quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Detalhes do Livro de Marinharia (2) - Estreito dos Franceses

O primeiro mapa que aparece no Livro de Marinharia é o da Terra Nova e Labrador.

A descoberta do Canadá, apesar de não parecer tão caricata quanto o restante, tem igualmente vários aspectos interessantes.
Que os vikings ou normandos podem ter aí chegado no Séc. X, pois isso foi uma tese do Séc. XIX, que não causou suficiente mossa à versão colombina. Colombo permaneceu celebrado como o primeiro a ir, regressar, e dar conta do seu feito.

Já é mais estranho que a expedição de Caboto em 1497 tenha basicamente sido negligenciada, em favor da suposta descoberta desta parte da América por Jacques Cartier em 1534. Esquecemos aqui as visitas portuguesas, bem documentadas, dos Corte-Real, em 1500, pois também estas foram negligenciadas.

Qual a razão para os ingleses terem ficado de fora do processo, se chegaram ali primeiro que os franceses?
Uma razão plausível prende-se com datas. O ano de 1534 é também o ano em que Henrique VIII decide assumir-se como máximo representante da Igreja em Inglaterra, suplantando o domínio papal de Roma. No ano anterior já tinha sido excomungado pelo papa, e portanto a Inglaterra não teria a benção papal para aventuras. Talvez como contraponto, tenha sido oferecida essa possibilidade à França, que rapidamente promoveu a expedição de Cartier.

Cartier é assim celebrado no Canadá como o seu primeiro colonizador, ou mesmo explorador, e nesse sentido é algo inconveniente o papel dos portugueses na descoberta da Terra Nova e Labrador, apesar desses nomes terem permanecido intocáveis até hoje. 
Não apenas esses, muitos nomes ficaram, quase sem alteração.

Os portugueses estavam aqui numa posição complicada, porque o território estava fora do hemisfério português, mas teriam ali deixado para trás muita gente, e por isso aparecia muitas vezes colocado dentro desse hemisfério, e com a bandeira ou coroa portuguesa.

No mapa de João de Lisboa, parece ser assumido que os franceses iriam ficar com aquela parte, e portanto qualquer datação que conte com os acrescentos, terá de ser posterior a 1534. 

Coloco aqui uma comparação, que poderá parecer algo confusa, mas que é perfeitamente clara na relação directa entre o contorno actual e o que está explícito na carta de João de Lisboa, bem como na carta Pedro Reinel a fez (datada de 1504), que não é muito diferente do mapa de Cantino.

Parte sul da Terra Nova
Começando pelo ponto mais acima, temos a Ilha dos Bacalhaus, que ainda hoje se chama Baccalieu Island. Seria provavelmente um dos pontos de seca dos bacalhaus pescados ao largo da costa, e o nome indica já por si que se tratava de uma prática ancestral. Esse nome está no mapa de Pedro Reinel, numa altura em que Cartier era apenas uma criança com 13 anos. Tal como estão outros nomes, e já deixei aqui uma lista, sendo a respectiva comparação imediata:


Os nomes que ficaram até hoje (para além de Portugal Cove) e que não oferecem grandes dúvidas são os seguintes:

  • Ilha dos Bacalhaus - Baccalieu Island
  • Baía da Conceição - Conception Bay
  • Cabo de São João - St. Johns (cidade)
  • Rio Formoso - Fermeuse (cidade)
  • Cabo Raso - Cape Race
Parte norte da Terra Nova e sul do Labrador
Aqui as relações são menos imediatas, especialmente com a costa do Labrador, mas mesmo assim, pode-se estabelecer com algum grau de confiança estas correspondências:


Aqui o número de nomes que manteve o nome, baixa consideravelmente, e não encontrei nenhum nome que permaneça na parte do Labrador. 
Na parte norte da Terra Nova, mantêm-se os seguintes nomes:
  • Bela Ilha - Belle Isle
  • Ilha do Fogo - Fogo Island
  • Cabo de Boavista - Bonavista Cape


Terra Nova e Labrador
O mapa de Pedro Reinel é mais difícil de perceber, mas como João de Lisboa acaba por usar os mesmos centros de compasso, para desenhar a costa, espelhamos aqui o que poderá ser entendido no mapa de João de Lisboa.


A parte correspondente às linhas "amarelas" ou "vermelhas", é praticamente certa, e está também no mapa de Pedro Reinel. Já será alguma especulação associar as ligações mais acima, onde fiz uma possível conexão com linhas azuis. 
Não é claro que vá tão longe até à ponta norte do Labrador, mas parece-me que sim, segue essa possível análise:

Portanto, é completamente claro que a cartografia da Terra Nova e do Labrador estava já presente no mapa de Pedro Reinel, e depois com mais pormenor no mapa de João de Lisboa.

Aquilo que João de Lisboa assinala como o "Estreito dos Franceses" deve ser visto quase como uma piada, já que os portugueses tinham feito por completo a exploração dessa grande entrada de água, tendo como objectivo a Passagem Noroeste. 

Assim, quando Duarte Pacheco Pereira fala da Latitude 70ºN, como limite norte da possessão de D. Manuel, estamos já em paragens da Ilha de Baffin (descoberta 100 anos depois por Baffin), muito acima dos 60ºN (que julgo estarem ali desenhados).

É claro que, para além de todas as anotações correctas, aparecem também em João de Lisboa, as "ilhas fantasma", e aqui o mapa apresenta uma série delas, algumas já presentes no mapa de Pedro Reinel. Ainda não consigo distinguir em todos casos quando se trata de uma ilha real ou ficcionada, excepto pela comparação com os mapas actuais.

Para benefício da história ficcionada que ingleses e franceses quiseram fazer das suas explorações, as explorações e mapas portugueses não convém que apareçam, pois só estragavam essa narrativa.

Tal como o Canadá teve o seu nome derivado de alguma expressão portuguesa relacionada com canada ou com canado (ver postal anterior), também poderá reportar-se a uma tribo muito concreta, vivendo muito próximo da actual cidade do Quebéc. E da mesma forma será natural que os Hochelagas resultassem de uma expressão simples como "oxalá", e os Iroquois resultassem... pois não vale a pena continuar.

Interessa que sempre que revisito esta temática, lembro as centenas de homens, navegadores intrépidos, que viram as suas proezas e os seus sacrifícios, completamente apagados por uma história mesquinha, cheia de interesses, normalmente de gente medíocre e profundamente ignorante.


7 comentários:

  1. Caro Alvor,

    Para lhe dizer a verdade, nunca acreditei muito na teoria do “Oxalá” ligado a “Hochelaga”, e por essa razão, decidi explorar uma teoria diferente, que vai contra uma eventual "deturpação" da palavra “Oxalá” para “Hochelaga”, teorizando antes, uma eventual tradução de um avistamento local para uma “Italinianização” do termo.

    LÓGICA:
    Porto muito que tente "forçar" uma ligação de “Hochelaga” a “Oxalá”, não vejo logica nessa interpretação.
    Oxalá o quê?
    Porque razão dar o nome de Oxalá a essa região?

    INFLUÊNCIA “ITALIANA” NOS DESCOBRIMENTOS:
    A maioria das cópias dos mapas Portugueses que nos chegaram aos dias de hoje, são de escolas de origem Latina, Franca e Germânica.
    Muitos dos primeiros exploradores, na costa Africana, ao serviço de Portugal, eram de origem Genovesa ou Veneziana.
    É geralmente aceite que à “época” dos descobrimentos, todas as embaixadas em território nacional, eram também centros de troca de informação através da espionagem.

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  2. GEOGRAFIA:
    Hochelaga, localiza-se aproximadamente à entrada do 1º grande lago, a montante do rio São Lourenço.
    Como tal, a sua localização encontra-se na rota de várias espécies de aves migratórias.

    “DESCODIFICAÇÃO” DO TERMO HOCHELAGA
    Comecei pela separação de silabas, HO CHE LA GA e reagrupamento em palavras compostas por varias sílabas, HOCHE LAGA.
    HOCHE significa GANSO em Italiano.
    LAGA pode ser o feminino de LAGO, resultante de uma tradução errónea que passarei a explicar de seguida.

    A PREMISSA DA OBSERVAÇÃO:
    É comum a toponímia, “real” dos Portugueses, identificar locais pelo nome de Santos, Reis, ou como avisos.
    Ex. São Lourenço, Terras del Rey de Portugal, Cabo Raso, Ilha dos Bretões (Galegos), etc.
    Por esse motivo, é fácil identificar o que foi primeiramente avistado por Portugueses, nos mapas da escola de Dieppe ou nas composições dos mapas de Ortelius em Latim/Germânico.
    No entanto, esse nomear locais pelo que encontram ou como avisos a posteriores navegações é algo que se origina no método de exploração Henriquina.
    Falo também, por exemplo, da “norma” de povoar com cabras e bodes, ilhas com ausência de subsistência suficiente para a abertura de um entreposto autossustentável.
    Isto ocorreu pelas ilhas “Exteriores” (Açores), “Afortunadas” (Madeiras e de Cabo Verde) e nas “Ante Ilhas” (arco de Ilhas começando nas Barbudas até às [a]Negadas).
    Ao passarem por ilhas desertas ou de recursos alimentares limitados, estas eram povoadas com cabras e bodes, para que em posteriores passagens os marinheiros pudessem obter carne, sem nunca eliminar por completo o stock disponível.
    Assim, para um explorador, que após percorrer o canal do Rio São Lourenço com milhares de ilhas e entrar num grande Mar interior, “de água doce”, com milhares de Gansos, “no verão”, faria todo o sentido nomeá-lo de Lago dos Gansos, fosse ele Português ou “Francês”.
    Escrevendo por outras palavras, o lugar de Hochelaga, teria logicamente, mais probabilidade de ser chamado de “Lago dos Gansos” (Hoche Lago) que de “Oxalá”, tanto pelos locais como pelos exploradores europeus.

    ESCLARECIMENTO:
    A questão final que resta é, porque então passou Lago dos Gansos a Hochelaga ou “Hochelago” como visível em alguns mapas?
    O que é óbvio nesta ideia, é que há uma forte influência Italiana na divulgação do nome, seja ela tanto por ter origem em exploradores Italianos ao serviço de Portugal, ou exploradores Italianos ao serviço dos “Ingreses” como Giovanni Caboto, mas nunca por iniciativa dos Francos.
    Olhando para o percurso da viagem de Giovanni Caboto por exemplo, é quase inimaginável pensar (ignorando se foi primeiro ou segundo ou terceiro a passar naquelas terras) que tivesse chegado ao Cabo dos Bretões e não tivesse tido curiosidade de explorar 1 semana rio adentro, isto quando comparamos a viagem de Cadamosto pelo Rio Senegal adentro, quase 50 anos antes.

    CONCLUSÃO:
    Esta teoria não credita apenas uma nomenclatura de um país ou nação “n” Europeu para um primeiro avistamento, trata-se de uma hipótese que é também extensível a que o nome se resuma a uma tradução de um nome indígena para o local, que após comunicação entre europeus e indígenas foi traduzida para Italiano.

    Cumprimentos,
    Djorge

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    1. Caro Djorge, não encontrei a tradução de "hoche" em italiano, mas percebi que sendo ganso no singular "oca", no plural é "oche". Não sei como se passava antes, mas agora não se lê "oche" porque o "ch" tem valor de "q".
      De resto, como é claro, isto não invalida o argumento apresentado, que é pertinente.
      Convém ainda notar que em Itália havia múltiplos dialectos, que começaram só a ir desaparecendo com a publicação de obras em linguagem vulgar e não em latim.
      Diz-se até que o italiano foi estabilizado com a publicação da Divina Comédia por Dante, tendo ficado mais ou menos assente que seria o dialecto da Toscânia que serviria para definir a língua padrão italiana.
      De qualquer forma, a associação de Hochelaga a Oxalá é apenas simples e mais ou menos directa. Como a própria palavra Oxalá, até se poderia assumir remeter a uma origem árabe enquanto "in sha Alá".
      Abraço.

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    2. Caro Djorge, desenvolva lá isso dos Portugueses nas Bermudas e nas Ante-Íhas, se faz favor.

      Estou interessadíssimo.

      IRF

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  3. Uau, espetáculo. Muito Bom.
    Não tinha ainda visto isto. Obrigado.

    Continue. O Estado devia pagar-lhe uma dezena de milhares de euros por mês para fazer o que tem feito de graça.

    Muito obrigado.
    Ponha isto tudo em PDF e faça um livro porque a internet qualquer dia come-lhe isto tudo...

    IRF

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    1. Obrigado.
      Quanto aos PDF, pois clique em cima em "Volumes em PDF", ou seja:

      https://alvor-silves.blogspot.com/p/pdfs.html

      Não objectando, incluirei este ano aí os posts vindos de comentários seus.

      Abraço,
      da Maia

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    2. Claro que não objecto, é uma honra!

      Já tinha conhecimento dos seus PDFs.
      Li os 3 ou 4 primeiros (mais de mil páginas!) antes de comentar aqui.

      Deixei de o fazer porque era uma monumental perda de tempo. Isto não é bem lazer, mas toma depressa conta de todo o tempo de lazer... (e algum de trabalho!).

      Não os vou ler (por agora) porque é um luxo a que não me posso dar.

      Mas incito-o a quando tiver tempo fazer um grande apanhado.
      A fazer uma "edição vintage delux" ou lá qual é o tema da moda...

      Força!
      IRF

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