Conforme referi no texto anterior, transcrevo a cópia da carta escrita por D. Sebastião a João de Mendonça, em 1576, onde explica claramente a sua preocupação com a presença turca no Reino de Fez (Marrocos), e o que essa ameaça poderia significar primeiro para as fortalezas portuguesas, e depois, através de Ceuta, como porta de entrada turca na Península Ibérica, considerando ainda que em Portugal e Espanha residia (... à época) "a maior e a melhor" potência da Cristandade.
Claro que mesmo tudo isto não justificaria a deslocação pessoal do Rei à "mouraria", e nota-se aqui a junção de mais um pretexto de cavaleiro para encontrar a batalha. Enquanto do lado do seu tio Filipe II, vemos os pretextos de diplomata para a evitar.
No entanto, essa tinha sido a tradição da dinastia de Avis, começada em Ceuta.
No romance do vencedores, não houve censura à aventura de Ceuta, do Rei D. João I, levando os seus três filhos primogénitos. Afinal, foi vitoriosa.
Mesmo terminando mal o episódio de Tanger, com a morte em cativeiro do Infante D. Fernando, a decisão do Infante D. Henrique, de trocar o seu lugar de prisioneiro com o seu irmão, não manchou a sua imagem. Para escusar de si a condenação fraterna, o irmão passou a mártir da fé, a Infante Santo. Afinal, Henrique estava do lado vencedor do romance histórico.
Esse romance para os seus fins não olha a meios e esquece os princípios.
Da mesma forma, Afonso V nas suas aventuras africanas, acompanhando-se nelas do único príncipe sucessor, D. João II, não vemos ninguém criticar o perigo de sucessão. Afonso V foi vencedor.
Com D. Manuel já foi diferente e ninguém viu o "César Manuel" em nenhuma batalha. Em seu nome teve Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, etc. Igual atitude prudente tomou D. João III, que aliás perdeu algumas das praças marroquinas, como seja a emblemática Arzila.
Por isso, D. Sebastião, indo pessoalmente à Jornada de África, sem cuidar dos sucessores, estava a terminar a aventura africana de forma semelhante como D. João I tinha feito, e especialmente D. Afonso V. Não igualou o Infante D. Henrique na expedição a Tanger, que se salvou condenando o irmão. Poderá ter sido esse "espírito vitorioso", de troca de vencidos por vencedores, que determinou quem contou a história. Ficar mal contada... foi um detalhe que se resolveu depois, e fora disso ficaram-nos as Larachas (cidade), os Loucos (rio), e os Malucos (Mulei).
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Cópia da carta original d'el Rey D. Sebastião
a João de Mendonça sobre a Jornada de África.
Por cartas de D. Duarte de Menezes, meu capitão em Tanger soube como Muley Moluc tio do Xarife entrara em Fez e com 8 ou 9 mil turcos (que de Argel trouxera consigo por ordem e mandado turco), e com muitos mouros que com ele se juntaram, desbarataram o Xarife, o qual se retirara a Marrocos. E Muley Moluc fora pacificamente recebido por Rey e Senhor de Fez.
E por estas novas serem da qualidade e importância que vedes e podeis considerar, me pareceu fazer-vos-las logo a saber. Confiando de vós e de vossa prudência, fareis nelas aqueles discursos que convém, assim para o que eu devo acerca disto ao presente mandar fazer, como já me prevenir, e ordenar, para o que ao diante pode suceder. E que é razão e sigo que se cuide, e espere de inimigos tão vizinhos aos meus lugares, e tão poderosos e de tanta indústria, e experiência nas coisas de guerra, como são os Turcos, mormente considerando da vinda deles a Fez. Não é somente para dar a posse daquele Reino ao tio do Xarife, mas principalmente com o fundamento de o fazerem tributário e vassalo do Turco, e o Turco se fazer Senhor de toda África, e de todos os portos de mar dela, tendo em cada uma delas muitas galés que lhes será fácil de pôr em efeito. Assim, pela natureza da mesma terra, como por seu grande poder, que quando assim acontecesse, o que Deus não permita, visto é quantos males sem remédio
poderiam recrescer a toda espanha, que da Cristandade se pode dizer que é hoje a melhor e maior parte, e com este intento queria que não somente cuidareis nesta matéria e a discorrereis para me nela dardes parecer e conselho no que farei e devo fazer, nas novas e acidentes presentes, mas ainda naquele que em tão propícia potência estarão de poder ao diante acontecer. E também quero que saibais o que agora ordenei de logo, que é mandar prosseguir a fortificação naqueles meus lugares, e provê-los de mantimentos e munições, e reforçar, e apressar minhas armadas, e aperceber gente em algumas comarcas do Reino.
Mas tudo isto não descansa, nem deve tirar, nem aliviar este cuidado, que obriga a começar a aperceber de logo para tudo o que pode suceder. E eu espero na misericórdia de Nº Srº, que receberemos dele, quando assim de nossa parte nos dispusermos, tamanhas e tão grande vitórias, que receba de nós os serviços, que lhe eu muito desejo fazer, não somente na defesa de sua fé, mas também da ampliação dela. E muito vos encomendo que me respondais logo a esta carta, e por certo tenho que será tal a resposta como de vós espero e confio, e do mais que suceder terei lembrança de vos avisar.
Escrita em Setuval, a 24 de Abril de 1576
Rey