quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Nota de Rodopé

A Rodopé foi atribuída a mais pequena das três pirâmides de Gizé (Miquerinos). A situação começa logo por ser confusa porque aparentemente Rodopé era um pedreiro escravo no Egipto. Porém, a atribuição a si da construção de uma pirâmide faz pensar mais em "pedreiro livre". 
A sua ligação a Esopo, outro escravo, é feita por La Fontaine, e a ligação de La Fontaine a Esopo faz-se através das fábulas, que são surpreendentemente semelhantes... Se escreveu sobre ele, é provável que La Fontaine tenha também lido a fábula de Esopo sobre "a formiga e o gafanhoto", a história de uma formiga trabalhadora e de um gafanhoto folião, que depois se vê obrigado a pedir-lhe comida no inverno. Agora, o que é que esta história de Esopo tem a ver com a bem conhecida Fábula de La Fontaine entitulada "A cigarra e a formiga"? O gafanhoto ter passado a cigarra? Uma lista de fábulas de Esopo pode ser encontrada aqui, e as várias coincidências de histórias podem dever-se a um olhar inculto, que não capte a inovação. E, sendo irónico, ao mesmo tempo não sou - a outra hipótese não deve ser descartada, porque as pequenas subtilezas fazem o gosto do secretismo cortesão.

Ora, esta nota de Rodapé, encontrei-a num livro de 1665, de Olfert Dapper, "Description d'Afrique", pag. 67, onde pouco antes se encontram duas ilustrações que concatenei:
Assinalei com duas setas vermelhas dois bustos. Um, próximo do Nilo, será a Esfinge com corpo de leão, quanto ao outro busto... não faço ideia. Seria liberdade criativa do autor? Finges ou Esfinges?
E todas aquelas pirâmides juntas? Contavam-se 17, segundo o relato citado do Príncipe Radzivil, que diferencia as duas principais, atribui a 3ª a Rhodopé, que dizia ser a mais perfeita em acabamento... ao contrário do que se vê hoje.

Mas, hoje, também se sabe que as esfinges, quando lhes cresce o nariz, pode cair pela gravidade.
Conforme se ilustra na wikipedia há algumas imagens da esfinge (e talvez da outra estátua) ainda com o nariz, pelo menos até 1700. Depois, o nariz cai... e há quem diga que foram os soldados de Napoleão, mas há uma imagem reportada a 1755, de F. L. Norden, que mostra uma estátua sem nariz.
Porém, nestas coisas conviria haver menor suspeição. Não ajuda as imagens terem uma legenda em francês, reportando a uma tradução de 1798, consequentemente posterior à expedição. Por azar, não se encontram as imagens originais, e também por azar, há um inglês que tendo viajado em 1755 desenhou a estátua com nariz. O cuidado que a expedição francesa teve, em deixar tudo como tinha encontrado... ou quase(!), também ajuda pouco. Mas isso faz parte da história, e é preciso compreendê-la, antes de a julgar. 

Ora, fomos de Rodopé às Esfinges. As esfinges cumpriam um papel importante na mitologia, e lembramos imediatamente de Édipo e de Tebas, ensombrada por uma esfinge. O coitado do Édipo, apesar de resolver o enigma da esfinge, e libertar Tebas do pesadelo, não lhe bastavam as chagas nos pés, teve ainda uma vida desgraçada.
Porém, aqui é ilustrativo fazer uma pequena comparação abusiva. A esfinge que atormentava Tebas seria também aquela que serviria para lhe levar o melhor rei, ou pelo menos um rei suficientemente perspicaz para resolver aquele enigma. Nesse sentido, o papel de "mau da fita" da esfinge acabaria por servir o propósito de salvaguardar Tebas, e o próprio Édipo... assumindo que só ele poderia resolver o enigma. O inimigo dos falsos pretendentes seria amigo do pretendente correcto... afastando-se nessa altura.
A comparação abusiva é com o papel da gestação humana. Os espermatozóides surgem todos como inúmeros pretendentes a uma estrutura ovular, que faz de virgem ofendida, colocando uma parede à sua investida, deixando-os perecer à sua sorte. Normalmente o que o óvulo não saberá é que também se não escolher nenhum, estas coisas têm regras...
Entendido desta forma, o papel de Édipo é o do espermatozóide bem sucedido, que passa a parede da esfinge, para encontrar uma Tebas, que quer afinal cruzar os seus cromossomas com o os do sábio forasteiro. Imagino que este tipo de mitologia esteja presente desde os tempos do culto de fertilidade, e pode invocar uma replicação de estrutura fisiológica, para o campo social.
Porém, estas coisas nem sempre são como nós queremos, e parece que o destino de Édipo estava traçado... ao invés de pastar ovelhas, foi bater nas paredes de Tebas. E também sabemos, que se Édipo não fosse ter com a Esfinge, era natural que a Esfinge aumentasse o seu raio de acção, acabando por o apoquentar no seu pasto... como já dizia Maomé.

Podia falar, analogamente, da figura do "Mecias", e escrevo assim, sem "ss", porque o "c" permite uma pequena variação de letras para "em Isac", e referir como são sacrificados cordeiros para lembrar a poupança do filho eleito de Abrão. Ora eu não fiz a linguagem, mas não posso deixar de notar no Velo de Ouro, ou no Tosão de Hórus... enfim, trocadilhos a desvelar, com colares menos explícitos, já agora.

Na parte da mitologia que falta contar, em Gaia, há uma estrutura suporte, que detém a ordem, uma visão, metade do sistema... a outra metade é externa, será filha do caos, do exterior, e terá a outra visão. Nessa mitologia de contornos fisiológicos, mas que é uma figuração de ideias, a estrutura ovular é preservada, pois é dela que sairá o ovo. É claro que se não houver ovo, entramos numa figuração diluviana.

Por outro lado, se é preciso dar nome ao ovo, ele está há muito presente como ícone. Primeiro, porque se deve separar "i-cone". E o cone numa perspectiva, numa sombra, parece uma pirâmide, mas pela base é um círculo. Sobre o equilíbrio entre as duas estruturas, já falei aqui. Sem as duas visões falha a perspectiva da outra dimensão. De um lado, do lado da realidade, do entendimento da ordem, está a perspectiva mãe, do outro lado, naquilo que parece ser acaso, caos, está a parte paterna.
O cone tem figurações que escapam à pirâmide quadrangular, justamente porque a base não é de raiz quadrangular... tem como génese a "quadratura do círculo", ou se quisermos, a "circulatura do quadrado", e o seu nome é Pi, e "ainda não tem vida". Pi está no nome "pirâmide", mas não na sua estrutura... aliás o prefixo "pi", podemos encontrá-lo em "pico", "pilar", e mais não "falo".
Porquê?
Porque haveria de a relação entre uma estrutura e outra se estabelecer com um número particular?
Teria que ser algum... é claro, mas não há nenhuma razão particular de não se estabelecer de forma racional, e sim transcendental. Na nossa compreensão do universo essa razão estabelece-se. Essa é uma ligação entre a nossa compreensão racional possível e o universo. Uma limitação que eventualmente está ligada à nossa condição material, e até biológica... onde somos meros seres definidos pelo número 5. 

Em resumo, para a parte de História, o que interessará mais será perceber o que aconteceu aos monumentos das pirâmides... o resto pode ser visto, se quiserem, como fabuloso, não de fábula de La Fontaine, nem de Esopo, mas de quem está farto de assistir à tosquia.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Detalhes

Conforme tinha referido num post anterior, ao procurar nos ficheiros mais antigos, encontrei esta relação entre a rotação do mapa de Jorge Aguiar, de 1492 e as bandeiras assinaladas no globo de João de Lisboa.

Não é que dê muito relevo a esta associação, poderia ser casual. Só não achei que fosse casual porque havia também a relação na rotação do mapa de Pedro Reinel com a costa do México.
Não conheço outro mapa com uma costa parcial de África incrustrada, mas nos dois que existem (ambos do reinado de D. João II), encontram-se estas possíveis associações. Note-se ainda que as 3 árvores desenhadas no mapa de Jorge Aguiar são semelhantes às do mapa de Cantino, denotando a zona da Terra Nova.

Sobre os mapas de João de Lisboa já falei muitas vezes, pouco mais há a dizer.

Tenho só um pequeno detalhe a complementar este texto.
Imagino que os telómeros sejam vistos como um problema, porém há uma coisa óbvia:
- O universo só pode ter instâncias de si mesmo, em diversos níveis. 
Não há nada que apareça "sabe-se lá de onde"... nada se perde (essa noção resulta da nossa concepção/limitação temporal), e se há alguma que se transforma é a nossa compreensão - que afinal nada mais é do que uma instância que emergiu nesse mesmo universo. A complexificação é natural e imensa, e só parcialmente inteligível.

Desculpem-me este "depeche mode", mas dadas as evidências, pouco mais tenho a acrescentar neste contexto.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Peças dos Painéis de S. Vicente (4)


[continuação]


13) Santos
Talvez a primeira coisa a notar é que não será fácil encontrar "santos" nesta história. 
Há projectos familiares, heranças, que se disputam pelo interesse patrimonial, indiferentemente de serem grandes terras, um simples cordão de ouro da avó, ou um território de caça de um felino.
Algo completamente diferente é um projecto social, uma solução de convivência com vantagens para os diversos intervenientes, um sistema protector das diversas ameaças.
Os conceitos misturam-se de forma complexa nos conflitos históricos, e se os projectos familiares se apoderaram do projecto social, outras vezes, raras, foram os próprios projectos familiares a cederem face ao futuro do projecto social idealizado. A nobreza é o projecto social, e degenerou pela sua confusão com o projecto familiar... projectos familiares todos têm, mesmo as alimárias. A separação de classes seria uma protecção do modelo da ordem medieval, não tinha benefícios em ser estanque, e isso acabou por perverter o seu sentido, tornando-se num conjunto cada vez mais caótico de projectos familiares.
Um grande pelicano seria capaz de sacrificar a sua carne para alimentar um ideal de sociedade. E isso deixou marcas profundas, de admiração, mas também de indignação.

Não consta ter havido nenhum apuramento especial das circunstâncias "misteriosas" em que ocorreu a morte do príncipe Afonso. Para um rei que puniu exemplarmente eventuais conspirações contra si, seria de esperar um outro tipo de reacção, e não propriamente deixar sem grande investigação o "acidente". Porém, creio que a D. João II não o preocupava especialmente a sua pessoa, mas sim o projecto social - pela lei, pela grei. Mas, pela grei, colocava-se, se necessário, acima da lei. Há um poder executivo que dá relevo ao poder da justiça, e de certa forma à representação do povo (que já existia nas cortes pela figura dos concelhos). Parece-nos um prelúdio de uma separação de poderes, tendo como objectivo o serviço da população e não apenas dos interesses da nobreza.

Dificilmente encontramos outro quadro europeu da época que coloque com destaque semelhante frades e pescadores, reis, navegadores, cavaleiros e sábios. Porque essa sugestão de representação também se encontra no quadro, e motivou as designações popularizadas.
Só por si, essa sugestão, reflexo da ousadia na governação, e não da ousadia arriscada de um pintor, deixaria a datação circunscrita a duas regências - a do Infante D. Pedro, ou mais provavelmente do neto, D. João II.

Quanto aos dois Santos, pareceu-me ver aí uma oposição de destinos na orientação das navegações.

Pelo lado ocidental, abria-se o livro do Novo Mundo e a colonização, não impediria ainda o comércio com o Oriente, evitando o conflito no Índico. Pelo lado oriental, fechava-se o negro pano, dava-se a batuta de comando, e haveria conflito nos mares. Pelo lado oriental, antevia-se ainda uma sangrenta expedição, com o velho motivo da Cruzada templária do Infante, e recordamos de novo as palavras do Cardeal Saraiva:
He portanto fora de duvida, que o sábio Infante levou na gloriosa empreza de seus descobrimentos hum fim mais alto e mais importante do que a mesquinha idéa de colher os Mouros pela retaguarda, idéa da qual se não diz uma só palavra na vida do Infante, nem de seu augusto pai, nem tão pouco em historia alguma dos descobrimentos Portuguezes.
(Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1875)
[... e o ficheiro PDF onde coloquei isto, entretanto desapareceu-lhe o link, e terei que repor isso]

Aos Infantes abriam-se duas perspectivas, e ainda que D. João II tenha virado o tio a ocidente, acho que a tal "ideia mesquinha de colher os Mouros pela retaguarda", da qual "se continua a não dizer palavra"... essa ideia oriental, era a parte principal do projecto de D. Henrique.

Nessa perspectiva, procurámos identificar um Santo como Bartolomeu, que marcava a data das novas investidas contra os marroquinos, em Arzila e Tanger. Colocámos outras possibilidades, uma dualidade S. Jorge/ S. Bartolomeu ou S. Vicente/ S. Tomé, ainda a possibilidade de serem duas faces de S. Vicente, e não esquecendo o nome do mosteiro "São Vicente de Fora", admitimos que o nome pudesse resultar desse Santo não estar presente, ou de uma alusão à ocultação dos painéis.
Pois bem, essa questão do Santo estar "de Fora" parece ganhar um novo dado.

Lendo entretanto o site paineis.org, retive este excerto sobre o "manuscrito do Rio", que desconhecia:
Por outro lado, o único testemunho histórico que parece referir de forma inequívoca pelo menos dois dos painéis (os maiores), coloca-os no retábulo das relíquias de S. Vicente na Sé de Lisboa, mas limita-se a descrever de forma vaga cenas que não entende. Trata-se do frequentemente citado manuscrito do Rio de Janeiro, descoberto por Artur da Motta Alves em 1936, onde um autor anónimo faz uma resenha dos retratos de figuras reais existentes em igrejas e mosteiros de Lisboa.
O documento data de fins do séc. XVI, e nele se refere expressamente que os dois painéis, descritos de memória, já não se encontram no local, sendo o seu paradeiro ignorado («... dirão os cónegos onde estão...»).
A forma como o autor recorda os painéis, atribuindo-os a um tal Mota, pintor de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o «santo», e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através da identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso, filho de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma estranha ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus protagonistas, por parte de quem se mostra informado acerca de outros retratos de reis existentes em Lisboa. Note-se que o exame radiográfico indica que a hipotética repintura tardia de um rosto adolescente numa figura adulta, necessária à sua identificação com o do malogrado príncipe, não teve lugar. 
Desta importante informação adicional, que destaquei, fica clara a atribuição que era dada ao quadro no Séc. XVI... como se dúvidas ainda houvesse.
S. Vicente está "de fora", é aí colocado o príncipe D. Afonso. Não é que isto seja determinante na interpretação, as interpretações são múltiplas, mesmo em quadros actuais. Nem será pelo facto de ter feito todo o caminho de dedução para a datação, e contexto envolvente na execução, que as minhas opiniões interpretativas, sejam mais que isso - opiniões pessoais, mas justificadas.

O objectivo destes textos era justificar "melhor" a opinião que coloquei há três anos, não me afectaria muito que ela fosse considerada certa ou errada, interessava-me que ela fosse consistente com a informação que procurei, sem omitir as eventuais fragilidades da tese. Penso ser este o melhor caminho para a procura de uma verdade comum, partilhada.

Bom, pode-se dizer que aqui eu estava errado - é possível, não escrevi a hipótese de D. Afonso ser a figura representada num santo, mas também me lembro que não deixei de considerar essa possibilidade.
Agora, que ela fica mais clara, pela revelação do "manuscrito do Rio", avanço então com a possibilidade "mais profana", no sentido de que seriam elevados a santos outras figuras.

Há duas caras nos santos, e parece claro que não seria por falta de engenho do pintor... foi propositado, e assim haveria dois modelos. Que modelos poderiam ser ali considerados ao nível de "santos"?
Um, como já ficou claro pelo manuscrito, é D. Afonso, e está no 4º painel.
Quem é o outro "santo" que está no 3º painel?
- Santa Joana Princesa, irmã do rei, que cuidou de D. Jorge, como uma mãe... como já o tinha feito com o próprio irmão, órfão à nascença da sua mãe, D. Isabel de Coimbra.

Talvez até estejam as duas Joanas (irmã e tia), na própria representação de mãe, que D. João II nem conheceu, mas sendo já três invocações, continuarei as contas da forma que um célebre reitor/cantor ensinou "... quatro, cinco, seis, é uma história de reis", não deixando por isso de considerar que as dualidades de santos, que escrevi, fazem sentido ainda como parte desta história.

Para quem considerar esta tese, percebe a riqueza da composição, do mau e bom génio de um enorme Rei, e percebe como é complicado aceitar que isto seja ocultado. Perceberá também porque nem gosto muito de recordar o assunto.

Não falei muito da Rainha D. Leonor, mas será uma peça chave no que se seguirá em Portugal.
O seu drama pessoal será enorme.
Depois de ver o seu irmão assassinado pelo marido, tem o filho morto em circunstâncias suspeitas... um filho que o marido considerava fraco, e manifestara as suas dúvidas sobre a sua capacidade de governação. Promovia agora outro filho, em detrimento do seu irmão D. Manuel.
Por esta razão fiz aquela pequena introdução sobre como a dualidade entre o projecto social e o projecto familiar poderiam entrar em profundo conflito na nobreza. Que rei seria capaz de ferir a sua própria carne? O pelicano de D. João II certamente que não ajudaria às interrogações de D. Leonor.
Houve assim suspeitas que não estivesse completamente alheada da cobrança que D. João II sofreu na carne, que o terá envenenado, irremediavelmente, vindo a morrer poucos anos depois (1495).

D. Leonor era de Viseu, D. João assumia a herança de Coimbra, do seu avô, o quadro apontava para terceiros culpados, os Bragança e as ligações a Castela/Espanha... Porém, a colocação das peças no quadro revela o génio, o bom e o mau... Aquele quadro, mas sobretudo o enquadramento da sua intemperança, poderão ter ditado a morte do artista... ou dos artistas, porque pouco mais se soube de Nuno Gonçalves. O seu nome foi até esquecido, e poderá ter sido confundido com outro, não é relevante. Lê-se na Infopedia que o último documento que o menciona em 1492 é já a título póstumo. Pensamos perceber porquê, mas se o "braço artista" do rei foi cortado, também parece ter sido o da pintura, durante alguns anos.
Passados muitos séculos, a sua arte viu a luz, ocultando-se a condução da composição, do rei. Temos dúvidas que Nuno Gonçalves possa ser banido por algum código da nobreza, ele não seria nobre, e pode até ter sido um simples executor de instruções reais, se as entendeu ou não, era irrelevante.
Compreendemos que num estrito formalismo, em que a sintaxe suplanta a semântica, a arte de D. João II seja ainda banida pelos circuitos mais conservadores, "vencedores" da velha querela.
Apesar de ter logo dito
"O clima fúnebre e sinistro do quadro, mantém-se hoje..."
... não esperava que esse tipo de mentalidade ainda estivesse tão activa, mas fui aprendendo.


14) A Relíquia
Não li ainda a obra de Eça de Queirós, mas já deveria ter lido.
Bom, no 6º painel, a que é dado o nome "relíquia", considerei que os personagens principais se tratavam dois sábios da confiança de D. João II, ou seja Mestre Rodrigo de Lucena, médico (ou "físico-mor"), e mais acima Mestre José Vizinho, matemático, de origem judaica.
O escrito anterior reforça essa hipótese e por isso pouco tenho a acrescentar de novo. Noto agora que a existência de dois livros, um em latim, e outro em hebreu, mesmo em segundo plano, poderá ter aberto outro problema - religioso.

A interpretação de que a relíquia se tratava do osso do crânio de D. Afonso mantém-se válida, disse então:
                         A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino. Falta a relíquia - o cérebro, para ler tudo o que o painel representa. Falta ainda o cérebro para prosseguir a herança do conhecimento de Avis - é essa a relíquia que o Mestre Rodrigo nos mostra.

Só para esclarecer eventuais mal-entendidos que, como sabemos há muitos, quando referi que faltava  "- o cérebro para ler tudo o que painel representa...", estava obviamente a referir ao de um qualquer observador! Não considerei que o intuito do quadro fosse um enigma por resolver, apenas é visto assim pelas condicionantes que se criaram à sua volta.

Não falei da caixa, e nem tinha reparado que se considera outra, preta, no 1º painel. Admito que possa ser o caixão que foi temporariamente aberto para permitir toda a representação, juntando presentes e ausentes (a parte preta seria a sua tampa).

Quanto ao "velho", que nem tem a barba bem feita, trata-se claramente de uma figura popular, talvez quem tenha descoberto "a relíquia", ou levado o corpo do príncipe morto. Por outro lado, será genuinamente a única figura que não frequentava o paço real, o povo distante de Lisboa. A melhor compreensão deste painel passará ainda por identificar os dois personagens nos bastidores, algo que nem sequer tentei.


15) Navegar
O 4º painel, de que pouco falei até aqui, considerei-o dos "navegantes", genericamente.
Adiantei uma possível identificação de Gama, talvez Paulo e não tanto Vasco, não especifiquei, porque creio que Paulo, mais velho, seria o preferido por D. João II, mas para reduzir as explicações ao mínimo, não quis entrar em detalhes, na altura.
Assim sendo, com este nível de incerteza, não valerá muito a pena comparar imagens, mas o excelente quadro de Vasco da Gama atribuído a Gregório Lopes, poderia ser uma comparação possível, e com essa latitude não vejo impedimento que se tratassem de irmãos.

O caminho das Índias seria atribuído aos Gamas, pedido posterior de D. João II a D. Manuel (quando já se afigurava incontornável a sucessão), provavelmente por recompensa de outras navegações notáveis. Lembramos que havia uma "Angra dos Gamas" na Carta ou Portulano do Atlântico Norte, naquilo que poderia ser uma procura da entrada para a Passagem Noroeste, ou seja, outra ligação para a China. Se os Corte-Real a tentaram de novo, pode ter sido porque Paulo da Gama já era morto. Paulo recusara ser o protagonista da viagem de circum-navegação africana, mas acompanharia o seu irmão. Morreu na viagem de regresso e o seu barco, S. Rafael, foi queimado... Apenas resta dizer que, se assim foi, pelo menos a sua memória permaneceu nos painéis.

Do lado sul, convém lembrar que Pigafeta "descai-se" sobre a viagem de Magalhães, dizendo que Magalhães sabia de memória um mapa de Martin Behaim que teria o caminho do estreito... e como já dissemos, Behaim acompanhava Diogo Cão em 1483, quando foi declarada a chegada ao Congo (o suposto grande feito de avançar mais umas tantas milhas na costa africana, cheia de "praias difíceis"!).
Não se conhecem a Behaim muitas mais viagens, ou pretensões de outras navegações. Se Behaim tinha esse mapa, foi porque provavelmente acompanhou Diogo Cão na outra parte dessa viagem ao "Congo" - e pelo caminho descobriu assim a "Cola do Dragão", ou seja, o Estreito "de Magalhães"... em 1483.

A norte, Paulo da Gama, a sul, Diogo Cão, pouco importa, dois hipotéticos protagonistas das passagens americanas, ficariam colocados com um destaque de realeza, tal como Mestre Rodrigo, aliás.

Sendo este "Nuno Gonçalves" o segundo texto da série de sete que apresentava na altura, não iria logo descriminar estes detalhes, que foram aparecendo nos textos seguintes.

A batuta era dada a Paulo da Gama, mas para usar um caminho diferente, e isso justificaria a sua posterior recusa perante a oferta de D. Manuel. O quadro talvez mostrasse uma cedência parcial de D. João II - o caminho seria o oriental, mas não contornando África. Esse caminho teve D. João II muito tempo (7 anos) para o abrir, declarado o Monte Prasso (depois Cabo da Boa Esperança) em 1488, por um certo Bartolomeu Dias, cujo nome nos sugeriu Dia S Bartolomeu.
Esse caminho de S. Bartolomeu, manifestamente não parece ter sido pretendido por D. João II, mas foi depois retomado por D. Manuel, mas já com outro Gama.

Talvez... Paulo da Gama e Diogo Cão

A colocação neste painel de um D. Diogo morto, ou de um D. Manuel, levantaria ainda mais impossibilidades de qualquer aceitação de tal cenário numa corte plena de hostilidade. Mas D. João II não era hostil a D. Manuel, ainda jovem, por isso preferi considerar que poderia estar no 5º painel, dos "cavaleiros". A colocação de D. Diogo naquela posição talvez se referisse ao diferendo que houve entre ambos e que levou ao seu assassinato... era possível que D. Diogo pretendesse aquele protagonismo de descobertas para a nobreza, para si! Se aquele era um rosto similar ao de D. Manuel, poderia constituir um "aviso de navegação", sobre atitudes similares, ou negociatas de partilha de explorações com os espanhóis.

Um pouco mais acima, temos dois personagens em destaque, mas mais difíceis de identificar.
À esquerda, pela sua idade, creio que pensei em Diogo de Azambuja, homem de confiança de D. João II, a quem confiara o Castelo de S. Jorge da Mina (outro santo escolhido), à direita acho que não pensei em nenhum candidato, mas haverá certamente muitos, e entre aqueles cuja história o nome não lembra. Não creio que seja necessariamente um navegador, talvez alguém mais ligado à parte militar.

Acima de todos, surge um arcebispo, que dá nome ao painel. Pensei em D. Pedro de Noronha, não com razões especiais, para além de se poder ajustar... ou ainda em D. Jorge Costa, um arcebispo exilado em Roma, inimigo que considerava morto, e a sua colocação, próximo de Afonso de Bragança, poderia indicar essa hostilidade. Como já foi notado por outros, a sua jóia assenta no "barrete mal cosido" de D. Diogo/ D. Manuel. Isto favorece a dupla representação, já que Roma certamente que apoiaria D. Manuel e não D. Jorge (que tem apenas uma pequena pérola no seu "barrete", contrastando com a magnífica jóia que "acidentalmente" fica no barrete de D. Manuel).

Para compensar aquela figura hostil morta/viva, que se oporia em Roma aos planos de D. João II, procurei saber os bispos que seriam seus eventuais aliados, enumerando Coimbra, Tanger e Algarve, e também o Prior do Crato...
Como é óbvio, tudo isto foram apenas suposições secundárias, com uma escolha de personagens ligeira, com eventuais falhas, mas que em nada afectava a interpretação global já avançada.

Finalmente, é claro, a corda no chão contribuiu bastante para esta associação às navegações.
D. Leonor tem no seu símbolo de camaroeiro uma corda, provavelmente ligada à rede, mas não creio que se tratasse dessa ligação.
Se a ideia do quadro era uma união através daquela corda, há pelo menos uma ponta solta, e até uma sombra rectangular, demasiado errada, parecendo uma emenda.
As cordas farão parte integrante da chamada "arquitectura manuelina", mas já se nota a sua presença em muitas construções, ainda no Séc. XV.


16) Últimos Cavaleiros
Já fui descrevendo porque considerei a ambivalente a possibilidade de D. Manuel estar representado  também neste painel, acima do pai D. Fernando de Viseu, e do seu tio-avô, o Infante D. Pedro.
Esta seria uma linha em que D. João II poderia mostrar à sua mulher, D. Leonor, que a prezava, por aquela ascendência paterna, e não pela sua outra ligação materna, que através de D. Beatriz tocava o "lado Bragança", como mostrava no painel simetricamente oposto. Este seria o painel para uma ligação Coimbra-Viseu, que invocaria o avô/tio-avô D. Pedro, o tio/pai D. Fernando, e o primo/irmão D. Manuel.
Poderia ter considerado o Infante D. João, não fora quebrar a "regra das mãos", e daria seguimento acima, para o "Infante Santo, D. Fernando", onde se vislumbram sinais do seu martírio africano, quer pelo capacete, que já foi entendido, por outros, mostrar em reflexo a "janela de Arzila", da sua cela.
No entanto, podemos considerar a omissão do Infante D. João pelo seu casamento com Isabel de Barcelos, e para mais, remetemos ao comentário sobre o painel dos "pescadores".

Era mais natural ver a seguir a D. Pedro, de que já falámos, D. Fernando de Viseu, um tio que provavelmente D. João II admirava, pela sua faceta de navegador pelas paragens atlânticas, americanas, mais do que pelo simples facto de ser pai de D. Leonor.
D. Fernando de Viseu estava já morto, e desde essa data tinha sido a mulher, D. Beatriz, a dirigir a Casa de Viseu, e não só... tornou-se na única mulher a ser Mestre da Ordem de Cristo, sucedendo assim ao seu marido, e não deixando de financiar expedições a ocidente.

Ora, estando D. Fernando morto, mais uma vez colocava-se o problema "das mãos", que não estavam em sinal de paz, mas por outro lado também não se viam, porque era o único elemento da composição com luvas. Assumi que isso poderia ser entendido como uma excepção, dadas as luvas, e o seu "não descanso"...
Quanto a uma comparação com um retrato conhecido, dificilmente se pode considerar muito favorável.
No retrato mais antigo usa barba, e não são visíveis grandes detalhes do rosto. A linha do nariz não é incompatível, mas está longe de ser convincente. Ainda que o retrato antigo não seja de grande qualidade, os olhos e a ligação ao rosto não parecem condizer.
Poderá ser outro personagem, mas estragaria a lógica deste painel (não dos restantes).
Bom, mas foi com base nessa eventual lógica que prossegui para o seu filho, D. Manuel (talvez trocando feições com D. Diogo), e acima apareceria, algo deslocado, o Infante Santo.
A sua presença teria lógica como um aviso sobre a vontade de Cruzada, que era herdada por D. Manuel pela Casa de Viseu, do Infante D. Henrique.
O que se teria passado com o sacrifício do Infante D. Fernando arriscava a voltar a acontecer com a ideia de Cruzada pelo Índico, em direcção a Jerusalém, pela "retaguarda".

Foi assim que entendi, e preferi a lógica do conjunto à maior ou menor parecença dos retratos.

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Creio que abordei extensamente os diversos pontos que levantei, e alguns que outros levantaram, já que da outra vez fui necessariamente breve nas explicações, que me demorariam todo este tempo e detalhe.
Agradeço ao Clamente Baeta ter despertado de novo o assunto, que estava enterrado, para mim. É tempo de voltar a fechar a tampa do caixão e dar nova paz a este assunto.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Peças dos Painéis de S. Vicente (3)

continuação 

9) Camaroeiro
Reduzimos as possibilidades a dois eventos marcantes no reinado de D. João II:
  • (iii) 1484 - Assassínio de D. Diogo de Viseu, irmão da rainha, por D. João II;
  • (iv) 1491 - Morte de D. Afonso, e fica D. Jorge como candidato ao trono;
Na hipótese (iii) não fazia muito sentido um perdão sobre a morte de D. Diogo, se ele aparecesse como um mero personagem no quadro, sem destaque especial. 
A hipótese (iv) teria a favor a questão da "barba rapada", que se estende a todos os elementos de bastidores, sem excepção, tratam-se de 35 pessoas, havendo mesmo apenas 3 com barba pronunciada no conjunto de 60. Uma questão que se levantava: - era isso comum à época?... Ora, sabemos que ao contrário, a barba era normal, que D. João II usava barba, e aproveitamos para comparar retratos conhecidos de D. João II, com o constante dos painéis:
Os outros dois rostos divulgados não são muito semelhantes entre si, e se há algumas semelhanças são também encontradas na imagem dos painéis. Em ambos os casos D.João II tem barba, que usava normalmente, e só cortou pela ocasião da morte do filho.

Porém, aqui também se impõe a pergunta... se houvesse um talento como o de Nuno Gonçalves na corte, teria sido só aproveitado numa ocasião? A corte recorreria a outros pintores inferiores para os seus retratos? Nuno Gonçalves ficaria apenas com 4 ou 5 imagens de santos? 
Há até quem já o faça morto em 1471, esquecendo a datação anterior 1470-80 quando a sua morte era apontada para 1492... Ora, Gonçalves havia muitos e Nunos também. 
Seja quem for, mais nenhum pintor aprendera nada com ele, para melhores retratos reais?

Adiante. Passamos a D. Leonor, cujo símbolo adoptado, após a morte do filho foi o camaroeiro, simbolizando a rede em que Afonso lhe terá sido trazido, por pescadores. 
Há um painel, denominado "dos pescadores" e que tem uma rede... 

Só este pormenor seria razão mais que suficiente para a suspeita imediata, e por isso se houve alguma primeira teoria, creio que terá sido essa. Estou longe de pensar que esta tese de 1491-92 tivesse sido colocada aqui pela primeira vez... muito pelo contrário, terá sido provavelmente a primeira tese, se calhar dos Bordalo Pinheiro, que viram o quadro (1882). Um dos irmãos, Rafael, até se acabou por estabelecer (1884) no local de eleição de D. Leonor - as Caldas, e será uma farpa de Ramalho Ortigão (nascido nas Caldas da Rainha), que retomará o assunto dos painéis, entretanto "esquecidos", de novo. Uma coincidência, certamente...

Na altura de Bordalo Pinheiro não havia exames por Raios X, e parece agora que a rede não será visível a essa inspecção... talvez haja outras redes a serem inspeccionadas. Ora, conforme é bem observado em paineis.org, no exame radiográfico parece que se vêem pelo menos as bóias de cortiça, e portanto, entramos na "mitologia dos exames que dizem coisas". Os exames não "dizem nada", as pessoas é que falam e escrevem. Basta olhar para uma radiografia (paineis.org) e ver que a intensidade pode esbater contrastes, mal permitindo ver os contornos das pessoas nos bastidores. Assim, é natural que não apareça a rede!

Agora, se a radiografia mostrasse um ramo nas mãos de Pedro, aí sim, aí tínhamos espiga!
Tra la spica e la man qual muro e messo...  

Uma coisa é um olhar primevo, e outra coisa é o olhar educado... porque o olhar educado tende a seguir um caminho trilhado, e a procurar onde lhe é sugerido. Ainda que se afaste, já avançou muito no trilho. Só assim consigo explicar que a maioria dos estudiosos nem sequer refira a hipótese de os painéis serem posteriores a 1480. Refiro-me a estudiosos e não a conhecedores - os estudiosos não sabem e procuram saber, ao passo que os conhecedores, porque lhes foi dito, já sabem, e basicamente estudam os estudiosos. Os estudiosos não sabem que os outros sabem... e se quiserem mesmo saber, com alguma cerimónia, podem candidatar-se a "conhecedores".
Este apontamento é dirigido a curiosos e estudiosos, e críticas sérias são bem vindas. 

Adiante. Temos portanto uma rede, um camaroeiro, uma Rainha, Leonor... a data é 1491-92, confirmado pelas deduções anteriores. A rainha parecer-se-à com Leonor?
É dito que Leonor seria alourada, e os cabelos da rainha, ainda que apanhados, sugerem isso.
Quanto ao rosto, vejamos a comparação com um quadro conhecido:
As feições parecem-me razoavelmente semelhantes (à época dos painéis seria bem mais velha), e sobre a curva do "nariz torcido", onde pode levantar-se dúvida, nota-se também uma inclinação vincada no outro quadro. O pescoço nos painéis parece mais comprido. Mas há uma desproporção e uma técnica mais arcaica no quadro mais antigo. Só as mãos estão "melhor" que em Nuno Gonçalves (que não parece dar muita atenção ao desenho das mãos em todo o painel). Se os painéis fossem anteriores ao quadro da rainha (c. 1475), parece pois que Nuno Gonçalves e discípulos andariam ocupados a pintar santos...

Vejamos ainda o ornamento das vestes de Leonor, no quadro mais antigo. Esse será um "padrão da moda", no final do Séc. XV e também o vemos nos painéis. Depois há a questão da manga... é vermelha, tal como nos painéis, e cobre razoavelmente a mão.

Ainda sobre a moda no vestuário, fui reler um pouco, lembrando profundamente os confrades do Vinho do Porto. E falando em barretes, e chapelões, recordei a figura algo caricata de Afonso V, não pelo chapelão, que o tio é que ficou com ele, mas pelos seus sapatos bicudos. Era esse o outro ponto que tinha contra a tal possibilidade do quadro ser de 1445-50, pelo menos. Pelo menos, porque essa moda durou mais de um século, circa 1470 ainda encontramos quadros com esses sapatos, manifestamente já ausentes dos painéis.
Ambas as imagens parecem ter a proveniência de Georg von Ehingen,
que entra ao serviço de Afonso V c. 1460 (a imagem é suposta ser c. 1470 - ver)

É claro que poderíamos estar com uma antecipação de moda (parece que tudo pode mudar para justificar um quadro...), mas o jovem Afonso V cometeu a imprudência de usar outros sapatos, e não as botas, que só entram na moda no final do século XV, e que são usadas nos painéis.


10) A Rede
E quem são os personagens no Camaroeiro de Leonor, ou antes, "apanhadas na rede"?
Aqui começa a ser mais complicado... porque há várias "redes", mas só uma visível no quadro (com ajuda de exames alguns concluiriam que nem essa deveria ser vista...).
Bom, mas a rede visível engloba três personagens, a primeira personagem em destaque dificilmente a vejo como um homem, tudo indica que se tratará de uma "velha senhora", tem feições que sugerem isso. Ocupa um grande destaque em toda a composição. Poderia ser um "modelo indistinto"? Precisaria esse "pescador" de alguém, a seu lado, que parece "conspirar ao ouvido"? E quanto ao homem nos bastidores, que "passou por ser Salazar", quereria ele ver-se no meio daquela rede? Porquê?

A composição tem os painéis alinhados com a perspectiva dos azulejos, e por isso não há nenhuma troca de painéis (como também já foi sugerido). Em paineis.org faz-se ainda notar que a iluminação neste painel é diferente... e nessa boa observação não tinha reparado. Isso ajuda a teoria da "rede", os restantes estão iluminados pelo sol nascente, e os conspiradores pela luz do poente. Não é a mesma luz que os ilumina, e por isso os seus caminhos são outros, desviantes

Compreenda-se que estamos a entrar nos detalhes, e nada tem a ver com a datação... apenas se procura não deixar vazio o restante enquadramento, tentando dar-lhe um maior sentido global.
Poderíamos ser mais "politicamente correctos", e deixar os restantes personagens fora de  identificação. Estão identificados os principais personagens, a data, o motivo (promoção de D. Jorge a sucessor), e poderíamos deixar os pescadores no abstracto, falar numa penitência, nas preces dos frades, etc... Porém, o nosso único cometimento é com a consistência global, verdadeira, e não com uma educação condicionada.  


11) Os fundadores de Avis. 
Vejamos os 1º e 2º painéis, ditos dos "frades" e "pescadores".
No 2º painel, apesar da direcção da luz oposta, há uma sombra mal definida, no outro sentido, junto ao penitente prostrado no chão. 
Apesar de ter sombra (no painel até os santos têm), esse penitente em destaque estará morto pela "regra das mãos"... Ora, estando morto, isso dá uma grande indeterminação para o personagem, é preciso encontrar algum motivo que o coloque em tão grande destaque e em penitência, no painel da "rede".
Tratando-se da época de D. João II, é sabido que o seu maior problema conspirativo é com a Casa de Bragança, a quem fez executar o Duque Fernando, e também com Viseu, assassinando o Duque Diogo.

A origem da Casa de Bragança remonta à união da filha de Nun'Álvares com o filho primogénito de D. João I (porém em casamento anterior ao pai ser rei), ou seja, Afonso feito depois 1º Duque de Bragança. Portanto, poderia ser Afonso, mas num lugar de tão grande destaque, parece ser o próprio D. Nuno Álvares Pereira. Nun'Álvares que se dedicou no final da sua vida a uma reclusão monástica carmelita.

Comparemos os retratos, notando ao mesmo tempo que no 1º painel, em 1ª posição surge uma figura, também com as mãos juntas, cujas feições se podem assemelhar às de D. João I.

Quanto a Nun'Álvares, há uma coincidência fisionómica razoável, a começar pela sua calvíce e longas barbas. Em ambos os quadros o nariz é pronunciado, mais fino no retrato do que nos painéis (e por isso colocamos uma outra pequena imagem, que mostra que o nariz "não seria tão fino quanto isso").
Quanto a D. João I, apesar da imagem antiga não permitir grandes detalhes, há uma considerável semelhança, talvez à excepção do queixo, feito muito delicado na imagem histórica.

Se seguirmos o 1º painel, dos frades, vemos ainda um personagem de longas barbas, tal como D. Afonso V iria usar: 
Isso levou-nos a suspeitar que os "frades" representassem o seguimento da linha de D. João I, tendo pelo meio D. Duarte, e aqui D. Afonso V. Não temos nenhum comparativo com a imagem de D. Duarte (que já foi até visto com a imagem do Infante D. Henrique, numa certa ousadia interpretativa), temos apenas um pseudo-retrato formulado uns séculos depois, e a visita ao túmulo da Batalha não é muito mais eficaz - mas não se vislumbra grande barba:
A eventual imagem de D. Duarte nos painéis (que parece usar uma ligeira barba branca), parece adequar-se à escultura do túmulo (falta imagem melhor), e não tanto à da suposição posterior (creio que do Séc. XVI).
Esta suposição baseia-se mais na procura de coerência na composição, não afectaria muito o restante ser outro personagem.

Assim, este primeiro painel, teria como "frades" falecidos - a sucessão de Avis, anterior a D. João II. Ou seja, começando com D. João I, subindo para D. Duarte, próximo do seu filho D. Afonso V, pai de D. João II. Acima deles estão outros 3 personagens que já não pertencem à realeza... será complicado determinar, talvez os mestres das ordens, não sei, não me parece relevante para a compreensão do conjunto.


12) A pesca 
Passamos de novo ao 2º painel, dos pescadores.
Acima do penitente, que julgamos ser Nun'Álvares, está um grande espaço, parecendo faltar um personagem. A sua sucessão dá-se com D. Afonso de Bragança, que pensámos ter ido parar ao painel seguinte. Porquê?
Porque se não estivesse faltaria alguém do Ducado de Bragança. O pequeno D. Jorge seria já duque de Coimbra, a duquesa de Viseu está presente, e o primeiro duque, D. Henrique, também. Seria formalmente incorrecto deixar de fora o ducado de Bragança, nesse conjunto real. A solução encontrada poderá ter contribuído para a morte dos artistas (há dois... o pintor e o rei que certamente supervisiona).
Aceitando ser o velho Afonso de Bragança que sai do 2º painel para o 3º, vejamos onde ele é colocado... ao nível dos bastidores, acima do Infante D. Henrique. Tem algum destaque, mas é relegado para uma posição que afectaria a sua posição ao nível da nobreza. Especialmente porque no 4º painel, o rei vai chamar ao primeiro plano, semelhante ao real, os seus navegadores. Isto seria uma afronta velada, mas minimamente correcta na formalidade da composição. Por cima de D. Beatriz surgiria provavelmente um outro Bragança, que esconde as mãos... poderá não ter paz, pela execução, poderia ser Fernando, o neto de Afonso, executado por D. João II.

Estaria assim um par, D. Beatriz de Viseu e por cima D. Fernando II de Bragança, e outro par, D. Henrique de Viseu e por cima D. Afonso de Bragança... e teria significado.
Henrique e Afonso foram o primeiro par aliado de Viseu e Bragança derrotando D. Pedro (de Coimbra). Implicitamente, D. João II colocaria aqui Beatriz e Fernando como segundo par aliado de Viseu e Bragança, contra si, que se via como herdeiro do avô D. Pedro de Coimbra.
A confirmar-se esta "solução artística" no painel, iria bater forte, em particular na herança Bragança, sempre questionada pela sua ascendência nobre "meio bastarda".

Deveria ainda haver outra intenção - a sua inclusão ali procurava dar uma outra mensagem, porque D. Jorge também era considerado bastardo (... o rei não poderia admitir outra coisa, e não adianto mais).
Se o velho Bragança se considerava injustiçado, pelo casamento posterior do pai com D. Filipa de Lencastre, que o afastou do trono e afectava a sua nobreza, a questão da sucessão por D. Jorge envolvia conceitos semelhantes. Acresce que o próprio D. João I não seguia da linha directa, e era um bastardo legitimado pela Revolução de 1383-85, onde foi apoiado por Nun'Álvares (ele próprio não primogénito, batendo-se contra o irmão em Aljubarrota).
Estes personagens, pela sua importância, fariam ainda sentido no espaço seguinte a Nun'Álvares, mas seriam colocados no painel principal, para efeitos formais e procurando evidenciar a base moral de legitimação de D. Jorge.

A personagem seguinte acima de Nun'Álvares, tem essa ambiguidade de poder ser vista como um pescador, mas parece-me uma velha senhora, e pela "regra das mãos" estaria morta. Era muito mais fácil encontrar um candidato entre "homens mortos", facilmente colocaria ali D. Fernando II de Bragança. Mas, estando convencido que se tratava de uma mulher, não poderia ser a sua mulher Isabel de Viseu, que era viva, sendo natural aliada da mãe e da irmã contra a pretensão do executor do seu marido, obviamente apoiando o irmão D. Manuel e sendo contra D. Jorge.

Há assim uma ambiguidade, também de género, e permitiria vários candidatos, mas considerei a hipótese de ser uma evocação de D. Isabel de Barcelos, pelas várias ligações. Por um lado, era filha de Afonso e tia de Fernando II de Bragança, por outro lado, era mãe de D. Beatriz, e principalmente porque se retirou para Castela, onde viveu com a Rainha, sua filha, e com a neta, a futura rainha de Espanha, Isabel, a Católica. Quatro ligações a opositores de D. João II e à Casa de Coimbra.

A múltipla ligação atingia ainda vários problemas que induziram conflitos entre Portugal e Espanha. Do casamento da filha de Isabel de Barcelos com D. Juan II de Espanha, surge um problema de sucessão entre a neta D. Isabel e a sobrinha de Afonso V, D. Joana.
D. Joana, neta de D. Duarte,
a "Excelente Senhora" (ou a "Beltraneja").

A pedido do pai, Henrique IV de Castela, D. Afonso V tomará o partido da sua sobrinha Joana, e irá casar-se com ela - seria uma união ibérica com centro em Lisboa, o que não agradava certamente aos castelhanos, pelo mesmo motivo que o oposto não tinha agradado aos portugueses um século antes.

Os castelhanos duvidaram da paternidade chamando-lhe "Beltraneja", e viraram-se para Isabel, a neta de Isabel de Barcelos, que tinha casado com Fernando de Aragão. A Batalha de Toro é decisiva, e a derrota de Afonso V só é compensada pelo auxílio das forças do filho, João II.
Se D. Joana não está presente no quadro, não deixa de estar presente nos motivos do quadro. O seu sobrinho, D. João II, não deixará de considerar a também "madrasta" como "Excelente Senhora", sendo mais uma vítima dos processos cortesãos, de "selecção natural dos espécimes".

Sem Joana no caminho, forma-se a Espanha dos Reis Católicos, que entra em acordos de paz com Portugal de D. João II, através da mediação de D. Beatriz de Viseu, no Tratado de Alcáçovas. A mesma Beatriz, que era mãe da rainha D. Leonor, mas também a tia comum aos reis de Portugal e Espanha, promovendo um novo casamento, agora entre a sobrinha-neta e o neto... e com o neto morto, casaria de novo com o filho, D. Manuel.

Regressamos a D. Isabel de Barcelos, mãe de D. Beatriz e tia de D. Fernando II de Bragança.
Para D. João II, poderia ser natural ver naquela filha de Afonso de Bragança, uma representação de um problema de gerações: - o pai dela estava na causa da morte do seu avô, a neta na derrota do pai, o sobrinho na conspiração contra si, a tudo isto junta a morte recente do filho Afonso... Ou seja, quatro gerações apareciam como vítimas da hostilidade da Casa de Bragança, e da aliança com Viseu.

Falta falar do homem que está ao seu lado (de Isabel de Barcelos), parecendo-lhe segredar algo, e assim virado a ocidente... para efeitos do quadro não é muito importante, acho que não perdi tempo com isso. Está dentro da "rede"... a sua orientação pode já ter a ver com os planos de partilha das descobertas, que seriam oferecidos aos espanhóis através da personagem Colombo. Pode ser D. Álvaro de Bragança, ainda vivo, refugiado em Castela desde a morte do irmão Fernando. É próximo de Isabel, a Católica, que lhe dará posses em Espanha, regressará a Portugal logo após a morte de D. João II. Poderá segredar os planos colombófilos ocidentais à neta de Isabel de Barcelos, também Isabel, assim numa identificação intemporal.

O homem de bastidores, ainda dentro da "rede", poderá ser visto como um executor do "acidente" que vitimou o príncipe Afonso. Se alguém quis ver aí Salazar, dificilmente terá sido o próprio, a menos que ele estivesse convencido da versão "frades, pescadores... e Companhia". Nesse caso estaria talvez a ser vítima de uma piada cortesã, de piadas e boatos que se disseminam como doença, numa sociedade fragilizada pelos códigos e segredos da grande confraria lusitana. Outra possibilidade é que o sistema estivesse tão seguro de controlar educacionalmente a versão oficial, que até a incorporasse como teste...
De qualquer forma, esse "boato" acabou por divulgar ainda mais a existência dos painéis.
E, se nessa época se divulgou a imagem do Infante com uma sustentação sólida, não se usou mais nenhuma, as restantes ficaram como incógnitas. Ao contrário, hoje vemos divulgados rostos associando as caras dos painéis a figuras históricas, com base nas mais frágeis teorias. A próxima geração, como novo teste, terá que perceber adicionalmente que os rostos que lhes eram familiares, eram afinal meras suposições.

[continua]

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Peças dos Painéis de S. Vicente (2)

Este texto surge na sequência da interessante troca de comentários com Clemente Baeta, a propósito dos Painéis de S. Vicente, e segue também dos textos:

Quando escrevi a hipótese dos Painéis retratarem a questão da sucessão de D. Jorge após a morte de D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, considerei várias coisas, muitas das quais já nem me lembro. Em compensação, hoje tenho também mais informações. 
Há um site excelente, paineis.org que tem múltipla informação, e avança outras hipóteses. Longe de criticar quem questiona, interessaria que houvesse outros assuntos fundamentais questionados, e não sempre os enigmas "mais popularizados".
Porém, como é óbvio, tenho múltiplas razões para continuar a preferir a teoria de 1491-92, para a execução dos painéis. Se não tivesse, já teria avisado... 
Fica aqui uma síntese, procurando agora mencionar aspectos das outras teorias correntes.


1) Datação pelo quadro 
A datação habitual dos painéis era 1470-80. As análises de datação anteriores tinham sido inconclusivas, até que em 2001 leu-se o número 1445 numa bota. Foi então feita uma análise dendrocronológica às pranchas de suporte que terão revelado ser madeira colhida no Báltico entre 1442-52 (cf. Nuno Crato). 
Cientificamente, isso determinaria uma datação mínima (terminus post quem) e nada diz sobre a datação máxima (terminus ante quem). Por isso, pareceu-me natural fruto de entusiasmo ver pessoas que divulgam rigor esquecerem alguns detalhes, e apressarem-se numa conclusão de datação.
Essa data, como se lerá hoje na wikipedia, colocaria a pintura portuguesa na vanguarda máxima da pintura europeia, saindo do zero, e voltando ao zero... pois não se conhece mais nada de semelhante no Séc. XV português. 
Isso não é impossível, mas seria de um impressionante auto-didatismo.

Sobre a dendrocronologia. Como toda a ciência, os sistemas de datação assentam em hipóteses que não devem ser esquecidas. Um dos problemas é que os processos são calibrados aceitando mudanças "convenientes". Para dar um exemplo, imagine-se que um novo sistema de datação atribuía 1000 anos ao Parténon... ninguém iria duvidar da idade do Parténon, mas sim do sistema de datação! É assim que as coisas funcionam, por isso os sistemas de datação não são ciência pura, são ciência contaminada com convicções prévias.
No caso da dendrocronologia assume-se um crescimento regular dos anéis em anos bons, e pior em anos maus, devido ao clima, ainda afectado pelos ciclos de manchas solares (11 anos). É claro que isto esquece múltiplos factores, que têm a ver com o crescimento da árvore em particular, por exemplo, doenças, insectos, parasitas, etc. 
Assumindo que se tem um registo do clima em todos os anos, pode reduzir-se a procura num intervalo, e ver quando o registo de anéis corresponde ao registo do clima. Obtida a concordância, e como normalmente os anéis crescem um por ano, pode ter-se uma data precisa.
No entanto, isto funciona se: (i) o registo de clima for fiável ano-a-ano, (ii) o número de anéis for adequado, (iii) haver uma outra datação que reduza as possibilidades. 
Os problemas em (i) podem ser reduzidos por calibração (com datas assumidas), e os problemas em (iii) podem ser reduzidos por informação que reduza o intervalo de possibilidades.
Resta (ii), o número de anéis - o que pode ser complicado em tábuas. As tábuas são cortadas na vertical, habitualmente nas partes mais exteriores - ficam poucos anéis, e é difícil "adivinhar" quantos anéis há até atingir o interior (ou o exterior).
Por exemplo, pegando na imagem do link que dei acima, identifico o que seria o perfil de um típica tábua extraída do interior (rectângulo vermelho), e que apenas conteria informação de alguns anéis - o resto tem um pouco de ciência e um pouco de fé... adivinhar partindo da imagem a negro:
  

Ainda assim, admitindo que as tábuas tinham nós suficientes para uma datação precisa, surge o terminus ante quem, que é como quem diz, para um quadro que é suposto durar séculos, ninguém vai pintar sobre madeira fresca... convém dar alguns anos para a maturação da madeira. Seria natural que as madeiras mais antigas se destinassem a quadros mais importantes.

Portanto, a dendrocronologia, que ainda tem muito para provar a si própria, não prova nenhuma datação do quadro, conforme foi pretendido - no máximo arrisca uma data para o derrube das madeiras.


2) Datação pela arte
A pintura de Nuno Gonçalves é importante, independentemente de se datarem mais ou menos anos, e ganhará maior importância admitindo o que representa...
É curioso que a madeira das pranchas tenha vindo do Báltico, porque era também essa a origem dos quadros dos primeiros pintores holandeses. E nesse aspecto convém referir os Van Eyck, pois o "Retábulo do Cordeiro Místico" (1432) tem um Adão e uma Eva com um realismo surpreendente para a data de execução. Este caso de "antecipação" pode favorecer uma tese de 1445, mas a grande diferença, é que no caso da pintura holandesa não é caso único, não surge do zero, nem volta ao zero... 
Noutras paragens, temos outros pintores de vanguarda na técnica, por exemplo, um Konrad Witz (1444) ou um Jean Fouquet (1450), mas é habitual considerar que a maior influência europeia acabou por surgir de Itália. 
Ora é da escola de Squarcione, que temos o notável Andrea Mantegna, que tem um admirável S. Sebastião (c. 1455-60), que aqui comparamos com o "S. Vicente" atribuído a Nuno Gonçalves.
 
Andrea Mantegna (S. Sebastião, 1455-60); Nuno Gonçalves (S. Vicente)

Há várias semelhanças e várias diferenças, mas são as semelhanças que me colocam a hipótese de relação entre as duas composições (p.ex. posição na coluna e chão geométrico). O quadro de Nuno Gonçalves não tem paisagem, nem uma "ilusão"(?!) de Mantegna, com a nuvem:
no S. Sebastião de Mantegna

Mantegna irá fazer outros S. Sebastião (ver) com características diferentes (e se há mais "ilusões" escondidas, não as encontrei mencionadas). Não é de excluir que o atelier de Mantegna tenha influenciado Nuno Gonçalves. No reinado de D. João II havia uma ligação "instrutiva" com Veneza, com Florença e os Medici, conforme vemos na correspondência de D. João II, e essa era uma zona de influência de Mantegna.

Há ainda uma datação pelo vestuário. Não sei quase nada sobre o assunto, mas li nessa altura um artigo de Dagoberto Markl que mencionava os detalhes, praticamente arrasando uma datação de 1445 ou similar.


3) Datação pelos personagens
Vamos aceitar que no 3º painel, dito do Infante, está uma família real, ou seja, Rei, Rainha, e um jovem Príncipe. 

As possibilidades para o jovem príncipe, admitindo uma idade entre 8 e 12 anos, reduzem a datação:
 (i) Afonso V (n. 1432) - datação: 1440-44;
(ii) João II (n. 1455) - datação: 1463-67;
(iii) Afonso (n. 1475) - que morre em Santarém, datação: 1483-87;
incluo uma quarta hipótese, porque D. Jorge é colocado como pretendente ao trono após 13/7/1491:
(iv) D. Jorge (n.1481) - filho de D. João II, datação: 1491-93.

Repare-se que só este aspecto exclui a hipótese tradicional 1470-80.

Falta agora juntar o par real, ao príncipe. As hipóteses de "rei" e "rainha" seriam:

(i) -- D. Pedro (n. 1392), regente, ou uma invocação de D. Duarte (já morto, 1438).
----- D. Leonor de Aragão (viúva exilada, n. 1402).

(ii)-- D. Afonso V (n. 1432), com 23 anos em 1465.
----- D. Isabel de Coimbra (n. 1432, mas morre em 1455)

(iii) - D. João II (n. 1455), com 30 anos em 1485.
------ D. Leonor (n. 1458), com 27 anos em 1485.

(iv) - D. João II (n. 1455), com 36 em 1491.
------ D. Leonor de Viseu (n. 1458), com 33 anos em 1491.

Aqui há um problema de estarem todos vivos à data de execução. 
Em caso afirmativo, exclui-se a hipótese (ii), e a (i) também fica complicada, dado que D. Duarte está morto, e caso fosse D. Pedro, teria cerca de 50 anos. Não é muito verosímil também a inclusão de D. Leonor de Aragão entre 1440-45, pois estava excluída do reino. Excluímos a hipótese de ser a mulher de D. Pedro, pois passaria por provocação régia, face à sucessão do sobrinho, Afonso V. 
Isabel de Coimbra e Afonso V em 1445 tinham 13 anos, por isso associá-los ao par real, é impensável (em 1455 já seria possível, mas o príncipe, D. João II nasce nesse ano e a mãe morre).

Os rostos do rei e rainha são de adultos, podendo estar na casa dos 20 ou 30 anos, dificilmente muito  mais que 40.
Ou seja, admitindo que se trata de uma família real, e que estão todos vivos, as únicas possibilidades restantes são (iii) e (iv) - ou seja, D. Leonor de Viseu e D. João II. 
Relativamente à fisionomia, talvez se ache mais natural a hipótese (iii), colocando os reis na casa dos 30 anos, mas nada impede as idades da possibilidade (iv).


4) Conclusões da datação dos personagens
Por uma simples inspecção dos personagens, admitindo que se trata de uma família real viva, ficamos reduzidos aos reis D. João II e D. Leonor.
É claro que há outras possibilidades - poderia nem tratar-se de uma família real, poderia ser outra nobreza, mas isso é inverosímil, dado todo o contexto envolvente. Os dois elementos principais poderiam não ser rei e rainha, haverá muitas possibilidades, mas também não convincentes.

Também poderiam não estar todos vivos, e isso é uma possibilidade que iremos considerar, mas não para estes elementos em destaque.
É evidente que tratando-se do reinado de D. João II, o Infante D. Henrique já estaria morto.

Um ponto que me parece fulcral é não forçar o global aos detalhes. Os detalhes não podem condicionar o global a algo inverosímil, podem é ajudar a encontrar o contexto correcto. Mas, no final, todos os detalhes devem ser colocados no seu lugar, ou seja, devem aparecer como detalhes, e não como peças principais. 
Não faz sentido colocar a obra como um enigma do pintor. Ainda que o pintor possa ter colocado enigmas no quadro, o quadro fez sentido à época para quem o viu, e é esse aspecto global que interessa encontrar primeiro. Só depois disso é que faz sentido procurar mensagens que o pintor quis deixar implícitas.

Quanto à datação artística, a menos que queiramos admitir um pioneirismo autodidacta de Nuno Gonçalves, tudo aponta para uma influência externa em Portugal. Poderia ter vindo de Konrad Witz, por razão das ligações de Afonso V com a Dinamarca, por volta de 1470, também poderia ter vindo através de Jean Fouquet, ou da Escola de Avignon, pela Borgonha, da Duquesa D. Isabel (filha de D. João I).
No entanto, encontrámos mais semelhanças com Andrea Mantegna, conforme já referimos. Isso por si só não é determinante, mas justifica a possibilidade de influência italiana, razoavelmente posterior a 1460. Não exclui a hipótese (ii) de 1465, mas faltaria justificar tão rápida aquisição de competências.
As semelhanças com Mantegna e as relações de D. João II com Florença parecem apontar para as datas (iii) ou (iv).
Para além disso, vemos que uma datação anterior a 1480, deixaria o seguimento da pintura portuguesa com um enorme espaço em branco. Aí a datação de 1491-93 é mais convincente no sentido da ligação a Grão Vasco, por exemplo.

Sobre a datação dendocronológica, ainda que as tábuas sejam mais antigas, permitindo uma datação mínima de 1442-1452, isso não condiciona a datação máxima, havendo até razões para considerar tábuas mais antigas, que já tivessem resistido a uma prova do tempo.


5) Mortos/Vivos
Quando se coloca uma datação à volta de 1465, ou posterior, temos o problema de estarem mortos o Infante D. Henrique e a Rainha D. Isabel de Coimbra.
Há alguma característica comum que permita identificar que a Rainha e o Infante estão mortos?
Não seria estranho, diria mesmo profano, misturar vivos com mortos, sem nenhum traço distintivo?
À época, creio que sim, e não conheço nenhum exemplo contrário, mesmo nos séculos seguintes.

Por isso, só escrevi a hipótese quando encontrei um factor comum que poderia distinguir mortos de vivos, à data de execução do quadro. 
Esse factor comum seriam as mãos unidas, como encontramos frequentemente nos túmulos antigos.
Poderá pensar-se que uns estão a rezar e outros não, mas não há razão aparente para só alguns estarem em sinal de devoção. 
Há sim uma forte razão para distinguir os que já pereceram, através da evidência das mãos unidas.

Seguindo as razões acima mencionadas, torna-se praticamente hipótese única ser um quadro do reinado de D. João II. 
Poderia ter D. Afonso ou D. Jorge como príncipes, pensados futuros reis.
Iremos abordar essa questão depois.
Primeiro vamos ver se é possível dar sentido aos restantes personagens do quadro, neste contexto.


6) Infante D. Henrique 
A identificação do Infante D. Henrique é erradamente tida como óbvia, porque é a única familiar a todos nós. Porém, se tivessem sido divulgado outras caras como sendo o Rei X, a Rainha Y, etc... então todos os rostos seriam familiares e ninguém colocaria sequer dúvidas sobre o quadro.
Isto é instrutivo para perceber como funcionamos por via da educação... aceitamos coisas como óbvias, sem pensar porquê.

Ora, aquela imagem do Infante D. Henrique foi popularizada durante a ditadura de Salazar, que praticamente a colocou "imortalmente" no  Padrão dos Descobrimentos, na liderança da epopeia.
Por isso, há conotações políticas actuais, e não completa objectividade, em assumir que aquela se trata da efectiva imagem do Infante D. Henrique.
Isso não foi feito com outras imagens dos Painéis, porque se tornara evidente que aquele era o Infante, pela sua semelhança com a imagem existente na Crónica da Guiné de Zurara. Colocamos aqui uma breve imagem que mostra a coincidência de rostos:


Por isso, a utilização da imagem do Infante D. Henrique não foi nenhuma escolha fortuita, foi baseada numa exacta coincidência com uma imagem de outro documento, que continha ainda a sua divisa "talant de bien faire".
Acontece que se duvidou recentemente da autenticidade da própria Crónica de Zurara, porque há uma notória mudança de aspecto entre a primeira e a segunda página.
Curiosamente, parece que não se duvida que o texto tenha sido alterado - obviamente o mais natural (e sabemos bem porquê), mas sim que a imagem fosse outra.

Ora, uma alteração da imagem parece-me algo de arrojada conspiração, e isto dito por mim, parecerá até estranho. Porém, digo isto porque não encontro motivo para substituição de imagens, a menos que fosse alguém que quisesse recolocar D. Pedro no seu devido lugar histórico. Aí tratar-se-ia do Infante D. Pedro e não de D. Henrique... só encontro esse motivo, e posso aceitá-lo. Outro, parece-me difícil.

Há porém uma série de argumentos, que estão resumidos aqui em paineis.org.
Destaco a questão da face esculpida no túmulo da Batalha, porque me parece o mais pertinente.

(i ) Há um rosto que não corresponde ao padrão da escultura da época, tem formas algo simplificadas, que não se ajustam ao outro detalhe. É perfeitamente natural que uma escultura exposta tenha sido danificada quase irremediavelmente, por algum partidário de D. Pedro, e certamente não faltariam candidatos ao trabalho, logo à época, e especialmente no reinado de D. João II.
No entanto, a escultura mantém traços que a ligam ao quadro em Zurara. O corte de cabelo e o lobo da orelha são practicamente iguais. O olhar também poderia corresponder sem dificuldade, é a parte inferior do rosto que tem maior mudança, graças a traços demasiado vincados, que não se coadunam com a malha fina que existe na coroa ornamental da cabeça. Aliás a parte inferior da cara parece ajustar-se de facto à de D. Pedro, talvez por deformação propositada, eliminando o típico bigode.
Por isso, se se considerar uma imagem errada em Zurara, num livro de guarda pessoal, não se pode deixar de considerar uma deformação quase evidente num busto exposto. Acresce que as coincidências notáveis na posição do corte de cabelo, evidenciam tratar-se de D. Henrique. A confusão com D. Pedro só aumenta pela coroa ornamental da cabeça, que é semelhante à que se vê no "retrato" mais jovem de D. Pedro. Talvez o trabalho de escopro tenha sido ao ponto de destruir o chapelão...

(ii) Há uma questão relativa à cor do cabelo, que me parece secundária, e resulta de uma nova proposta de transcrição na leitura do manuscrito de Zurara. Parece-me que pelo menos ambas as interpretações (a de João de Barros, e a nova) são possíveis, e João de Barros teria maior proximidade histórica, e outras fontes. 

(iii) Há depois a questão de uma eventual alteração da divisa com o moto 
"talAnt de bien fAi're".
O problema são os dois A maiúsculos... só que onde é vista uma adulteração, pode ver-se outro sentido. Ou seja, os A maiúsculos deveriam passar para o início das palavras, ficando
Atlant de bien Afri'e,
que é como quem diz "América por bem África"... juntando o moto de D. João I (por bem), e remetendo à questão do paralelismo América-África, notado também pela duquesa Medina-Sidonia.
O "fere" ao invés de "faire" não tinha o "i" conveniente, nem ao "talant" convinha o "e", haveria mais o empenho do talento nos talentos (moeda)... 

Para além disso, se é que interessa alguma coisa, poderia ainda ficar "Atlantide", e o rabisco no d pode não ser bem um rabisco, e mais um mini-mapa com a península da Florida... mas isso são conjecturas.
Como diria Frei Luís de Sousa, tem duas pirâmides dos reis do Egipto... sim, mas tinha uma em cada hemisfério, como se já soubesse que havia outras na América, ou pior, como se já preconizasse uma divisão dos hemisférios pelo meridiano de Tordesilhas. E assim, quem teve que "coser esse barrete", de "duas metades", foi o seu sucessor de Viseu, D. Manuel, mas esse é outro personagem.

(iv) A questão da simetria da cara nos painéis e na crónica... pode até ter uma explicação, mas não creio que seja vendo o quadro como uma "charada".  É uma oposição política. Na crónica de Zurara, o Infante está virado para Oriente, como sempre esteve, e é D. João II, na tentativa de legitimação de D. Jorge, que irá virá-lo para onde lhe convém...

Sobre o Infante D. Henrique acrescento a sua saída (expulsão) da Ordem da Jarreteira, talvez tenha preferido a Ordem do Tosão de Ouro, adoptado o chapelão do borgonhês do "confrade" Filipe, por bem, o Bom, seu cunhado. A dinastia podia omitir o passado bulhão, e a Ida, com os novos talentos, passaria a afrancesar o talento com um sangue afonsinho borgonhês, carimbado oficialmente.


7) Infante D. Pedro
Sobre o Infante D. Pedro, começo com esta descrição de Camões 7§77

(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.

78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.


A "grega usança" tomo-a como referência às vestes de D. Pedro, nem sei se alguma vez houve outro candidato para esta descrição de Camões. A imagem do jovem Pedro lembra-me os Evzones gregos.
Vemos nos panéis a fivela do cinto da Jarreteira, desapertada, e talvez a blusa evidencie uma "grega usança"... o ramo já não tinha, e se tinha, foi ocultado por uma espada. Essa espada, mal posicionada entre as mãos, e sem continuação notória do gume/baínha, parece ser uma inserção posterior (seria importante ter uma imagem radiográfica desta parte).

Já assinalei possíveis confusões entre as imagens de D. Pedro e do busto de D. Henrique no túmulo da Batalha, que coloco nesta imagem:
A semelhança mais importante é o ornamento da coroa (assinalo as folhas semelhantes com quadrados vermelhos).
Há ainda alguma semelhança na parte inferior do rosto, identificada em paineis.org. Como já referi, pode ter-se tratado de uma adulteração do busto inicial. O Mosteiro da Batalha, longe de estar imune a alterações, sofreu consideráveis mudanças. Relembro, por exemplo, a parte hoje vazia, e atribuída ao "soldado desconhecido". Faz falta uma outra, atribuída aos "navegadores e exploradores desconhecidos".

D. Pedro, estando já morto, cumpre o critério das mãos juntas, tal como D. Henrique, faltará só o ramo nas mãos, que nos parece ter sido substituído pela parte superior de uma espada.


8) D. Beatriz de Viseu e D. Manuel
Uma outra figura importante nos painéis é a da velha senhora, por cima da Rainha, dando uma possível ideia de parentesco, mas não só. As duas mulheres têm um lugar de destaque no conjunto.
D. Beatriz de Viseu, é mãe da Rainha D. Leonor, e é uma peça central na época.
Substitui-se quase ao Papa, como mediadora no Tratado de Alcáçovas, entre D. João II e Isabel de Castela, mantendo os filhos de ambos como reféns, nas Terciarias de Moura.
É portuguesa, mas aparece como "parte terceira", numa questão entre os seus sobrinhos, mas também entre Portugal e Espanha.
O seu filho é D. Manuel, e sucederá a D. João II, que preferia D. Jorge, seu filho "bastardo".

Há semelhanças físicas face a um outro retrato de D. Beatriz, onde aparece mais nova, mas com trajo religioso algo similar.
A figura retratada é religiosa, vê-se o terço, mas nos painéis não está a rezar. No outro quadro, D. Beatriz está a rezar, com as mãos juntas. Nos painéis não pode ter as mãos juntas, porque está viva à época. Nascida em 1430, teria 55 anos na hipótese (iii) de 1485, e 61 anos na hipótese (iv) de 1491. Uma idade próxima dos 60 anos é consistente com a fisionomia do seu rosto.

No outro painel, em posição semelhante, à de D. Beatriz, em oposição ao "príncipe",  aparece outro jovem, com o "barrete cosido" que identificámos antes com D. Diogo. Faço agora uma comparação com D. Manuel, com uns anos e uns quilos de diferença:
O contorno, da sobrancelha ao nariz, é muito semelhante. Nascido em 1469 teria 16 anos em 1485, e 22 anos em 1491.
Porém, há um detalhe, que me obrigou a afastar a hipótese de ser D. Manuel - o jovem parece ter as mãos juntas (só se vê uma mão), e assim, pela regra, estaria morto... Poderia por isso ser o irmão, D. Diogo, assassinado pelo rei em 1484.

A cerimónia em questão, c. 1485, seria assim uma reabilitação de D. João II, prostrado no chão, pedindo perdão à Rainha, sua irmã, e à mãe, D. Beatriz, pelo assassinato do filho.
O quadro seria encomendado para esse efeito...

Essa hipótese de 1485 estava para mim quase como definitiva, pela sua razoabilidade, até reparar num outro detalhe, pouco tempo antes de escrever o texto:
-  todos os personagens tinham a barba aparada, excepto os que tinham as mãos juntas.
Ou seja, os vivos tinham a barba rapada, e isso correspondia a um acontecimento preciso - a morte de D. Afonso, na queda de cavalo em Santarém.
O rei D. João II rapou a barba, e todos fizeram o mesmo, segundo Garcia de Resende.

Poderia haver uma excepção a essa regra, no 5º painel, que presumi ser o Infante Santo, D. Fernando. No entanto, na posição do personagem, a perspectiva não tornaria visíveis as suas mãos. Portanto, não havia uma quebra efectiva de regra, e todo o enquadramento faria sentido.

Faltava recolocar D. Manuel. Uma outra figura no 5º painel tinha algumas semelhanças com outro retrato de D. Manuel, e na altura considerei a hipótese de estar ali representado. No entanto, dadas as semelhanças com este retrato, é possível que estivesse ainda retratado na figura do Duque de Viseu, como duas partes do mesmo projecto.

[continua]