terça-feira, 9 de outubro de 2012

Cartas de Inglaterra

Tendo aqui falado do livro "A Century of War", é apropriado referir as 

"Cartas de Inglaterra", de Eça de Queirós.


Exercendo funções nos consulados (15 anos em Inglaterra), Eça revela nestes textos jornalísticos algo difícil de escrutinar nos seus romances. No seu estilo sarcástico e lúcido, aborda alguns dos acontecimentos do final do Séc. XIX, que corroboram uma boa parte da análise que Engdahl faz desse período.

Aparentemente os textos destinavam-se a leitores brasileiros, ainda que também tenham sido publicados em Portugal, no Diário de Notícias. No Capítulo X intitulado "O Brazil e Portugal" deixa claro que são brasileiros os destinatários, ao avisar sobre o súbito interesse da imprensa inglesa, nomeadamente o "The Times", sobre aquele imenso território "pouco aproveitado" comercialmente. O artigo seria semi-elogioso, contrapondo o Brasil às colónias espanholas, mas Eça antevê uma outra intenção. Esta citação que Eça faz, revela bem o aviso que procurava transmitir sobre as intenções inglesas:
«No Perú, na Bolivia, no Paraguay, no Equador, em Venezuela... em outros mais, os actuais ocupadores do solo terão gradualmente de desaparecer e descer áquela condição inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino.»
Sobre esta citação do Times, Eça nota:  "Nunca se escreveu nada tão ferino!"
Está perfeitamente ciente das intenções imperiais inglesas e vê no texto uma ameaça premonitória para que os brasileiros abram a sua economia à invasão inglesa - de forma comercial, ou de forma colonial.

Este contexto é especialmente nítido na descrição "in loco" do ambiente inglês contemporâneo da invasão do Egipto. Esse era o tema da carta anterior, no Capítulo IX: "Os ingleses no Egipto".
O texto é contemporâneo dos primeiros acontecimentos, nomeadamente do "Massacre de Alexandria", e antevê o desfecho - o Egipto tornar-se-ia um protectorado britânico. A designação "massacre" é de Eça, e deveria ser opinião crítica à actuação inglesa, o mesmo termo é hoje entendido para o atentado de 2011 (nada mais que as habituais confusões), e pouco parece restar na memória dos eventos de 11 de Junho de 1882. Os couraçados ingleses, estacionados no Porto de Alexandria, dispararam à vontade, arrasando por completo a velha cidade. Se havia ainda vestígios antigos, de uma cidade que foi o expoente da civilização, muitos deles devem ter sucumbido a nova destruição.

A análise de Eça é notável, são 80 páginas imperdíveis. Basicamente Eça acaba por descrever no caso egípcio um modus operandi que se repetia e que se iria repetir, conforme Engdahl mostra.
Começa com o desejo tecnológico de um governante, seduzido pela impressionante maquinaria inglesa, qual criança numa loja de brinquedos. Ora, esse "choque tecnológico", de que precisaria o Egipto, sendo importado, acabou por ser cobrado como dívida impagável... nada de novo, ou melhor, tudo de velho. A sociedade egípcia foi minada nos seus circuitos administrativos por estrangeiros, e pela sua influência no conselho, foram tornando a situação cada vez mais insustentável para a generalidade da população - os "fellahs" que tinham um estatuto de completa servidão face ao invasor, fosse ele turco, francês ou inglês. O pretexto para o bombardeamento de Alexandria parece ter sido pouco mais do que uma vontade egípcia de recuperação dos fortes que guardavam o porto.  Conforme refere Eça, os ingleses só queriam um pretexto, e qualquer um serviria... os jornais encarregar-se-iam de vender a necessidade da invasão, a necessidade de depor o novo governo hostil à civilização e à cristandade. E assim, conforme previa Eça de Queirós, apesar dos enormes custos, à Inglaterra não parecia faltar nem dinheiro, nem motivação, que consumaram a efectiva invasão do Egipto, e terminaram com a revolta de Urabi, ainda em 1882. Fulcral para a geopolítica britânica, a passagem no Canal do Suez, mantinha-se assegurada.

Nos Capítulos VI, e VIII, Eça vai debruçar-se sobre o "Israelismo" e sobre a morte de Disraeli. Apesar do contexto da primeira carta ser o aumento do anti-semitismo na Alemanha, ambas as cartas acabam por revelar bem como se tornava evidente a influência judaica através das instituições financeiras, em particular a City de Londres, ou a Bolsa de Paris. 
Disraeli não foi um primeiro-ministro qualquer... foi o principal político no reinado da Rainha Vitória, e acabou por definir grande parte da estratégia que definiu a predominância do Império Inglês. Conforme salienta Eça, mais estranha terá sido a ascensão de um plebeu judaico ao topo da "mui selecta" hierarquia britânica. Eça avança algumas razões ocasionais, mas deixa bem clara a arquitectura judaica que o favorecera. Se Disraeli tinha renegado ao judaísmo para se tornar num puritano protestante, o filho pródigo continuava a beneficiar dos favores dos banqueiros e da imprensa, dominada pela comunidade judaica. Eça diz que a fama de "grande inglês" ultrapassava fronteiras, graças à influência da imprensa, controlada a nível global.
Conforme refere Engdahl, depois das pazes com a França, a Alemanha acabou por ser eleita como principal adversário da Inglaterra, e certamente que estes movimentos anti-judaicos, que começavam na Alemanha (e que se iriam repetir com o nazismo), só acirravam essa eleição pelos jornais britânicos. Bismarck tinha levado longe no progresso uma Alemanha que rivalizava agora com a Inglaterra. Curiosamente, Eça menciona como factor de instabilidade o problema Sérvio da Áustria, e esse seria o rastilho que levou à 1ª Guerra Mundial. 
Ainda ao jeito de alguma antevisão, é muito curiosa esta previsão relativa ao socialismo:
(...) talvez um dia, quando o socialismo fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d'almas.
Se Proudhon e Bakounine não foram tão idolatrados, é bem verdade que o prognóstico relativo a Karl Marx não falhou por muito, basta lembrar o seu enorme retrato em desfile na Praça Vermelha.

Ainda relativamente a Disraeli, Eça será bastante azedo na crítica à sua veia literária. Talvez também Oscar Wilde quando pintou uma Dorian Gray não deixasse de sugerir ao ouvido o romance Vivian Grey de Disraeli (ver conexão). O "grande inglês" não abandonaria a sua inicial veia literária, mas não seria essa que o celebrizaria, conforme Eça diagnosticara.

Não vemos em Eça uma crítica violente ao crescente poder judaico, como era já habitual no Séc. XIX - relembramos o artigo sobre os Rothschild na revista Panorama, mas ela é explícita. Há assim um misto de compreensão e condenação sobre o movimento na Alemanha. Para além disso, não eram tropas judaicas enviadas para o campo de batalha no Egipto, mas era claro o financiamento e o apoio da imprensa, nos bastidores do conflito. O financiamento que faltava ao Egipto, nunca o deixou de ter o governo inglês. E os benefícios que daí advinham para a generalidade da população inglesa não se podem apenas medir na aristocracia ou na classe média inglesa, também devem ser pesados numa Inglaterra enegrecida pelo sucesso da sua industrialização, onde uma boa parte da população partilhava um destino desgraçado, à semelhança dos "fellahs" egípcios...

Acrescento esta citação, que é ilustrativa da opinião de Eça:
Mas o pior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam a sua prosperidade e garantem a sua influencia - plano tão hábil que tem um sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente, tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes—a Bolsa e Imprensa. Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os grandes jornais, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel. De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas, injuria suprema, pela voz dos seus jornais, ordena-lhe o que ha-de fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de bater!

domingo, 7 de outubro de 2012

Atlantis

Há quase ano e meio, no post "Traffic Signs", incluí um PDF em inglês:
onde referia que o relato da Atlântida feito por Platão não seria mais do que um antigo relato da América. Quando Platão descreve uma ilha maior que a Ásia e a África então conhecidas, situada além das Colunas de Hércules, no meio do Oceano, que outra descrição poderia aí caber que não fosse o continente americano?

As razões são várias, mas faltou apresentar nessa altura um mapa que esclarece que essa era também uma opinião à época dos descobrimentos, que um famoso cartógrafo - Nicola Sanson - deixou registada. A ligação americana é ainda abordada por Francis Bacon na obra "New Atlantis".

Num mapa datado na transição de 1700, Sanson vai ilustrar o novo continente com o antigo nome e o mapa da América é designado "Atlantis Insula":
(img)

Para Sanson, o "Altera Continens", o "outro continente", toda a América, é denominada ATLANTIS.
As Caraíbas são as Ilhas Hespérides, as Canárias/Madeira seriam as Fortunatas, e as Ilhas de Cabo Verde as Gorgodas (note-se que o Cabo Verde era o Promontório Arsinarium). 
Thule é a Islândia, e Sanson parece dar a entender que Ultima Thule poderia ser a Terra do Fogo, numa pequena nota junto ao Estreito de Magalhães.

A vermelho, com destaque especial, coloca duas cidades:
- Machimos Bellatrix
- Eusebes Religiosa
... que correspondem a Tenochtitlan (dos Aztecas) e Cuzco (dos Incas).
Estas cidades estavam incluídas numa outra descrição "Atlântida", nomeada Meropis pelo historiador Theopompus (cronista de Filipe II, pai de Alexandre Magno).
É interessante a designação Meropis, pois relaciona-se claramente com Merope, a mais nova das ninfas Pleiades, filhas de Atlas, designada como "estrela perdida". Merope seria a mulher de Sisífo. As Pleiades estavam ligadas às Ilhas Hespérides, e como tal ligadas ao Ocidente "perdido".

Como os nomes revelam, Machimos seria uma cidade bélica e Eusebes uma cidade religiosa. Os Meropes seriam gigantes, com o dobro da altura dos humanos normais (lembremos os patagões...), e se há quem argumente que a obra de Theopompus se destinava a ridicularizar o relato de Platão, Nicola Sanson não deixa de dar o devido destaque no mapa às duas cidades.

É também curiosa a antiga estrutura de Tenochtitlan, hoje Cidade do México, já que era praticamente uma cidade rodeada por água. Parte da descrição de Platão revela uma cidade rodeada por água, com grandes templos internos. O grande lago Texcoco foi depois completamente assoreado pelos espanhóis, e hoje boa parte da Cidade do México assenta sobre um fundo enlameado. 
Modelo da antiga cidade Azteca de Tenochtitlan


Convém aqui lembrar a versão de Schwennhagen, que sustenta que o domínio da Atlântida era um domínio dos antigos povos americanos sobre a Europa, invocando o relato da guerra entre gregos e atlantes, reportada por Sólon e escrita por Platão no Timeu.

Porém, o mais incontornável para os contemporâneos dos "descobrimentos" do Séc. XVI é justamente a confirmação da existência da Atlântida pela "descoberta" da América. Pela descrição, a Atlântida corresponderia a um continente maior que a África e Ásia, situado para além das Colunas de Hércules... essa era a versão de Platão e foi isso que encontraram - a América no seu conjunto seria uma "ilha" maior do que os gregos conheciam da África e Ásia, juntas.
A ideia de que a Atlântida está no meio do Oceano Atlântico é apenas uma fabricação posterior. Se Platão não mencionava a América, não poderia limitar-se ao Oceano Atlântico, apenas haveria um grande Oceano, um conjunto do Atlântico com o Pacífico, e assim a América surge como uma ilha continental no meio desse vasto Oceano global. Era também esse o entendimento de Sanson e alguns contemporâneos. Modificar o relato, falando de uma ilha desaparecida no meio do Atlântico, surge como uma deturpação conveniente, destinada a manter a América ausente dos relatos antigos, e a manter o relato de Platão como um mito fabuloso.

Como já aqui referimos, o esplendor cultural grego aparece subitamente no Séc.V a.C., numa altura em que iniciam as suas guerras com os Persas e mantêm excelentes relações com o Egipto. Ou seja, tudo indica que os gregos foram acarinhados pelos egípcios como força de interposição contra a expansão persa. Esta viagem de Sólon, relatada por Platão, atesta essa cumplicidade que se manteria por séculos. A ligação tornou-se mais evidente com o reinado Ptolomaico, que basicamente uniu as duas culturas, fazendo de Alexandria o centro urbano do conhecimento na Antiguidade, simbolizado pela sua Biblioteca, e eclipsando a partir daí a importância das restantes cidades gregas.

Dando crédito ao relato da Atlântida, não nos parece improvável que uma civilização americana tivesse atingido um grau de desenvolvimento naval que lhe permitiria tratar os povos da bacia mediterrânica como vassalos, tendo aí estabelecido colónias, e usando a Península Ibérica e Mauritânia como base de assalto (conforme sugere Schwennhagen). A designação de "Atlantes" ainda se mantinha nos antigos geógrafos para povos situados no litoral da coordilheira do Atlas, conforme podemos ver na reconstrução do atlas de Dionísio Periegetes. É claro que o nome poderia derivar da designação dos montes, associados a Atlas, já que as Colunas de Hércules simbolizariam os pilares onde o titã assentaria o mundo sobre os seus ombros.

Não parece assim tão improvável a existência de uma tal civilização dominante, dizimada por uma catástrofe natural, como um embate de meteoro, ou pequeno cometa. Se tal evento é admitido que possa ter ocorrido junto à Península do Iucatão, nada parece impedir que a data fosse contemporânea com o fim dessa civilização, e um efectivo dilúvio que teria colapsado as fundações do seu império e dizimado uma grande parte da população terrestre, podendo mesmo levar a uma alteração na rotação da Terra, conforme sugeriam os sacerdotes egípcios. Este teria sido o dilúvio registado por muitos povos... mas como os sacerdotes egípcios revelariam a Sólon, outros dilúvios teriam ocorrido antes desse.
O impacto de um cometa seria o suficiente para gigantescos maremotos, para um aumento do nível do mar, e uma subsequente Idade do Gelo. Os eventuais sobreviventes seriam essencialmente populações interiores com pouco contacto com as principais civilizações. Os sobreviventes mais informados poderiam depois desempenhar o papel de autênticas divindades. Mantendo uma parte do conhecimento e recuperando alguns artefactos, apareceriam como magos, influentes sacerdotes, capazes de definir o posterior desenvolvimento de impérios. A América seria território proibido por razão dos vestígios dessa civilização anterior, e até que o território fosse limpo dessa origem, manter-se-ia oculto. As viagens a essas paragens seriam desencorajadas ou mesmo proibidas. O passado permaneceria secreto, para benefício dessa elite sacerdotal que definiria o curso da futura civilização. Apesar de muitas diferenças, houve pontos comuns em civilizações que cresceram em diferentes paragens, quase sem contacto entre si. A separação entre o Ocidente e o Oriente foi muito mais que fruto da distância geográfica. Nenhuma razão parece ser suficiente para explicar uma ausência de contacto durante milénios entre a China e a Europa, e muito menos para termos a Índia e a China sem contactos constantes ou história comum.

A ocultação propositada do continente americano carece de dados para sustentarmos esta versão especulativa. Mas a conjugação com do relato da Atlântida com os diversos relatos diluvianos, dá a entender uma quebra civilizacional profunda, que provocou uma perda da memória passada. A humanidade parece ter renascido sem memória, enredada em mitos induzidos, e não haverá melhor explicação para isso do que uma catástrofe de dimensões épicas. É nesse sentido que o mito da Atlântida poderá servir como uma antiga peça no puzzle da persistente ocultação.