sábado, 24 de novembro de 2018

Cortes de Portugal em cortes

No livro "The ancient and present State of Portugal" (1706), de John Stevens, encontramos uma disposição dos lugares nas cortes portuguesas.
É uma "fotografia" das cortes que antecede o tempo em que se iria instalar o absolutismo de D. João V, e que nos permite ver o peso que a representação das diversas vilas e cidades tomava no conselho. Veremos ainda quase a mesma disposição num livro de João Batista de Castro, publicado uns anos mais tarde. Acaba por ser extremamente curioso ver a importância tida por certas vilas, que acabaram por definhar na sua evolução, sendo hoje praticamente esquecidas.

A questão toma ainda outro significado se entendermos que no Séc. XVIII também não faria muito sentido incluir aqueles lugares pela sua importância à época. Mais, mesmo durante os tempos mais remotos da nossa monarquia, na 1ª Dinastia, ainda dificilmente faria sentido incluir aqueles lugares e não outros. Além disso, não se nota propriamente nenhuma distinção entre a vilas algarvias, sendo Tavira e Silves colocadas no segundo banco, Lagos e Faro no terceiro, Loulé no 9º e Castro Marim no 13º. No entanto, essas vilas só entraram no reino após a conquista algarvia de D. Afonso III. A própria inclusão de Vila Real, sugere que poderá ter havido uma reorganização levada a cabo por D. Dinis.

Estes cortes ou recortes do território nacional, representados nas vilas pelos representantes, formaram um tipo de parlamento singular, chamado cortes. Este parlamento estava desligado do conceito de corte, que resumia uma parte de nobreza residente em Lisboa, frequentadora do paço real.
Era aqui dada uma elevada importância aos conselhos locais, que depois foram deturpados em escrita diferente como concelhos. Mesmo no assento dos diversos elementos, tirando algum destaque dado aos duques, os marqueses e condes ficavam na mesma parte da sala que os representantes das vilas, apenas um degrau acima. Não havia propriamente uma grande diferença representativa face à dimensão da cidade ou vila, permitindo um espelhar do território que seria especialmente conveniente ao rei, pelo corte efectuado na proporcionalidade.

Parece ficar assente nestes assentos que poderá ter havido um legado, vindo de uma tradição nacional ainda mais antiga, remontando ao tempo da presença sueva, ou ainda mesmo antes da presença romana, se quisermos pensar numa monarquia lusitana não fabulosa. A reunião dos diversos líderes locais poderia dar-se em assembleias deste tipo, a que foi depois inserido todo o aparato da presença real até 7 degraus acima da plebe. Para além dos cortes territoriais, passaram a estar presentes os cortes sociais, que definiram o formato dessas novas cortes.

Mapa dos lugares nas cortes, segundo o livro de John Stevens (1706)


Trono
1. Rei - cátedra estatal, onde o rei se sentava com o ceptro na mão.

Degrau 6
2. Camareiro mor, atrás do rei (lord chamberlain).
3. O grande selo real, em cima de uma almofada.

Degrau 5
4. Escrivão da Puridade, secretário do rei, que guarda o grande selo.

Degrau 4
5. Guarda mor, responsável pela segurança do rei, em pé.
6. Mordomo mor (lord high steward), em pé.
7. Condestável (antes Alferes mor), com a espada erguida.
8. Meirinho mor (ou Alguazil).
9. Prelado, responsável pelo discurso inicial, senta-se depois junto dos outros prelados.

Degrau 3
10. Duques, sentados em bancos sem costas, com almofadas de veludo.
11. Regedor da Casa da Suplicação, presidente do conselho real.
12. Chanceler mor, chefe de governo.
13. Veedores, superintendentes da fazenda.
14. Desembargadores do Paço.
15. Chanceler mor da Suplicação.

Degrau 2
16. Desembargadores dos agravos.
17. Corregedores da corte.
18. Oidores, juízes do conselho real.

Degrau 1
19. Outros advogados do conselho real.

20. Marqueses, sentados em bancos sem costas, com almofadas de veludo pretas.
21. Condes.
22. Pessoas do conselho, em ambos os lados.
23. Donatários, nobres fidalgos, senhores, com domínio absoluto sobre as suas terras.
24. Alcaides, governadores de cidades ou vilas.
25. Bispos e prelados.

Degrau 0
26. Arautos reais, ou reis de armas.
27. Porteiros, ou sargentos de armas, com as suas maças, de pé.

- Representação das cidades e vilas (um ou dois lugares):

28: Lisboa. 29: Évora. 30: Porto. 31. Coimbra. 32. Santarém.
33. Braga. 34. Viseu. 35: Guarda. 36: Tavira. 37: Lamego. 38: Silves. 39: Elvas.
40: Beja. 41: Leiria. 42: Faro. 43: Lagos. 44: Guimarães. 45: Estremoz. 46: Olivença.
47: Montemor o Novo. 48: Tomar. 49: Bragança.
50: Portalegre. 51: Covilhã. 52: Setúbal. 53: Miranda.
54: Vila Real. 55: Viana de Lima (Viana do Castelo). 56. Ponte de Lima. 57. Moura.
58. Montemor o Velho. 59: Alenquer. 60: Torres Novas. 61: Sintra.
62: Óbidos. 63: Alcácer do Sal. 64: Almada.
65: Torres Vedras. 66: Nisa. 67: Castelo Branco. 68: Aveiro.
69: Serpa. 70: Mourão. 71: Vila do Conde. 72: Trancoso.
73: Pinhel. 74: Arronches. 75: Avis. 76: Abrantes. 77:  Loulé.
78: Valença. 79: Freixo de Espada à Cinta. 80: Alter do Chão. 81: Monção. 82: Alegrete.
83: Penamacor. 84: Castelo de Vide. 85: Castelo Rodrigo. 86: Marvão. 87: Sertão.
88: Monforte. 89: Fronteira. 90: Crato. 91: Veiros. 92: Campo Maior.
93: Castro Marim. 94: Torre de Moncorvo. 95: Caminha. 96: Palmela. 97: Cabeço de Vide.
98: Monsanto. 99: Coruche. 100: Barcelos.
101: Garvão. 102: Panóias. 103: Ourém.
104: Albufeira. 105: Ourique. 106: Arraiolos. 107. Borba. 108: Portel.
109: Vila Viçosa. 110: Monsaraz. 111: Atouguia. 112: Penela. 113: Santiago do Cacém.
114: Vila Nova de Cerveira. 115: Viana de Évora.
116: Porto de Mós. 117: Pombal. 118: Alvito. 119: Mértola.


No "Mapa de Portugal Antigo e Moderno", João Bautista de Castro faz assim a descrição:
As cortes de Portugal correspondem às assembleias de França, dietas de Alemanha, e parlamentos de Inglaterra. Compõem-se dos três estados do reino, eclesiástico, nobreza, e povo, aos quaes costuma el rei convocar para as determinações públicas, e de grandes interesses. Juntam-se as pessoas dos três estados em uma sala ricamente adornada: na cabeceira d’ella se levanta um estrado de seis degraus com a elevação de sete palmos, que é para o trono d'el rei: na parte inferior arrimados à parede se põem bancos, e pelo corpo da sala, para se sentarem os chamados, que são os títulos, prelados, senhores de terras, e procuradores das cidades e vilas.
Principia este acto com a assistência d'el rei, o qual costuma vir com opa rossagante de brocado, e ceptro de ouro na mão. Vem diante dele o condestável do reino com o estoque levantado, e mais adiante o alferes mór com a bandeira real enrolada, precedendo os reis de armas, arautos, e passavantes vestidos em cotas, onde se vê bordado o escudo do reino. A estes antecedem os porteiros com maças de prata; e, se o acto é de juramento de algum príncipe, precedem a tudo os atabales, e clarins. Chegando el rei à cadeira, se acomodam todos nos seus assentos determinados. 
Bancos   (Preferência dos procuradores das cidades , e vilas do reino, que têm assento em acto de cortes)
1: Porto, Évora, Lisboa, Coimbra, Santarém, Elvas.
2: Tavira, Guarda, Viseu, Braga, Lamego, Silves.
3: Lagos, Faro, Leiria, Beja, Guimarães, Estremoz, Olivença.
4: Portalegre, Bragança, Tomar, Montemor o Novo, Covilhã, Setúbal, Miranda.
5: Ponte de Lima, Viana Foz de Lima, Vila Real, Moura, Montemor o Velho.
6: Sintra, Torres Novas, Alenquer, Óbidos, Alcácer do Sal, Almada.
7: Nisa, Torres Vedras, Castelo Branco, Aveiro.
8: Mourão, Serpa, Vila do Conde, Trancoso.
9: Avis, Arronches, Pinhel, Abrantes, Loulé.
10: Alter do Chão, Freixo de Espada à Cinta, Valença, Monção, Alegrete,
11: Castelo Rodrigo, Castelo de Vide, Penamacor, Marvão, Sertã.
12: Crato, Fronteira, Monforte, Veiros, Campo Maior.
13: Caminha, Torre de Moncorvo, Castro Marinho, Palmela, Cabeço de Vide.
14: Barcelos, Coruche, Monsanto, Garvão, Panoias, Ourém.
15: Arraiolos, Ourique, Albufeira, Borba, Portel.
16: Atouguia, Monsaraz, Vila Viçosa, Penela, Santiago de Cacém.
17: Viana junto de Évora, Vila Nova de Cerveira, Porto de Mós, Pombal.
18: Alvito, Mértola. 
Nota adicional (25.11.2018):
A descrição de John Stevens é completamente importada da "Epítome de las Historias Portuguesas" de Manuel de Faria e Sousa (1590-1649), na Quinta Parte, Capítulo II, pág. ix.

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