domingo, 23 de agosto de 2015

Pela mão de Sebastião (3)

Conforme referi no texto anterior, transcrevo a cópia da carta escrita por D. Sebastião a João de Mendonça, em 1576, onde explica claramente a sua preocupação com a presença turca no Reino de Fez (Marrocos), e o que essa ameaça poderia significar primeiro para as fortalezas portuguesas, e depois, através de Ceuta, como porta de entrada turca na Península Ibérica, considerando ainda que em Portugal e Espanha residia (... à época) "a maior e a melhor" potência da Cristandade.

Claro que mesmo tudo isto não justificaria a deslocação pessoal do Rei à "mouraria", e nota-se aqui a junção de mais um pretexto de cavaleiro para encontrar a batalha. Enquanto do lado do seu tio Filipe II, vemos os pretextos de diplomata para a evitar.
No entanto, essa tinha sido a tradição da dinastia de Avis, começada em Ceuta. 

No romance do vencedores, não houve censura à aventura de Ceuta, do Rei D. João I, levando os seus três filhos primogénitos. Afinal, foi vitoriosa.
Mesmo terminando mal o episódio de Tanger, com a morte em cativeiro do Infante D. Fernando, a decisão do Infante D. Henrique, de trocar o seu lugar de prisioneiro com o seu irmão, não manchou a sua imagem. Para escusar de si a condenação fraterna, o irmão passou a mártir da fé, a Infante Santo. Afinal, Henrique estava do lado vencedor do romance histórico. 
Esse romance para os seus fins não olha a meios e esquece os princípios. 
Da mesma forma, Afonso V nas suas aventuras africanas, acompanhando-se nelas do único príncipe sucessor, D. João II, não vemos ninguém criticar o perigo de sucessão. Afonso V foi vencedor.
Com D. Manuel já foi diferente e ninguém viu o "César Manuel" em nenhuma batalha. Em seu nome teve Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, etc. Igual atitude prudente tomou D. João III, que aliás perdeu algumas das praças marroquinas, como seja a emblemática Arzila.

Por isso, D. Sebastião, indo pessoalmente à Jornada de África, sem cuidar dos sucessores, estava a terminar a aventura africana de forma semelhante como D. João I tinha feito, e especialmente D. Afonso V. Não igualou o Infante D. Henrique na expedição a Tanger, que se salvou condenando o irmão. Poderá ter sido esse "espírito vitorioso", de troca de vencidos por vencedores, que determinou quem contou a história. Ficar mal contada... foi um detalhe que se resolveu depois, e fora disso ficaram-nos as Larachas (cidade), os Loucos (rio), e os Malucos (Mulei).

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Cópia da carta original d'el Rey D. Sebastião 
a João de Mendonça sobre a Jornada de África.

João de Mendonça amigo.
Por cartas de D. Duarte de Menezes, meu capitão em Tanger soube como Muley Moluc tio do Xarife entrara em Fez e com 8 ou 9 mil turcos (que de Argel trouxera consigo por ordem e mandado turco), e com muitos mouros que com ele se juntaram, desbarataram o Xarife, o qual se retirara a Marrocos. E Muley Moluc fora pacificamente recebido por Rey e Senhor de Fez.
E por estas novas serem da qualidade e importância que vedes e podeis considerar, me pareceu fazer-vos-las logo a saber. Confiando de vós e de vossa prudência, fareis nelas aqueles discursos que convém, assim para o que eu devo acerca disto ao presente mandar fazer, como já me prevenir, e ordenar, para o que ao diante pode suceder. E que é razão e sigo que se cuide, e espere de inimigos tão vizinhos aos meus lugares, e tão poderosos e de tanta indústria, e experiência nas coisas de guerra, como são os Turcos, mormente considerando da vinda deles a Fez. Não é somente para dar a posse daquele Reino ao tio do Xarife, mas principalmente com o fundamento de o fazerem tributário e vassalo do Turco, e o Turco se fazer Senhor de toda África, e de todos os portos de mar dela, tendo em cada uma delas muitas galés que lhes será fácil de pôr em efeito. Assim, pela natureza da mesma terra, como por seu grande poder, que quando assim acontecesse, o que Deus não permita, visto é quantos males sem remédio 

poderiam recrescer a toda espanha, que da Cristandade se pode dizer que é hoje a melhor e maior parte, e com este intento queria que não somente cuidareis nesta matéria e a discorrereis para me nela dardes parecer e conselho no que farei e devo fazer, nas novas e acidentes presentes, mas ainda naquele que em tão propícia potência estarão de poder ao diante acontecer. E também quero que saibais o que agora ordenei de logo, que é mandar prosseguir a fortificação naqueles meus lugares, e provê-los de mantimentos e munições, e reforçar, e apressar minhas armadas, e aperceber gente em algumas comarcas do Reino.
Mas tudo isto não descansa, nem deve tirar, nem aliviar este cuidado, que obriga a começar a aperceber de logo para tudo o que pode suceder. E eu espero na misericórdia de Nº Srº, que receberemos dele, quando assim de nossa parte nos dispusermos, tamanhas e tão grande vitórias, que receba de nós os serviços, que lhe eu muito desejo fazer, não somente na defesa de sua fé, mas também da ampliação dela. E muito vos encomendo que me respondais logo a esta carta, e por certo tenho que será tal a resposta como de vós espero e confio, e do mais que suceder terei lembrança de vos avisar. 

Escrita em Setuval, a 24 de Abril de 1576
Rey

sábado, 22 de agosto de 2015

Pela mão de Sebastião (2)

Se Ceuta foi Seta, ou lança, de entrada em África, a Laracha foi "Tiro de saída".

Tendo visto a compilação dos manuscritos sobre D. Sebastião, que indiquei antes, prossigo com algumas transcrições interessantes, aí encontradas. Embora agora não sejam "Pela mão de Sebastião", seguem o espírito.

De diversos textos que fui escrevendo sobre D. Sebastião, o que me parece mais completo será o Peça por Peça, ainda que não se inclua aí larachas ou bulas de pretendentes, mas o caso do Maluco, depois escrito Moluco, está presente desde o início. E essa brincadeira de nomes já teve o seu preço.

Bom, e há sempre "coisas estranhas" a juntar ao rol.
Encontram-se duas relações da batalha, escritas quase uma em cima da outra, e de certa forma pretendendo a relação marginal ser um complemento à principal.

Interessa-me aqui a parte final do relato principal:
Neste tempo vendo El Rey que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.
relato que assim termina, apresentando-se apenas depois a disposição do exército de D. Sebastião:

Disposição do exército de D. Sebastião, na Batalha de Alcácer Quibir.
(nota: "SV mouros" - podem ser 5 mil ou 8 mil mouros)
A frente de batalha é para a direita, e a disposição é explicada no relato.
Nota: O relato não menciona as carruagens de religiosos, mas menciona os "bisonhos" que não seriam gente de combate. O desenho é feito por quem transcreve, e certamente a logística própria do tempo implicaria carruagens e religiosos... que certamente aumentariam a confusão. 
Tudescos é outro nome para alemães, e os Aventureiros eram soldados experimentados em batalhas no Oriente.

Ora, a questão é - por que razão o relato do "cativo" acaba assim:
"... a batalha terminou sem se declarar a vitória"?

O outro relato marginal também não fala de nenhuma "derrota" ou vitória alheia... e apenas termina com a notícia da morte do Maluco.

Transcrevo os documentos integralmente. É claro que dada a caligrafia e ortografia da época podem ocorrer algumas falhas, mas não me parece que sejam muitas, ou muito significativas. É claro que isto não deveria ser feito por mim, mas à falta de outros... é quem fica para o fazer.

Dificilmente se encontrará melhor relato "imparcial" do que sucedeu... do que não sucedeu, isso temos variados ou avariados, uns mais pintados que outros.
É claro que o relato não explica o que se passou depois da batalha terminar sem vitória para nenhum lado. Nem explica como o "cativo que fala" ficou afinal cativo... ou como tanta gente ficou cativa, e depois regressou, pagando bom preço pelo seu retorno. Explica os mortos, mas não os vivos.

Percebe-se sim que Maluco esperava o confronto num ponto estratégico, na travessia do Rio Loucos que iria dar à Laracha. Pior, nota-se que os portugueses ignoravam o poder de artilharia de Maluco, e que sendo isso normalmente o factor decisivo para a vitória das tropas europeias, foi ali invertido. Maluco tinha o apoio directo dos Turcos, e essa foi a única razão para intervenção de D. Sebastião em África.
Trarei outra carta que explica isso "pela sua mão".
Quis assim parar a ameaça de invasão turca que avançara já por Argel, Tunis e Tripoli, faltando só apoderar-se dos reinos de Marrocos, e consequentemente das lanças nacionais em África, terminando em Ceuta.
Daí prosseguiria o Grão Turco com a ameaça de invasão ibérica, reeditando a invasão de 711. Para isso contava com todos os Andaluzes desterrados em África, prontos para regressar e refazer o reino ibérico de Granada dos seus avós, perdido então há menos de cem anos.
Portanto, toda a intervenção de D. Sebastião naquele momento tem um nexo, tem o nexo de querer evitar que hoje falássemos árabe. Tanto mais que, se Marrocos acabou por não sofrer invasão turca, o deveu muito à Batalha de Alcácer Quibir. Do outro lado da Europa, os turcos já tinham cercado Viena, e portanto estes eram os dois focos de pressão na expansão turca em direcção à Europa... conforme se pode ver pelo mapa:

Entender que o projecto de D. Sebastião era "maluco", foi pintura posterior, porque não havia apenas o acordo nacional aprovado em Cortes, havia o apoio de tropas germânicas, que sentiam a ameaça turca, a descoberto pelo lado de Viena. Quanto aos espanhóis e italianos, comparativamente menos, tinham o mesmo problema. A vitória de Lepanto só "aparara a barba ao Paxá"...
A única coisa de estranhar seria mesmo a falta de empenho de Filipe II, talvez lembrado pelo pai Carlos V, que em Tunis tinha apanhado com tiros de canhão franceses pelo lado turco.

Há um número de "80 mil cavaleiros" que me parece claro exagero ou simples erro de transcrição, mas é claro que a expedição em terreno hostil tinha tudo para correr mal, não fosse a experiência portuguesa nas praças marroquinas. Por isso a escolha de D. Duarte de Menezes, de Tanger, para liderar o campo... mas conforme é descrito, o campo esteve tão desorganizado que de "Mestre de Campo" só teria o nome. Esse mesmo sobreviveria à batalha e seria depois Vice-Rei da Índia, nomeado por Filipe II.

Segue o texto...
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Relação da Batalha de Alcácer 
que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso


Relação da Batalha de Alcácer que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso.
E em nota marginal "Relação de Simão da Cunha" (pdf - pág. 144)
Novas da guerra, nem de nossas desventuras não tenho por que me "entremeter" nisso, porque creio que V. aí terá lá sabido melhor todos os sucessos de cá. O que direi só é que a gente de infantaria que El Rey trazia seriam até 16 mil, destes seriam até 10 mil piqueiros pelos quais se pode dizer que morreram mártires, dos 6 mil arcabunzeiros, os 3 mil eram bisonhos, só assim 3 mil arcabunzeiros souberam pelejar. Da gente a cavalo seriam até 1600, dos quais poderiam ficar limpos para pelejar até 900.

Esta gente de cavalo repartiu El Rey segunda-feira que foi a 4 de Agosto, que foi o dia da batalha, de 78. Ao Duque de Aveiro deu 300 de cavalo, e lhe deu a mão direita da batalha, El Rey se pôs da esquerda, por ficar encontrado com o inimigo, que vinha da parte direita. Deu a D. Duarte de Menezes, que trazia nome de Mestre do Campo, os cavaleiros de Tanger, que seriam 300, e o mandou à mão direita na dianteira do Duque de Aveiro. 
O Xarife [aliado] se pôs com obra de 250 lanças suas, muito boa gente, à mão direita do Duque de Aveiro, afastado dos Nossos, e chegado aos inimigos com obra de 200 arcabunzeiros, gente de guerra, porque pelejaram muito valorosamente.
Os Aventureiros, que seriam 2300, deu a Cristovão de Távora, que ia ora vanguarda, por lhe parecer com boas disposições, e armas lustrosas bastavam ao inimigo. Da mão direita estavam os Tudescos, da esquerda os espanhóis e italianos. A nossa artilharia plantaram diante no meio da Vanguarda, diante dos arcabunzeiros. Detrás dos espanhóis puseram no corpo da batalha o Terço de 

Vasco da Silveira, da mão direita, da mão esquerda o de Lopo de Sequeira, e na retaguarda da mão direita estava o Terço de Francisco de Távora, e na esquerda o de Miguel de Noronha. Na boca desta retaguarda estavam dois esquadrões de mosqueteiros para não nos entrar o inimigo. Tinhamos por uma parte e outra as Carretas, e quatro ou cinco arcabunzeiros em cada uma.
Ao domingo nos alojámos meia légua donde demos a batalha, tivemos este dia escaramuça com os Mouros, e se no domingo não pegaram connosco para dar batalha, foi porque nos tinham certos, e sabiam que à segunda-feira, havíamos de ir buscar o passo que era o Rio, que estava perto de Alcácer, onde estava o Maluco com sua artilharia de campo prantada e todo entrincheirado, ali tinha toda a força da batalha, e como sabia que forçado havíamos de demandar este passo, trincheirou-se e fortificou-se devagar. O irmão que agora é Rei, nos correu domingo com 8 ou 10 mil lanças, dos quais à segunda-feira se passaram da nossa parte 500, que nos depois foram todos traidores.
À segunda-feira pela manhã abalamos o campo nesta ordem sem parecer que podíamos pelejar, e sobretudo mortos de fome e haver 5 dias que se não bebia vinho, e afirmo a V. aí que ao Domingo ficou o nosso arraial triste, porque vimos muita forma de Mouros que nos rodeavam de todas as partes.
Segunda-feira pela manhã começámos a marchar todos nesta ordem, mas como digo todos enfadados e tristes, porque sabíamos de certeza que estava ali o Maluco com grossa gente para nos dar batalha, que assim afirmo então a V. aí que tão bisonho estava o nosso campo que não sabíamos parte do Maluco nem da batalha. Na segunda-feira às 7 horas se abalou o campo e começámos de marchar.
Neste tempo soube El Rey que estava o Maluco dali meia légua no passo por onde havíamos de passar. Dizem que lhe mandou um recado, e que ele lhe mandara dizer que ali o estava esperando onde o fomos buscar, e antes que chegássemos a tiro de bombarda, ficámos todos cercados de Mouros, e assim fomos marchando até chegar ao Maluco, tanto espaço como do Corpo Santo até à Cruz de Cata que farás, donde o Maluco começou a disparar sua artilharia que era muita, e muito mais esforçada que a nossa que nos fez pouco uso porque a mais dela foi por alto, e nós passamos


Em nota marginal - "Oito ou nove mil Andaluzes vendo 
como a coisa ia em favor nosso, estiveram quase 
determinados para se lançarem da nossa parte."
e começou a jogar à nossa, donde um pelouro dos nossos lhe deu na sua pólvora, e lha queimou toda, e logo serraram dos Mouros connosco 80 mil de cavalo, e 6 mil de pé em que os mais eram Elches e Andaluzes, segundo os Mouros dizem, afora a gente de pé que não tem conta.
E começando agora bateria sua, e nossa, aí pelouro dos nossos na prenunciada deu no Maluco que vinha dentro em um coche e o matou, de que os Mouros ficaram amedrontados, e se retiraram ali. Tanto mais dizem que no mesmo coche trazia dois arrenegados consigo que o fizeram sempre vivo para animar os seus, deitando-lhe muito dinheiro em nome do Maluco, e os Mouros posto que não desapegaram da batalha de todo, tornaram a pegar de novo mais rijo.

Neste tempo correram os Tudescos com o seu Terço e chegaram junto da artilharia dos Mouros, donde foram logo cercados deles por não marchar toda a infantaria, que se o fizeram ganhávamos toda a artilharia, e sem dúvida os desbaratávamos. Mas como se os Tudescos se viram sós, e com o seu Coronel e Capitão mortos ficaram logo perdidos, por não haver quem os socorresse. Porque os Aventureiros, que com eles estavam juntos não os socorreram, por não terem arcanbuzeria nenhuma, senão só duas companhias de escopeteiros de Tanger que todos valorosamente pelejaram, até os matarem a todos, e aos Aventureiros, que morreram mártires pelos não deixarem marchar como queriam. Os Mouros tanto que viram a desordem cortaram o terço dos Tudescos, e Aventureiros, e foram nos ganhar nossa artilharia que não tirou mais que a primeira vez.
Neste tempo estando a batalha indeterminada de ambas as partes, desbarataram-nos muita gente de cavalo. Deu El Rey pela sua parte Santiago de quatro ou cinco mil de cavalo, onde pelejou muito valorosamente, mas mais cavaleiro do que capitão. E o Duque de Aveiro por outra parte, com D. Duarte de Menezes que ia na dianteira dele, com a gente de Tanger, deu nos Mouros onde os puseram em fugida, e a gente de Tanger chegou à artilharia do Maluco, e lhe tomaram uma bandeira de cima da artilharia, e como a nossa cavalaria era pouca, a cortaram logo, pelo que conveio retirar-se ao nosso esquadrão, mas com muita gente perdida, que com a escopetaria matavam, e fazendo só três voltas com os Mouros (de que lhe matámos 

muita gente) não se pôde mais sortir a nossa cavalaria por ser tão pouca, e se meteu no esquadrão, que estavam já neste tempo desbaratados, e a artilharia perdida. O Xarife com a sua gente pelejou muito valorosamente, mas como éramos todos poucos, não nos pudemos sustentar.

Neste tempo vendo El Rey que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.



















O outro relato "por relação de Simão da Cunha", escrito na margem, diz assim:
Havendo el Rey passado o rio e todo o exército, veio ter com ele D. Duarte de Menezes e lhe disse que todo o exército havia passado o rio, pelo que mandasse Sua Alteza o que se havia de fazer. Peguntou-lhe El Rey o que lhe parecia, disse-lhe D. Duarte que o seu parecer e de todos e dos Elches (um dos quais era o Alcaide Raposo) era que caminhasse Sua Alteza ao longo do rio para Larache. Mandou El Rey chamar o Raposo e os outros seus companheiros, que lhe disseram o mesmo. E que fazendo assim, Sua Alteza ganharia a mais preciosa vitória sem sangue que se podia desejar, porque o Maluco estava morrendo e não escaparia daquele ou do outro dia. E estando El Rey quasi determinado a seguir este conselho, chegou a ele Fernão da Silva, o clérigo, armado, e do que lhe disse que ninguém ouviu (estando Simão da Cunha que ia no esquadrão dos aventureiros presente), voltou El Rey para D. Duarte e lhe disse que marchasse o campo adiante assim como ia, contra o do Maluco, o qual se o esperasse lhe daria batalha, e se fugisse que fosse com todos os diabos. 
Quando os nossos ouviram a artilharia dos inimigos e o estrago que neles fazia ficaram maravilhados e cretados do medo, porque a quasi todos parecia que os mouros não haviam artilharia; tão pouca notícia havia de tudo, sendo tão necessária. 
Quando o esquadrão de aventureiros arremeteu, e chegou à artilharia dos inimigos, e os mouros se retiraram, andava o Maluco [Mulei Moluco] a cavalo e vendo ou entendendo que os seus fugiam, levou do Alfange para os deter, e com a cólera e enfermidade não acabou de arrancar o alfange e caiu do cavalo. Meteram-no logo nas andas e logo expirou.
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Conforme disse, esta história por este lado dos manuscritos acaba assim, sem final para D. Sebastião. Quem quiser pode agora contentar-se ou não com um final habitual que nos é conhecido:
"Depois de quatro horas de luta, terminara a batalha. Apenas D. Sebastião e um pequeno grupo de fidalgos seguiam combatendo. Nem a bandeira, nem o guião real, chamavam já a atenção dos mouros sobre o monarca ; e talvez a esta circunstância devesse não ter sido ainda morto. Mas era um fim previsto. Cristóvão de Távora suplica-lhe que se renda. D. João de Portugal acrescenta : "Que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?" Respondeu D. Sebastião: "Morrer, sim, mas devagar". D. Nuno Mascarenhas chegou a arvorar um lenço, na ponta da lança ou da espada. D. Sebastião, porém, não se rendeu; e travando-se combate, foram mortos o conde de Vimioso, Cristóvão de Távora e alguns fronteiros de Tânger. Os restantes ficaram prisioneiros. Mais adiante, foi o soberano português cercado dum grupo de alarves que o mataram, com profundos golpes na cabeça e algumas arcabuzadas no tronco."   
(daqui) 
Pela minha parte, aqui leio outra coisa.
Leio que D. Sebastião "viu o campo já tão desbaratado que se retirou". E leio não apenas que "depois de quatro horas de luta terminara a batalha", leio que "terminou sem se declarar a vitória".
Por isso, parece-me que havia condições de se ter feito uma "retirada estratégica". 
Se é possível acreditar que isso não fizesse o estilo de D. Sebastião, "mais cavaleiro que capitão", a rendição de D. Duarte de Menezes foi mais de capitão do que de cavaleiro. Porque em que paragens andaria a honra do Mestre de Campo que se rendeu, se o rei não o fez?
Certo é que as inconsistências do relato final levaram ao mito sebastianista.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Uma Cepta em África

Os jornais lembraram-se hoje que se comemoram 600 anos do desembarque em Ceuta, e alguns fazem notar que também se comemora este ano, 500 anos sobre a morte de Afonso de Albuquerque.
Em 18 de Junho também lembravam dos 200 anos da Batalha de Waterloo.
Faz parte do noticiário não descurar em demasia estes dados históricos.

Há uma pequena diferença, no entanto!
Os ingleses não tiveram problemas em assumir várias comemorações oficiais, e se os franceses não gostaram do resultado de Waterloo, que terminou com as aspirações napoleónicas, pois têm que ir lidando com isso.

Quanto a Portugal, dificilmente poderia ser mais ruidoso o silêncio manifestado nesta passagem dos 600 anos. Ou, citando o blog do Comandante Costa Correia: 
Hoje, 600 anos decorridos sobre a conquista de Ceuta, apenas conheço uma comemoração oficial no nosso país (sessão evocativa com o apoio da Câmara Municipal de  Oeiras), e uma manifestação de natureza gastronómica, em Ceuta - ambas sem estar prevista a presença do venerando Chefe do Estado...
Creio não serem necessários mais comentários.
(... blog onde cheguei através desta crónica.)

De facto, dispensam-se comentários, mas parece-me que o barulho de tanto silêncio, só não se ouve mais, porque os jornais do regime cantaram a canção ensinada, e fizeram gala de ser unânimes em disfarçar o silêncio oficial. 
É mais um Páf!... e este "Portugal à Frente" vai tão à frente, que enterrou a Retaguarda histórica.

Não sei se já aqui falei disto... mas o episódio foi denominado "Uma Lança em África", quando na prática foi uma "Seta" em África, já que Ceuta era antes denominada "Cepta". A "crónica" de Zurara intitula-se
"Tomada da mui nobre cidade de Cepta per El Rei D. João 
o primeiro do nome rei de Portugal e do Algarve 
aos 21 dias do mês d' Agosto de 1415."

Explica-nos assim João de Barros nas suas "Antiguidades" (1549):
Ceita - cidade de África, chamava-se Septa, quasi coisa cercada porque o mar "a tinge" de toda a parte, mas Volterrano diz que tomou aquele nome de dois nomes iguais, o Itinerário lhe chama "Septe Irmãos" porque tem "derredor" sete montes. Justiniano lhe chama Septa, os Mouros como quer que quebram a sua fala nos dentes lhe chamaram Ceuta, e nós agora Ceita. E na tomada desta Cepta diz o cronista que acham em escrito por Mouros mui sábios que Ceta em Arábico quer dizer começo de formosura, e que foi fundada por um neto de Noé.

- Seja Lança, porque foi o lançar da expansão portuguesa.
- Seja Septa ou Ceta, porque foi uma seta, uma lança.
- Seja Sete Irmãos, não apenas pelos sete montes, ou colinas, mas depois mais pelo número de famosos irmãos (filhos de D. João I) - Duarte, Pedro, Henrique, João, Isabel, Fernando, e o bastardo Afonso. Dos quais os primeiros foram em Ceuta armados cavaleiros.
- Seja Ceita, pelas seitas que depois se formaram apoiadas em cada um dos irmãos.

Seja por quaisquer destas razões, os nomes ajustam-se bem.

Hoje em dia, se Ceuta não merece comemoração oficial, é questão a perguntar à Ceita antiga.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Pela mão de Sebastião

Hoje é Embaixada de França o que antes foi o Palácio de Santos.
Para mostrar como o edifício foi querido de D. Sebastião, temos esta descrição na página da Embaixada:
D. Sebastião (rei de 1557 a 1578), sucessor de D. João III, considera, pelo contrário, o Palácio de Santos como uma das suas residências preferidas. Em 1576, o monarca escapou a uma violenta explosão dos armazéns de pólvora que se situavam nas margens do Tejo, do lado da actual Rua das Janelas Verdes. O sinistro danificou muitíssimo o Palácio. Em 1577, o Palácio de Santos é o teatro de uma cena histórica: o rei recebe a notificação do seu ministro contra a campanha, na África do Norte, que ele estava a preparar. A 25 de Junho de 1578, o rei D. Sebastião parte de Lisboa para Marrocos. Na véspera, assiste à Missa na Igreja de Santos-o-Velho e diz-se ter tomado a sua última refeição no Palácio, na mesa de mármore que se encontra no actual jardim. Esta cruzada contra os Mouros termina com a catástrofe de Alcácer Quibir (4 de Agosto) onde morre uma grande parte da nobreza portuguesa próxima do rei (um filho, Afonso, e dois netos de Jorge de Lancastre são mortos; um outro neto, Luís, é feito prisioneiro).
Depois desta perda, os Lancastre instalaram-se novamente no Palácio de Santos que se encontrava num estado lastimável, devido à explosão dos armazéns de pólvora e da sua ocupação pelo exército de Filipe I que veio, em 1580, afirmar as pretensões do seu monarca ao trono português, depois de extinta a dinastia de Aviz. Luís de Lancastre (1540-1613), regressado de Marrocos, depois de ter sido pago um grande resgate, compra o Palácio às Comendadeiras, mas esta aquisição foi contestada pelo poder real. Só em 1629, o seu filho, Francisco Luís (1580-1667), consegue finalmente comprar o Palácio definitivamente às Comendadeiras com a autorização real. O Palácio fica na posse dos Lancastre até 1909.
É sobre o episódio da Explosão dos Armazéns de Pólvora, que destaquei, que encontrei esta transcrição.numa compilação de manuscritos constante na Biblioteca Nacional

Documentos de várias tipologias, relativos à história portuguesa, 
sobretudo do reinado de D. Sebastião
 (pag.121-123)

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Del Rey D. Sebastião de mão própria 
ao Magnífico Embaixador D. Juan da Silva

Magnífico Embaixador,
havendo-vos escrito por Miguel de Moura, me pareceu toda via por mim escrevermos o que mais oferece para o dizerdes ao Senhor Rey meu tio e ao Duque de Alva, e ao Prior Dom António, e se discorrer ponderar, e entender o que Deus mostrou, e o como aprovou quão servido foi destas Vistas e do que delas deve proceder e resultar com permitir e ordenar que sucedesse o efeito da Pólvora, que foi tanta como na carta que escrevo a D. Cristovão de Moura, e tão grande a ruína e perigosa, como desta entendereis. Nestas casas caíram muitas pedras e com tanta força que quebraram as pedras das paredes e os tijolos em que deram, que ainda fizeram algum dano em quem não fora pedra, na casa do conselho morreram sem falta todos os que nela estivessem e pelas horas em que foi, se eu aqui me achara alguns morreram que fora

grande perda, podendo ser isto a outras, que os que nela alcançava não fora tão grande perda. Nesta casa em que estou entraram algumas pedras com mais força da com que o Alferes Mor monteia, e da com que D. Diogo de Cordova esperava os Porcos de Portugal com os seus venablos. Porque nas paredes em que deram desfizeram a Cal, e quebraram as pedras delas, e uma deu com esta força onde eu aquelas horas costumo estar assentado, e onde estou encostado à parede, e finalmente de onde me fica a cabeça. Lembra-me que quando me tivestes, e D. Cristovão nesta casa, que o Imperador era falecido, e que visse o que escreveríeis no das Vistas, vos respondi que entendia se nelas houvesse dilação segundo as coisas que sempre corriam, e se ofereciam, se não efectuariam. O que se viu ser assim, pois se não partira quando parti, suposto o sucesso da Pólvora, e o efeito das Pedras, e a que me alcançava na cabeça com a força que se viu trazia, pelo que na parede e pedras dela fez, eu não pudera partir. De onde se pode bem inferir que por uns dias de dilação não foram estas Vistas e se perdera a grande importância delas. Em que se vê permitir Nosso Senhor que fosse este acontecimento uns dias depois que parti, e não permitir que acontecesse muito depois, nem algum antes, porque sendo dias depois, parecia sem mistério e sem interpretação; sendo antes, parecera não permitir tal sucesso.

Sendo no dia em que foi, mostrou o que em tudo por tão diferentes modos, e densas demonstrações quer que se entenda e se veja por se sentir e recear, e que ou a razão convença e obrigue, ou o receio mova e persuada declarando Deus e tão claramente mostrado que não somente se perdem as coisas por se passarem as conjunções delas, mas se perdem por um dia de Dilação nas boas ocasiões para elas. E que além de se ver quanto se perde nisto nas coisas que convém, mostra Deus com castigo quando se ofende visto por o muito que o contrário modo a seu serviço convém e importa. Finalmente experiencia razão, e a escritura, provam esta conclusão, lendo-se em um Salmo tempus faciendi Domino dissipaverunt legem tuam ideo mandata tua dilexi super aurum, donde se tempo de haver fazer destruir a Lei de Deus, que fará por não fazer o tempo de não fazer, e muitas vezes dizem as coisas de si o que dizia Job por si (si mane me quaesieris, non subsistam) e parece-me que a quem as coisas isto puderem dizer, poderá de si dizer as mesmas coisas (si nunc me quaesieris tam non subsisto). Tenho-me alargado tanto que ia posto mais dizer, que não sei. O que digo que cuidar que sei ia o que escrevo, referi ao Senhor Rei meu tio a 

história desde o acontecimento com interpretação .
Ao Duque d'Alva lede esta carta e ao Prior D. António e lede-a com D. Cristovão e avisai-me como leu o Duque a minha carta, e se viu o que sobre ele e o Prior escrevi ao Senhor Rei meu tio


Diz que quer vir agora cá, um homem que está em Évora vestido de vermelho a falar em coisas que lhe importam, e não advirte que sendo vista, queixa geralmente dizer o homem que o não ouviram, quanto maior deve ele ter de si e de quem o ouvir, podendo dizer com o mesmo encarecimento, que o ouviram.

Dizei a D. Diogo de Cordova que os porcos de Salvaterra e de Almeirim o desafiam, e o esperam para entrar com ele em mato e não em campo e que eu serei seu padrinho no mato e no campo;
Escrevei-me de como fica o Duque de Alva, e se achou estes dias, dizei-lhe que espera cedo pelo homem que me escreveu me mandaria, e pelas mais coisas que com ele haviam de vir, e que neste intento e para este efeito se procede cá nas coisas, e que das que se oferecem de novo o avisarei, e assim tenho por mui certo se procederá lá em tudo.

de Lisboa 26 de Janeiro de 1577
Rey
___________________________________________________________________

Portanto, esta explosão dos Armazéns da Pólvora não foi vista como um mero acidente por D. Sebastião, e noutros documentos podemos ver como o Embaixador de Espanha se queixa de que ele, por mais explicações que lhe sejam dadas por si ou pelo Rei de Espanha, não acredita em nenhuma.

D. Sebastião é irónico, e aproveita a questão dos "porcos" para desafiar directamente D. Diogo de Cordova, e o Duque de Alba. Inclui ainda na "lista", Cristovão de Moura, e também o Prior do Crato.
Portanto, de certa forma esta carta mostra que D. Sebastião não estava completamente desavisado de eventuais vontades externas contra a sua vida, e facilmente apontava isso a Filipe II de Espanha, seu tio, ou aos seus associados mais directos.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Estado da Arte (5)

Um dos blogs que disponibiliza ao público informação sobre investigação arqueológica é Portuguese Enclosures (com relevo para as escavações em Perdigões), e que me foi indicado há uns tempos pela Amélia Saavedra. Daí trago um mapa interessante sobre a localização desses acercamentos em Portugal, como sejam fossos circulares ou cercas muradas: 
 A.C. Valera (2015), "Map of walled and ditched enclosures"
(muradas - quadrados vermelhos, fossos - círculos laranja)
É interessante, porque o mapa escolhido apresenta a cinzento a orografia, e facilmente se nota que, à excepção de um caso (perto de Aveiro), todos os outros pontos foram encontrados em altitude. Ou seja, estão sobre a mancha cinzenta, que julgo corresponder a 100 metros de altitude (ou mais). 
Especialmente significativo é o caso a sul do Tejo, já que dessas dezenas de acercamentos, nenhum foi encontrado na parte abaixo dos 100 metros, e vários situam-se na linha fronteira dessa altitude.

Por outro lado, encontrei no ano passado um mapa que tinha uma localização extensiva das cavernas com registos pré-históricos, a que adiciono também um mapa de altitude:


Cavernas com inscrições rupestres (em cima), e mapa com o relevo do terreno (em baixo).

Observação: O blog que tinha a imagem de cima desapareceu entretanto... de forma que o link não funciona, mas deixo-o conforme o encontrei. A imagem de baixo tem link operacional, mas não é o mapa orográfico que aqui usava habitualmente. Esse era shaded-relief.com, que subitamente também deixou de funcionar... Aliás é curioso que o Google Maps também incorporou uma faceta de relevo do terreno, mas foi simplesmente desactivada na nova versão. É bom que nos habituemos a que as "novas versões" podem ganhar tendência sistemática em serem piores que as anteriores, com o pretexto de "facilitarem a compreensão".  

Ou seja, o que notei então é que o mapa das cavernas com inscrições apontava também para uma localização em altitude, especialmente por falhar a zona mais baixa da Aquitânia francesa. Não consigo saber se o registo aponta sempre para valores acima de 100 metros, mas é natural que sim.

Por outro lado, também sabemos que já mencionámos Cosquer, uma caverna cuja entrada estava 37 metros abaixo do nível do mar... Parece portanto informação contraditória. Por um lado, temos um registo frequente de cavernas acima dos 100 metros, e por outro lado há excepções, abaixo até do nível actual do mar. Como conjugar a informação?

Bom, o caso das cavernas ainda que fosse uma dica, era isolado. Trago este assunto porque há muito que reparei que os registos arqueológicos são normalmente encontrados em altitude, afastados de zonas baixas. São encontrados próximo da costa quando essa costa é alta. Este novo caso de investigação dos acercamentos parece indiciar o mesmo fenómeno - a sua localização é em altitude.
Se ainda podemos argumentar que os vestígios humanos em cavernas estão mais ligados a altitude pela presença de formações montanhosas calcárias, já é mais estranho que isso ocorra também com acercamentos, que poderiam ser construídos em qualquer lugar.

Assim, após as Idades do Gelo, o degelo fazia naturalmente aumentar o nível do mar, e estas variações não são nada insignificantes... é admitido que a linha de costa na época glaciar se estendia bastante e até deixei nos comentários um possível mapa, com um contorno obtido por análise do Google Maps, baixando o nível do mar:
Possível contorno da costa com o nível do mar reduzido, em época Glaciar
(a linha branca corresponderia a uma eventual localização dos gelos permanentes).
Se repararmos no mapa, haveria nessa época glacial várias ilhas ao largo da costa portuguesa, e que hoje estão submersas, sendo denominadas "bancos", e poderá ser grande a sua riqueza arqueológica.
Ora o problema é que quando havia uma ligação à "terra firme" (designação antiga, interessante, para o continente), a fuga das populações com a subida da água, poderia ser feita... mas também poderia ocorrer que o refúgio não fosse suficientemente alto. Nesse caso, ainda que as populações se tivessem refugiado nuns montes com algumas centenas de metros, a invasão das águas começaria por tornar esse monte numa ilha, e com a subida progressiva, essa ilha seria submersa. 

Claro que alguns poderiam escapar, se usassem barcos, mas o problema colocar-se-ia quando o número de embarcações fosse ausente ou insuficiente, e a subida das águas fosse suficientemente rápida, a ponto de não permitir viagens suficientes para resgatar toda a população cercada. Ou seja, os que escapassem, saberiam que teriam afogado muita mágoa, em má água. Especialmente se isso tivesse ainda envolvido uma escolha entre "homens" e "animais", não exactamente como o pintado na Arca de Noé.

Há uma tradição sobre uma grande seca na Península Ibérica, em tempos "recentes". Bernardo Brito fala do assunto no Cap. 24 da sua Monarchia Lusitana -  De certa esterilidade que os autores contam, que aconteceu em Espanha neste tempo, e da verdadeira e menos duvidosa opinião que há nesta matéria. Essa seca teria levado a um enorme despovoamento da península, e isso poderá estar relacionado com um aumento de temperatura que teria não só causado uma grande seca, mas também ocasionado uma razoável subida das águas. Não é de excluir que os acercamentos (datados os mais antigos por volta de 3000-4000 a.C.) possam reflectir um tempo em que a temperatura aumentou, e com isso houve uma subida de águas muito significativa, uma escassez de recursos alimentares, e um aumento da conflitualidade entre as populações.

Como curiosidade, mencionamos ainda que uma subida da ordem de 100 metros seria suficiente para isolar a Península Ibérica, como ilha face ao restante continente europeu, ou seja, a figura da "jangada de pedra", se foi apenas figuração de Saramago, poderá ter tido um correspondente efectivo em tempos remotos.


Noutra Atlantis
O continente americano foi entendido durante vários séculos como a verdadeira Atlântida, para onde a navegação era condicionada ou proibida, até que se impôs a necessidade de manter o mito de uma Atlântida a meio do Oceano Atlântico.
Ora, no continente americano têm-se encontrado inúmeros registos de pinturas rupestres, especialmente no sudoeste dos EUA, e como há muitos fotógrafos que disponibilizam imagens, encontrei esta, com alguma semelhança com a da Lapa dos Gaviões, ou se quisermos, com o registo da Kanaga e Wolu, dos Dogon, que mostrámos no Estado da Arte (4):
 
Pintura rupestre americana (foto W. Harrell) e Lapa dos Gaviões (Portugal)

Mas não são apenas estas que são semelhantes. Há várias outras. Ficam aqui um link de fotos tiradas no White River Narrows - Archeological District ou aqui (sem menção do local). E também uma outra que mostra que há "talibãs" em várias partes do mundo, apostados em destruir registos passados:
Vandalismo presente sobre o rupestre antigo (foto de W. Harrell)
... e o problema será maior quando algumas das letras modernas disfarçarem traços ou letras antigas.  
Apenas como curiosidade, W. Harrell foi até descobrir o símbolo da Triple Marfel ... ou muito semelhante;
ou ainda o símbolo nuclear num possível escudo guerreiro!!

Acresce que o símbolo Kanaga dos Dogon aparece também na Colômbia, em conjunto com o símbolo do Indalo, da Almeria espanhola (de que falámos antes):
Indalo e Kanaga numa inscrição na Colômbia
(http://indalocodex.com/codigo-indalo/)
Estes são apenas alguns exemplos, há vários outros casos. No exemplo do Indalo já foi também sugerida uma semelhança com esta representação egípcia, da época de Ramsés:
Possível interpretação do Indalo em inscrições egípcias de Ramsés.
(http://leyendasyfabulas.com/el-indalo-simbolo-de-almeria/)
O que interessa notar é que mesmo que estejamos dispostos a aceitar um certo número de coincidências, e mostrámos algumas, haverá uma sistemática repetição de símbolos em paragens tão distintas como as europeias e americanas, e em que só os muito crentes pensarão apenas em coincidência, sem se interrogarem minimamente. Tendo vistas muito mais imagens do que as apresentadas aqui, o caso do Indalo e Kanaga parecem-me fazer parte dessa "lista de coincidências". Tratar isto como coincidência, está ao nível de considerar que é uma coincidência o sol nascer e se pôr todos os dias... e só um certo tipo de "cientistas" consegue tal redução absoluta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Estado da Arte (4)

Alguns dos animais mais representado nas antigas pinturas rupestres europeias eram Bisontes (bison europaeus) e Auroques (bos primogenius), bovinos de espécies diferentes. Apesar da caça intensiva ter levado praticamente à sua extinção, na Antiguidade ainda existiam na Europa. Os últimos exemplares foram caçados durante a Idade Média, mas sob protecção real ainda permaneceram alguns na zona da Polónia. Tendo sido o último bisonte selvagem morto em 1921, usaram-se os existentes em cativeiro para evitar o fim da espécie, e sobrevivem hoje pequenas manadas de bisontes em vários países europeus. O auroque extinguiu-se por completo no Séc. XVII.

 
Wisent - bisonte europeu em reserva, e na cave de Altamira

O nome para o bisonte europeu é Wisent, curiosamente lendo-se Vizent, ou seja, extinto o animal nestas paragens, a palavra mais próxima que nos ficou em português é Vicente.

É sabido que, num certo compromisso da cristianização com o politeísmo popular, certos cultos antigos foram mantidos através da grande panóplia de santos admitidos pela Igreja. Conforme já aqui falámos, o "Caminho de Santiago" era um caminho de peregrinação celta, mantido pelos romanos.
O Caminho de Iano (ou Janus), passou depois em época de peregrinação romana a ser o Caminho de Iago (Iago ou Tiago, São Tiago, Santiago).
De forma semelhante, não me surpreenderia que o destaque dado a São Vicente pudesse estar ligado a um culto bem mais antigo, que remontaria a tempos de arte rupestre, onde se representavam os "vizentes", os bisontes (aliás a própria palavra "bisonte", se atendermos à habitual troca dos "b" e "v", não difere assim tanto, se a lermos como "vizonte", e como detalhe lateral lembramos que a pele mais procurada foi o "vison"... um nome estranho para pele de lontras).

Acresce que o nome "Auroque" parece ter também uma certa deturpação moderna, sendo ainda no Séc. XIX também escrito como "Urox", ver por exemplo:
(1) The Annals and Magazine of Natural History, Vol. 4, p. 236  - "On the existing and extinct animals of Scandinavia", by Prof. Nilsson of Lund.
Este "ur-ox" era entendido em inglês como uma concatenação de "Ox" (boi) com "Ur", o bovino que em latim se designava como "Urrus", e hoje chamado "auroque" (num certo desvio fonético do "Ox" para o "Oc", occitano...)
A característica principal dos auroques eram os seus grandes chifres, e será de questionar se os bois de raça mirandesa, maronesa ou barrosã, não serão suas versões domesticadas, mais próximas dos originais que os bois ou touros, que foram mantidas e apuradas ao longo de gerações:
 
Chaves - "Feira dos Santos" onde os bois são "reis da feira" (esq.), e "auroques" desenhados em Lascaux (dir.).
É claro que os bois serem o foco na "Feira dos Santos" de Chaves, não significa nada, tal como a etimologia é suficientemente especulativa. No entanto, sem querer abusar demasiado do assunto, notamos que o nome latim "Urrus" se associa directamente à nossa palavra "urros", e pode ser visto como um caso de onomatopeia... Aliás, talvez não seja acidental o uso da palavras infantil "turras", para designar o embate de cabeças, já que o combate entre estes animais se processaria com essas cabeçadas e com "urros".

Para terminar este tema, vou citar um texto do Séc. XIX:
Baal, Bel, Belus, Chronus, Moloch, Saturn, the same deity. Chronus derived from "horn", which was an emblem of power and dominion among the Eastern nations (...) Chronus must have been rendered by the Greeks "Koronus", and there was a place dedicated to him in the island of Cyprus, which was called "Koronis", and both these words are a transposition of "Kon-Orus", the "Lord Orus", or lux, vel ignis. (...)

Esta facilidade na etimologia deixa sempre muitas dúvidas... e só a usámos para notar que a associação entre "Cronus" e "cornos" é audível em português, mas não deixa de estar referenciada.
Já a relação com "Koronus" leva-nos também à palavra latina "Corona", ou seja "Coroa", e não deixa de ser interessante entender as cabeças coroadas como cabeças corneadas. Apesar de se referir a Lord Orus, o autor não estabelece ali nenhuma ligação ao Horus egípcio, talvez porque ao falcão faltaria o ornamento coroado.

Relaciona-se tudo isto pouco com o anterior texto Estado da Arte (3), mas como diria o guia timorense então citado, "it's a hairdresser"... ou seja um enfeite da cabeça!

Para esse efeito, especialmente significativas são as máscaras dos Dogon (povo do Mali):
Máscaras na tribo dos Dogon (imagem daqui)
A da esquerda chama-se Kanaga e a do centro será um Wolu (cf. aqui)
Se atendermos a estas imagens, e repararmos nalgumas das pinturas rupestres, que aqui coloquei anteriormente, por exemplo, a da Lapa dos Gaviões:
Pintura na Lapa dos Gaviões (esq.), e inscrição moderna dos Dogon (dir.) invocando a Kanaga.

... vemos que as enigmáticas figuras humanas cuja cabeça aparece enfeitada - a ponto de noutros casos se entenderem algumas imagens como "capacetes de astronautas", podem naturalmente dever-se a simples enfeites de máscaras rituais.

Algumas máscaras representavam directamente animais, outras nem tanto... por exemplo, o símbolo das tábuas em forma de "H" é abstracto e conhecido como Kanaga e fez parte das bandeiras do Senegal e Mali (este nome "Kanaga" pode ainda estar ligado ao rio Canagua, depois passado a rio Senegal).

Noutras paragens - Nova Guiné, Papua, vemos máscaras igualmente estranhas, e que uma vez desenhadas numa parede poderiam levar facilmente à suposição de se tratar doutra coisa, estando em moda, a associação a ET's.
Tribo da Papua em máscara ritual, Nova Guiné (imagem daqui)
...
Portanto, parece natural que o simbolismo que levava a fazerem-se máscaras com animais, ou outros símbolos menos óbvios, fosse transportado para a pintura ritual, para a pintura rupestre.
A parte mais estranha, que é agora moda remeter para extraterrestres, deve ser remetida para outros seres igualmente estranhos, os xamãs, magos, e sacerdotes, que exploraram essa faceta ritual. E se algumas das pinturas foram inspiradas em alucinações, em transes, conforme mencionado no documentário da BBC, esses rituais seriam uma parte do foco cultural, mas não seria o único foco.

Finalmente, o nome dos Dogon lembra-nos o Anedoto Dagon, de que já falámos (por exemplo, sobre as bolsas), e que sendo um Anedoto  (ou Anunaki), que aparecia aos babilónios sob a forma de peixe, tem uma filiação interessante na mitologia fenícia que o remete como irmão de Cronos (ver "Abertura de Sancho")... ou seja, o outro elemento de destaque nas máscaras Wolu, embelezadas com um par de chifres.
18-08-2014

domingo, 16 de agosto de 2015

O Carmo e a Trindade (2)

É bem sabido que a morte do Rei D. José correspondeu ao fim político do Marquês de Pombal.
Uma parte do clero rodeara a filha do rei, D. Maria I, e esta nunca teria perdoado ao Marquês a bárbara execução dos Távoras, procurando recompor a velha sociedade da destruição pombalina...
Desse período que se seguiu, encontrei um manuscrito "comemorativo" da morte do ditador (1782), extremamente satírico, revelando o sentimento odioso que uma parte da sociedade, especialmente a ligada à antiga nobreza, lhe dedicava:

Textos, predominantemente satíricos e jocosos, 
contra o Marquês de Pombal e a sua política.


São muitas páginas manuscritas, nem sempre de fácil transliteração, e escolhi este trecho satírico (o autor é desconhecido), por se incluir algumas críticas específicas e não o simples ataque pessoal - que faz o prazer dos cortesãos.
Ao Hiperbólico, Fantástico, Extravagante, Antidevoto, Antideista, Sebastião José de Carvalho,
Primeiro-Ministro, e Marquês do Pombal, D. Quixote dos Ministros do Estado, Sublime Engenheiro de Castelos de Vento, Legislador de vacatelas [bagatelas], Autor de Leis Enigmáticas, Inimitável criador de palavras gigantescas, Único descobridor da pedra filosofal, Defensor em voz, Destruidor na ré, Virtuoso nas palavras, Vicioso nas obras, Abundante de projecto, Falto de execuções, Restaurador quimérico das letras, Real perseguidor dos sábios, Protector aparente do comércio, Arruinador verdadeiro da lavoura, Povoador dos cárceres, Despovoador dos campos, Grande dentro, Pequeno fora, Richelieu na vingança, Mazarin na ambição, Nas virtudes, nem um nem outro, Agradecido por sistema, Ingrato por natureza, Digno para vizir de um príncipe maometano, Indigno par ministro de um príncipe cristão. 
O Povo Português, Sumamente agradecido à sua odiosa memóriaPelo haver governado com ceptro de ferro, Por ter armado uma parte dos seus cidadãos contra a outra parte, Por ter enriquecido o particular, empobrecendo o público, Por ter aniquilado a antiga nobreza, e levantando outra de nova invenção, Por ter acrescentado o número dos processos, como a censura multidão de informes leis, Por ter enriquecido a língua, com uma prodigiosa cópia de palavras exóticas, e insignificantes, Por outros muitos favores, que deve à sua liberal e prodigiosa mão, Mandou levantar este mausoléu, construído de ossos de inumeráveis homens vítimas do seu bárbaro, cruel e sanguinário génio, amassados com lágrimas: De tantas desamparadas viúvas, De tantas arruinadas donzelas, De tantos órfãos pupilos, Cujo servirá de memória indelével à posteridade, depois de fielmente se ter dado a execução, o seu bem justo, como abominável testamento e última vontade, bem conforme à sua depravada vida, por ele feito na forma seguinte (...)
Bom, e a sátira prossegue, não com muito sucesso humorístico ou literário, inventando um "Testamento secreto" que começava por
Sebastião 2º, isto é 2º carrasco, e primeiro Nero português. Monstro de todas as maldades, inimigo comum da Pátria (...)
Interessa aqui notar que, apesar de todo este rancor, raramente se encontra algo de objectivo que contrarie as versões oficiais e oficializadas. Ou seja, se procuramos elementos mais contundentes sobre a fabricação dos estragos do terramoto, a única coisa que se vê sistematicamente é o epíteto de "Nero".
Isto seria a forma mais simples de o ligar aos incêndios, que destruíram Lisboa depois do terramoto, mas não encontrámos nada de mais específico, nesse sentido. Para além disso, quando Camilo Castelo Branco reduziu o epíteto a "Nero da Trafaria", ligou-o mais ao episódio macabro do incêndio levado a cabo por Pina Manique, a mando do Marquês, contra os aldeões da Trafaria.

O facto do documento ser manuscrito e não impresso, parece um detalhe, mas normalmente mostra que os donos das Impressoras lisboetas não estariam tão disponíveis para certos trabalhos, neste caso contra a memória do Marquês.
Há imensos textos que nunca passaram a caracteres de impressora. Por acaso, não é o que acontece com esta parte, que é até citada numa tese de doutoramento da Georgia University (Belinda Sauter, 2005, pág. 44)... mas é o caso de muitas outras.
Apesar de haver muita mão de obra disponível, muita gente com muito tempo, com jeito e com pouco que fazer, estes textos permanecem na sua forma original... e já é uma "certa sorte" que a Biblioteca Nacional os tenha tirado do pó, e pelo menos os tenha digitalizado e lhes tenha dado acesso público (... sendo um mistério a razão que leva alguns a estar em "acesso privado").

Por outro lado, convém notar que se os adeptos da Igreja portuguesa tinham razões de satisfação com o afastamento do Marquês, passados 50 anos sofreriam um ataque ainda mais forte, aquando das revoluções liberais e extinção das ordens religiosas. Grande parte do espólio e documentação constante de grandes conventos foi abandonado ao vandalismo público, para depois ser comprado por coleccionadores privados, em boa parte, estrangeiros.

Conforme é dito no poema sarcástico, apareceram rapidamente duas aristocracias, algo semelhante ao que ocorreria depois com Napoleão. Uma aristocracia "imperial" saída da bonapartismo, e a antiga aristocracia real. A experiência maçónica com o Marquês foi depois repetida com Napoleão, praticamente nos mesmos termos, mas com as diferenças de dimensão dos personagens, dos estados, etc. Ambos tiveram uma rápida ascensão, grande propaganda, e uma rápida queda.
A própria experiência com o Marquês não era inovadora, pois o primeiro sucesso "revolucionário", no sentido de mudar a aristocracia, tinha ocorrido com Cromwell, na guerra civil inglesa.
O grande incêndio no terramoto de Lisboa tinha tido um precedente igualmente devastador no Grande Incêndio de Londres de 1666.

Curiosamente, em 1662, na sua chegada a Inglaterra, Catarina de Bragança foi acompanhada por Edward Montagu, 1º Conde de Sandwich, anterior embaixador em Portugal, que favoreceu o casamento com Charles II. Isto é apenas "curioso", porque já falámos aqui de Cook e de outro Sandwich, (descendente deste), a propósito da Inglaterra se ter afiambrado com o domínio do Pacífico, entre a América e a Ásia, por via do cozinhado de Sandwich com a viagem de Cook.

Ao mesmo tempo que Cook abria novo ovo de Colombo, e descobria praticamente tudo o que havia por descobrir, isto ainda em época do Marquês de Pombal, começava também a Revolução Americana, que levou à criação da primeira república moderna, por um punhado de maçons.

Pouco interessa hoje a planta quadriculada da Baixa de Lisboa do Marquês, é muito mais polémico o desenho de Washington. Curiosamente, Washington está praticamente à mesma latitude de Lisboa (digamos, a Casa Branca está à latitude de Alfarrobeira), e foi desenhada de raiz seguindo os planos de Pierre L'Enfant, por indicações de Washington e Jefferson (todos eles maçons).

Avenidas Novas
Esta propaganda sistemática à intervenção do Marquês em Lisboa, faz uma parte da população crer que esse planeamento incluía algumas das Avenidas Novas, até à zona da rotunda, pelo menos.
Porém, a sua influência foi apenas na Baixa Lisboeta, do Rossio até ao rio. Muitos empreiteiros em Portugal tiveram empreendimentos à escala pombalina (com maiores dificuldades burocráticas nas expropriações, do que certamente Pombal após o terramoto).

A grande expansão da cidade de Lisboa deu-se apenas quase 100 anos depois, no final do Séc. XIX com o planeamento do Eng. Ressano Garcia. Esse sim, definiu a estrutura arterial de circulação que Lisboa ainda tem hoje, e que depois seria complementada com intervenção semelhante do Eng. Duarte Pacheco (já com Salazar).

Planta de Lisboa em 1909 - um ano antes da implantação da República... os nomes eram outros!
Este mapa de 1909 mostra a Avenida Ressano Garcia... um reconhecimento por parte do regime monárquico, mas que haveria de chamar-se depois Avenida da República, no ano seguinte, e assim o nome de Ressano Garcia foi suprimido, bem como outras dezenas de alterações.

É interessante a pressa na mudança de nomes, logo em reunião no dia seguinte:
Quinta-feira, 6 de Outubro de 1910 - Alterações na toponímia da cidade de Lisboa
Em Reunião na Câmara Municipal de Lisboa, presidida por Anselmo Braamcamp Freire, Nunes Loureiro apresenta uma proposta aprovada por aclamação. A Avenida Ressano Garcia passou a denominar-se Avenida da República e a Rua António Maria de Avelar passou a designar-se Avenida Cinco de Outubro. Uma semana depois são feitas novas alterações: a Rua Bela da Rainha passa a denominar-se Rua da Prata; a Avenida D. Amélia passa a Avenida Almirante Reis; a Rua D. Carlos I passa a chamar-se Avenida das Cortes; a Rua d'el-Rei passa a Rua do Comércio; a Avenida José Luciano passa a denominar-se Avenida Elias Garcia; a praça D. Fernando passa a praça Afonso de Albuquerque; a Avenida Hintze Ribeiro passa a Avenida Miguel Bombarda; a rua da Princesa a Rua dos Fanqueiros; a praça do Príncipe Real passa a praça Rio de Janeiro; o Paço da Rainha passa a largo da Escola do Exército.
Mas como já tratei do assunto da instauração republicana, interessa apenas como curiosidade o regime republicano ter poupado à borracha personagens como o Duque de Saldanha, Fontes Pereira de Melo, ou os Duques de Ávila, de Loulé, entre tantos outros. Por exemplo, a Avenida José Luciano passar a Elias Garcia entende-se, pois foi o primeiro Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano... mas já se entende menos que a Rua Alfredo Keil tenha passado a Av. Júlio Dinis, até porque de Keil ficaria o hino nacional republicano. Se a Trindade passou a cervejaria, o Convento do Carmo manteve-se imperturbável nas suas altivas ruínas, 

O Marquês não foi o primeiro nem o último terraplanador de monumentos antigos. Da Muralha Fernandina, que circundou a cidade de Lisboa com 34 torres, não restou tijolo... apesar de muitas dessas torres terem resistido ao terramoto, algumas já tinham sido derrubadas antes, e uma boa parte foi derrubada depois. O que o terramoto não fez cair, outros abalos, de planeamento urbanístico, encarregaram-se do assunto... e não apenas por ordem do Marquês, já que várias foram demolidas no Séc. XIX. E, afinal, a estrutura mais provável de cair com um grande abalo - o Aqueduto das Águas Livres, foi uma das poucas grandes construções antigas a ser preservada.
Dessas antigas torres ficaram poucos nomes, associados às "portas", nomes que ainda assim ficaram na memória, e nas placas de algumas ruas, apesar dos nomes de ruas terem uma tendência natural.
É bastante ridículo, mas a generalidade dos nomes em ruas são de maçons. Parece que foi vendida uma certa promessa de eternidade, digamos uma menção "eterna"... pelo menos, até que seja revisto novo arruamento! Para clarificar ideias, pensemos nos nomes das ruas da cidade romana de Conimbriga, ou noutra cidade desaparecida, a uma simples distância "eterna" de dois milénios. O que lhes aconteceu? Este tipo de ilusões de destaque é de um gozo especial, de ridículo, como se cada maçã que comemos quisesse ser conhecida para a eternidade pela contribuição que deu para a alimentação da humanidade. Mas suponhamos, que sim, que cada registo individual ficava guardado no tempo. O que mostraria afinal, uma maçã limpa, ou uma maçã podre?

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O Carmo e a Trindade (1)

Tendo ir buscar a referência à História de S. Domingos, encontrei outro dos vários livros que vi no início de 2010 e que acabei por me esquecer de aqui mencionar. Trata-se de um "Atlas da Mocidade", de 1782, atribuído a José Anastácio da Costa e Sá.
Considerei mais significativo então a pequena nota do tradutor sobre o Terramoto de Lisboa de 1755. Passavam 27 anos sobre o "Grande Abalo" e portanto quem escrevia à época teria sido naturalmente testemunha ocular do evento.
Assim quando o autor francês fala sobre Lisboa (página 27...) diz:
Lisboa sobre o Tejo, Capital da Província da Estremadura, e de todo o Portugal. Um terramoto acontecido no 1 de Novembro de 1755 a arrasou inteiramente. 
o Tradutor apressa-se a esclarecer com uma nota de rodapé:
O Autor, mal informado do que aconteceu a esta capital no referido Terramoto, asseverou que ela ficara inteiramente arrasada, quando é certo que em mais de duas partes ficou em pé, e que somente o incêndio, que lhe sobreveio, abrasou, e consumiu os edifícios, tesouros, móveis, riquezas, preciosidades, alfaias, etc. ficando unicamente as paredes. Porém, de tudo o mais raro, que se perdeu, foi a grande Livraria de Sua Majestade - rara pelos manuscritos e originais da Antiguidade que conservava - perda sem dúvida lamentável para os sábios.

Faço aqui um mea culpa de não ter colocado este apontamento atempadamente... 
Já o deveria ter feito nas outras ocasiões em que falei sobre os Abalos do Marquês, mas a memória não funciona como um relógio, e as coisas aparecem por ordem de um tempo que está acima dos outros tempos. No entanto, quando transmito uma forte opinião não é apenas por uma suspeita ocasional baseada num certo detalhe, é por um acumular de informação, de várias fontes, umas mais presentes que outras.

O Terramoto de 1755 foi a maior farsa maçónica encenada nacionalmente!
Mais que isso, é trazida à cena repetidamente, com novos actores repetindo os mesmos disparates.
Note-se que o tradutor só fala do incêndio, em nenhuma ocasião menciona qualquer maremoto.
Porquê?
- Porque não houve nenhum maremoto em 1755. 

"Cair o Carmo e a Trindade" diz-se, por ironia, quando se receiam consequências graves de causas sem importância (ver aqui).

Foi isso que se passou - o Terramoto de 1755 passaria por "mais um terramoto de Lisboa", de uma grande lista, da qual se destaca sim, o Terramoto de 1531 que teve o propalado maremoto.
O mais significativo do Terramoto de 1755 seria a queda de parte dos Conventos do Carmo e da Trindade (aliás um ao lado do outro). Quem visitar Lisboa percebe até que a estrutura do Convento do Carmo não caiu... está ainda hoje de pé!

A consequência grave de cair o Carmo e a Trindade?
- O Terramoto de 1755 serviu como tiro de partida à terraplanagem maçónica.

Pegando numa planta comparativa feita em 1909, sobre os edifícios verdadeiramente afectados e a diferença entre Lisboa antes e depois do Terramoto de 1755, podemos centrar-nos na zona de demolição levada a cabo pelo Marquês.
Onde? - Na zona da "Baixa"!
Então, mas com o "suposto maremoto" não era natural reconstruir no "Alto"?
Foi isso que se passou em 1531 - pelo medo do maremoto, fez-se o "Bairro Alto"!
Planta comparativa : antes e depois de 1755  (Rev. Obras Públicas e Minas, 1909) - detalhe.
A castanho escuro - os edifícios "destruídos ou quasi-destruídos" - inclui-se aí Sé de Lisboa (nº96)!
A azul - edifícios que "em grande parte resistiram". A vermelho - edifícios que "resistiram".
A amarelo - a terraplanagem do Marquês após 1755, planta quadriculada da Baixa.
Linha vermelha - Planta quadriculada do Bairro Alto, feita após o Terramoto de 1531. 
Para termos uma ideia de como era Lisboa em 1650, basta reparar na
... e o que se passava é que a Baixa tinha até menos desordem urbanística do que se vê ainda hoje para os lados da Graça, do Castelo e de Alfama. O Marquês não inventou rigorosamente nada com a sua planta quadriculada, porque em 1531 o Bairro Alto já tinha sido feito com esse critério, numa zona até bem mais extensa, numa das colinas Lisboetas, e não em terreno quase plano. Basta ver que o facilitismo do Marquês nem sequer tocou na zona do Castelo e de Alfama... restando apenas a propaganda da sua construção urbanística, e esquecendo convenientemente que a destruição da Baixa não se deveu ao terramoto.

História Universal dos Terramotos
Como relato muito condicionado, pelo despotismo do Marquês e do rei D. José I, mas ainda assim como informação mais verosímil do verdadeiro impacto do Terramoto de 1755, convém ler uma obra publicada ainda em 1758:
que tem havido no mundo desde que há notícia desde a sua criação até ao século presente
de Joaquim José Moreira de Mendonça (1758)

que considera que o Terramoto de 1531 teria sido muito mais devastador.
Mendonça começa por confirmar que - "Tenho certeza por documentos autênticos que ainda depois daquele ano se erigiram todas as ruas do Bairro Alto, que ficam para fora das Portas de St. Catarina e Postigo de S. Roque (...)". E por comparação ao de 1755 contrapõe (pág. 55-56):
Nem obsta dizer-se vulgarmente que o Terramoto presente foi maior que o de 1531, por se verem arruinadas a Torre da Basílica de Stª Maria, e muitas igrejas, que naquele não caíram. A isto respondo que também neste ainda ficou sem ruína a outra Torre da mesma antiga Sé; e que as igrejas que caíram agora naquele tempo eram muito novas e ressentiram da mesma forma que ao presente sucedeu às duas Igrejas de S. Bento, à de Nª Srª das Necessidades, à do Menino Deus, à dos Paulistas e outras, com alguns palácios, e casas novas, que não padeceram ruína considerável.
Sobre o boato de grandes inundações em 1755 (pág. 116-117), apresenta a melhor explicação que encontrei para essa crença largamente difundida ainda hoje:
Havia muita gente buscado as margens do Tejo, por se livrarem dos edifícios, cheios de horror da vista das suas ruínas. Eis que de repente entra o mar pela barra com uma furiosa inundação de águas, que não fizeram igual estrago em Lisboa que em outras partes, pela distância que há de mais de duas léguas desta Cidade à foz do rio. Contudo, passando os seus antigos limites se lançou por cima de muitos edifícios e alagou o bairro de S. Paulo. Cresceu em todos os que haviam procurado as praias o espanto das águas, e o novo perigo se difundiu por toda a Cidade, e seus subúrbios, com uma voz vaga, que dizia que vinha o mar cobrindo tudo.
Aliás, o que se pode depreender da leitura do texto é que a propagação dos incêndios se deveu a sucessivos boatos que fizeram afastar as pessoas da cidade, deixando-a a saque de todas as pilhagens... depois atribuídas a criminosos que na oportunidade escapavam das prisões:
"Estas vozes se atribuíram depois a alguns homens malvados, que quiseram ver a Cidade desamparada para roubarem as casas do mais precioso. Causou este boato uma grande ruína, porque podendo-se nalgumas partes atalhar o fogo, correu este livremente destruindo tudo quanto o Terramoto havia perdoado(...)". 
Por exemplo, o Mendonça afirma ter conseguido evitar que o fogo atingisse o cartório de Lisboa, com o registo de propriedades, que estava a seu cargo, com pouca ajuda.

Avaliando em geral os estragos, e para além de fazer a natural referência ao Carmo e à Trindade - "ficaram reduzidos a cinzas os sumptuosos Conventos da Santíssima Trindade, de Nª Srª do Carmo, de S. Francisco, do Rosário dos Irlandeses, do Espírito Santo, de Nª Srª da Boahora (...)", volta a insistir na questão do fogo e não tanto do terramoto, colocando assim as coisas:
Depois de muitas reflexões feitas em várias ruas e bairros da Cidade, me parece que o fogo consumiu a terceira parte da Cidade, naquele sítio em que era mais populosa, por serem a maior parte das ruas estreitas, e as casas de quatro, cinco e seis andares de sobrados. Parece-me também que o Terramoto lançou por terra a décima parte das casas de Lisboa, deixou inabitáveis mais de duas partes das que ficaram em pé, ficando habitáveis somente ainda menos que uma terça parte das casas. A maior parte destas lhe foram precisos grandes reparos.
Sobre o maremoto... mais nada!
Para além de ficarmos a saber que na parte central de Lisboa haviam casas já com altura de 6 andares, o terramoto terá sido responsável pela queda de apenas 1/10 das habitações, mas por outro lado o incêndio teria afectado 1/3 das estruturas, especialmente na zona central, mais populosa... a zona da Baixa, que depois foi arrasada para a construção simbólica do Marquês.

Convém notar que este relato está cheio de deferências às virtudes do poder real, que acolhiam os desgraçados nas suas sumptuosas e luxuosas tendas montadas na "Ajuda". A obra foi autorizada, e por isso não seria um relato imparcial e objectivo... mas que ainda assim fez notar a total passividade com que a autoridade do Marquês deixou com que as pilhagens e os incêndios prosseguissem. A data é de 1758, o mesmo ano em que o nível de violência passa à fase seguinte, com a instauração do Processo dos Távoras, e com a sua execução em 1759.

Mais interessante é o folclore do registo "internacional" do Terramoto de 1755...
Mendonça começa por dizer que o terramoto a norte do Douro não teve registo de grandes danos, não deixa de referir a sua igual devastação no Sul de Espanha, em Huelva e Cadiz, inclusive fazendo referência a queda de parte do monte Gibraltar!

Mas não se ficando por Espanha, e poupando o norte ibérico, o estranho terramoto teria sido sentido em França, em La Rochelle, abrindo mesmo terras em Angouleme, tal como em Tanger (em Marrocos)! Teria sido ainda sentido na Suiça e em Itália, com alterações nas águas de Haia a cidades do Báltico, próximas de Berlim. Para se entender bem este "nível de destruição", é ainda juntado um episódio de Mequinez (Marrocos?) onde uma aldeia com 6 mil soldados a cavalo teriam sido "engolidos pela terra".

Compreende-se que tal relato pudesse ser comido como bom à época, mas é preciso entender que a devastação que se processou em 1755, foi muito selectiva nas catástrofes - um objectivo na zona de Cádis, em Espanha foi arrumar de vez com as Colunas de Hércules, que resistiam desde a Antiguidade.
Por isso terá sido muito mais uma acção humana combinada, com manos iluministas munidos de archotes para incêndios, muito empenhados na sua missão destruidora, mais activos numas partes do que noutras, isso parece claro.
O Marquês com tanto medo dos "maremotos", que teriam varrido "o Algarve e a Andaluzia", vai afinal mandar fundar de raiz uma Vila Real de Sto. António, assim mais sujeita a inundações do que qualquer outra vila. Quanto aos incêndios das aldeias da Trafaria ou de Monte Gordo, vemos como o Marquês entendia o seu papel iluminista mais na base da chama dos archotes.

É claro que estas contradições evidentes, eu poderia entendê-las como codificações inteligentes apenas para descodificação em épocas posteriores... mas não será bem assim.
Há muitas resoluções atabalhoadas, muitas pontas soltas, e o esforço de tapar uma ponta destapa outra. Podemos iludir uma criança, dizendo que errámos de propósito, e procurar explicar que esse erro serviria afinal uma lição... mas já será mais difícil enganar um adulto!

O terramoto e maremoto de 1531 foram praticamente suprimidos do conhecimento popular e académico durante o Séc. XIX (ver por exemplo "The 1531 Lisbon earthquake and tsunami", J. Miranda et al.), e só se voltaram a encontrar registos em 1909... ou seja, no ano de publicação da Planta de Lisboa, algo que desmascarava por completo a farsa do Marquês, afinal uma "revolução cultural" tão laboriosamente construída durante o século anterior. Como se sabe 1909 é também o ano que antecede a implantação da República em 1910... e passamos aí a nova lavagem de memória, ordenando-se a repetição do esquecimento do Terramoto de 1531.

Portanto, nunca vemos vontade de revelar coisas, muito pelo contrário, mesmo as muitas revelações mostradas são quase sempre como ousadia e despeito contra a credulidade popular. Parecem mais servir o propósito de evidenciar a imaturidade popular, servindo talvez isso como desculpa a mandantes adolescentes para a necessidade do seu domínio sobre uma massa populacional que vêm como infantil.
Não se trata apenas de exibicionismo da puberdade, o que move quem assim se move é o medo... mas sobre isso falaremos depois.