fragments..." de Isaac Cory, que já mencionámos e também nas obras de G. Stanley Faber, por exemplo "A dissertation on the mysteries of the Cabiri", trata-se de um autor crucial.
Porquê? Porque seria basicamente uma das únicas referências que existiam à época que não surgiam da tradição judaico-cristã ou greco-romana (outra seria a de Beroso, sobre os assírios-caldeus, de que já falámos). A obra tinha sido traduzida para grego por Philo de Byblos, e chegado mais uma vez através de Eusébio de Cesaréia.
Stanley Faber tem um esquema simplificado das divindades que Sanchoniato refere na sua cosmogonia.
Começa por fazer um paralelismo com a descrição hebraica/mosaica (de Moisés), desde o primeiro homem:
Paralelo entre os primeiros homens segundo Sanconiato e Moisés (visto por Faber)
Sanchoniato atribui ao vento (Colpias) e à noite (Baau) a origem de dois mortais - Eon e Protogonos.
Acrescenta que Eon (~Eva) descobriu que poderia comer frutos das árvores.
Destes dois nasceriam Genus e Genea que viviam na Fenícia (como não poderia deixar de ser...) e que rogavam ao Sol (Beelsamin, similar a Zeus) para terminar as secas.
A terceira geração tinha Fos, Pyr e Flox que descobriram a produção de fogo esfregando paus, e ensinaram os homens (... faltaria perguntar é quem eram afinal essoutros?).
Estes tiveram filhos muito altos, a quem foram dados os nomes de montanhas das redondezas - Cassius, Libano, Antilibano e Brathu.
Seguem-se Memrumus, Usous e Hypsuranius, que Sanchoniato detalha serem filhos dos anteriores e de suas mães... explicando isso pela escassez de população. Acrescenta que Hypsuranius habitava Tiro e inventara o papiro, tendo ficado inimigo do irmão Usous, que inventara vestes de pele... Esse mesmo Usous teria sido o primeiro a aventurar-se no mar com um tronco partido numa tempestade. Por isso erigiu dois pilares ao fogo e ao vento... e os descendentes passaram a venerar os antepassados nesses pilares.
Passadas gerações, dos descendentes de Hypsuranius surgiriam Agreus e Halieus, inventores de artes de caça e pesca. Desses surgiriam Crisor, identificado a Hefesto, que descobrira e aprendera a trabalhar o ferro. Em particular fazia anzóis, e teria sido o primeiro navegador. Por isso teria adorado como deus, de nome Diamiquio. Os irmãos seriam os primeiros construtores de muros com tijolos...
Da sua descendência nasceria Technites e Geinus (inventando azulejos), e desta geração surgiria ainda Agrus, que viria a ser adorado como o maior dos Deuses na Fenícia. As casas passaram a ter pórticos e criptas, e iniciou-se a caça com cães, com Aleta e Titan.
Daqui descendem Aminos e Magos, que ensinaram os homens a construir vilas e a cuidar de rebanhos, depois Misor e Sydic que usaram o sal (preservação de comida).
O que vemos até aqui é uma plausível descrição da sequência de descobertas/invenções humanas associada a alguns nomes fenícios. Porém, de Misor descende Taautus que tem um significado mais importante, porque o associa ao egípcio Thoth e ao grego Hermes. Já pelo lado de Sydyc vai associar os Cabiri ou Samotrácios, que teriam sido os primeiros a construir um barco completo!
Talvez por isso, Stanley Faber vai associar essa construção à separação do dilúvio.
No entanto, Sanchoniato não se refere a nenhum dilúvio... e nisto difere profundamente da tradição assíria e hebraica. Convém aliás notar que ao mito do dilúvio de Ogyges, nos gregos, também não era dado especial relevo.
A partir daqui vai haver alguma semelhança com a descrição grega, pelo que Stanley Faber vai passar para essa comparação. Sanchoniato refere-se à descoberta de ervas medicinais e da cura de venenos, falando de Elioun (Hypsistus) e da mulher Beruth (de onde virá o nome Beirute), que geraram Autocton (Úrano, Céu) e Ge (Terra), nomes dados pela sua beleza. O pai era o regente e teria sido morto num confronto com bestas selvagens, e o filho Urano teria recebido o trono e feito rainha a irmã Ge.
Sobre a geração seguinte, Faber esquematiza numa tabela:
Esquema das gerações fenícias de Sanconiato (por Faber)
Interessa especialmente notar que há nomes que são iguais às da mitologia grega clássica, de Hesíodo, como sejam Úrano, Cronos (Ilus), e Belus (Bal) será identificado a Júpiter/Zeus.
Porém, a perspectiva de Sanchoniato é completamente diferente da de Hesíodo.
Este Sancho "pensa" de outra forma... os deuses foram homens, elevados depois ao estatuto divino.
Nalguns aspectos há analogias. É dito que este Urano também teria tentado eliminar os filhos, e que Cronos se rebelaria contra o pai, com a ajuda de Taautus-Hermes, que ainda seria contemporâneo.
Seria nesta altura que Cronos teria fundado Biblos, com uma muralha que a cercaria, e expulsaria o irmão Atlas para uma caverna. Os aliados de Cronos seriam chamados Eloi, pelo seu nome fenício ser Ilus (ou Il, El).
O pai continuaria a opor-se-lhe, e por outro lado Cronos decapitaria os filhos por suspeita de rebelião, acabando também por eliminar o pai, cujo sangue seria depois consagrado às fontes e rios.
A meia-irmã de Cronos, Astarte, seria sua consorte e identificada a Afrodite. Ela tomaria a cabeça de um boi como símbolo de Tiro, juntamente com um meteoro que havia recolhido.
Cronos, tomaria ainda a Ática grega e esse seria o reino de Atena (Minerva), sua filha.
Há um aspecto interessante em que Cronos se circuncisa em homenagem do pai, obrigando os aliados a fazer o mesmo. Finalmente, esta descrição de Sanchoniato (que é mais detalhada) termina com a atribuição do Egipto a Taautus por Cronos, que adopta um símbolo de 4 olhos, à frente e atrás da cabeça!
Por outro lado, Taautus (Thoth) tomaria como símbolo a serpente, ao representar um espírito que se move sem membros, podendo ter várias formas, inclusivé espiral, pela sua longevidade e capacidade renovadora (mudança de pele, e consumir-se no final de vida).
Falta só falar do aspecto da cosmogonia fenícia de Taautus.
Tudo começaria com uma conexão entre o Caos e o Vento. Esta união seria simbolizada por um ovo rodeado por uma serpente, e dela surgiria a lama inicial Mot (ou Ilus), de onde se formaria o universo. Seria do som do trovão que distinguiria os animais inteligentes. Taautus criticaria os homens por adorarem e fazerem sacrifícios a deuses antropomórficos - o que ele atribuía à estreiteza das suas mentes.
A serpente que rodeia o ovo (o primeiro) entre outros símbolos
do livro "The Origin of Pagan Idolatry" (Stanley Faber, 1816)
Apesar das semelhanças, notamos uma grande diferença conceptual entre fenícios e os restantes povos.
Os fenícios seriam praticamente ateus. A explicação de Taautus é um esboço de explicação natural, como terão depois alguns filósofos gregos.
8) Conjugações
Há algumas conjugações que podem ser feitas com o texto anterior sobre Beroso.
O nome Dagon (irmão de Cronos) foi também associado a Oanes, o anedoto, o homem-peixe dos assírios, e por outro lado Belus (filho de Cronos) seria venerado na Babilónia. Poderíamos ver aqui uma possível influência, ou interferência fenícia, na formação da mitologia assíria-caldeia.
Se por um lado há muitas diferenças, por outro lado há bastantes semelhanças nas formações dos mitos.
Isaac Cody concorda com Stanley Faber, citando-o desta forma:
- (...) as to render untenable every other hypothesis than this: "that they must all have originated from some common source"
Portanto estes estudiosos partilhavam da ideia que os pontos comuns sugeriam que todos os mitos teriam partido da mesma raiz comum, e davam explicações possíveis:
- todas as nações tinham concordado pacificamente numa mesma fonte, ou esta lhes tinha sido imposta, ou ainda que todas as nações tinham vindo de uma cultura comum.
Esta última hipótese levava naturalmente ao mito da Torre de Babel... a cultura seria comum, mas depois teria sido alterada pelo fado de cada civilização.
Stanley Faber vai um pouco mais longe e afirma que os eventos que levaram à queda da Torre de Babel na planície de Shinar teriam definido um carácter marcante na evolução da humanidade, e que a "família poderosa e guerreira" que teria ganho vantagem sobre os seus irmãos, nunca teria deixado de exercer a superioridade até ao presente:
(...) In short, the events, which occurred in the plain of Shinar, have stamped a character upon the whole mass of mankind that remains vividly impressed even to modern times. The powerful and martial family, that once obtained a decided preeminence of their bethren, have never down to the present hour, ceased with a strong hand to vindicate their superiority.
No fundo, isto seria a tradicional teoria da sequência de impérios ou monarquias, reduzindo-a a um único império definido em Babel, por Nimrod, ou seja também, com outros nomes, o simbolizado gigante caçador Órion (ou Orionte), Nembroth ou Amraphal, já identificado a Hamurabi.
Isaac Cody procura estabelecer uma linha semelhante e vê um ponto comum na designação "Cita", que se aplicaria a uma boa parte de povos em diversas nações. Ora o nome "citas" é em grego Σκύθης ou Skythes, que se poderia ler entre nós como "Escutes" em vez de Citas. E é claro que isto lembra algo (não as SCUTS, nem os Escutas... mas enfim há sempre escutas), lembra os Escotos, ou seja o Escoceses, que tanto se orgulhavam da sua ascendência, que remontaria afinal à nobreza Cita. Não é preciso falar mais de ritos escoceses, que isso levar-nos-ia a ter que partir pedra, e ainda estamos algo livres dessas pedreiras.
Como temos vindo a referir, e é aqui claro nestes autores, parece haver uma manutenção da estrutura de poder desde o tempo mítico da Torre de Babel. A sua visibilidade é apenas aparente... usa as estruturas de poder visíveis, mas a sua acção foi sempre dissimulada. Parece ter visado mais influenciar o curso dos acontecimentos do que ser um dos seus protagonistas registados - guardará os registos, certamente, em colecções privadas.
Pouco interessa o folclore, grande parte da análise está feita, entretemo-nos agora apenas com os detalhes.
Sobre o que interessa, e que limita exactamente as coisas, disso falaremos noutra altura.