sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A braça e a brasa, abraça e abrasa (1)

Inicio aqui uma digressão sobre um livro de brasões de vilas e cidades, 

publicado em 3 volumes por Inácio Vilhena Barbosa em 1860. 

Irei comparar esses com os brasões actuais (cf. wikipedia), podendo reparar em semelhanças e diferenças... conforme ilustramos com os três primeiros exemplos: 
- Abrantes, Albufeira e Alcácer do Sal.

Antes disso, começo pela etimologia da palavra brasão, que segundo alguns poderia ter uma mesma origem indo-europeia do que a palavra "brasa"... e que estará também na origem do nome "Brasil". Do que li, a opinião maioritária não será esta.
No entanto, parece-me ser uma suficiente justificação a clara proximidade do nome. Sobretudo porque ainda hoje um ferro em brasa serve para identificar a casa do proprietário de gado.
Brasão pode até ter sido o nome do ferro que tinha a marca do proprietário, e de forma semelhante o brasão de armas passou a funcionar como identificação da casa senhorial. Esta coincidência é demasiado clara e óbvia, dispensando outras teorias, com menos sentido. No entanto, como há sempre mais a dizer... guardo para o fim.
Para já, apresentamos os três brasões, antigos e actuais:

Os brasões no livro de Vilhena Barbosa (1860), e os actuais (img: wikipedia).

ABRANTES
O brasão de Abrantes não mudou. Segundo a descrição de Vilhena Barbosa - "... tem por armas quatro flores de lis, e quatro corvos, com uma estrela no meio, em campo azul". 
Vilhena Barbosa refere que Abrantes é uma das vilas mais antigas de Portugal, atribuindo a sua fundação aos "galos celtas", ou seja, à migração que os celtas teriam feito de França para a Ibéria. Chega ao ponto de estabelecer a sua fundação precisamente no ano 308 a.C. Diz ainda que foi própera durante o tempo romano, onde era chamada Tubuci (ainda que esse nome também possa ser atribuído a Tancos). 
Segundo ele, o nome Abrantes deriva de designação Aurantes que os godos lhe teriam posto, devido ao muito ouro que aí se recolhia das areias do Tejo. Desse nome Aurantes teria havido corrupção para Avrantes e depois Abrantes. Acrescenta que no tempo de domínio árabe seria chamada Libia
A Câmara Municipal investe numa lenda local brejeira, para a origem do nome...
Vilhena Barbosa justifica o brasão com a vinda de um cruzado francês (flor-de-lis, azul) para a conquista de Lisboa aos mouros, e que com D. Afonso Henriques participou na recolha do corpo de S. Vicente (corvos). O rei teria-o colocado como alcaide-mor de Abrantes, e isto praticamente justifica o nexo do brasão escolhido. 

Vilhena Barbosa menciona aqui o episódio trágico-romântico de Guiomar Coutinho, uma rica herdeira, filha do Conde de Marialva, que se envolveu primeiro com o Marquês de Torres Novas, João de Alemcastro, filho de D. Jorge (e assim neto de D. João II), mas que depois se veio a casar com o infante D. Fernando, filho de D. Manuel, e Duque da Guarda. O episódio terminou com a morte dos dois filhos, do infante, seu marido, e dela própria, todos falecendo no ano de 1534. O drama de Camilo Castelo Branco - "O marquês de Torres Novas" aborda esta tragédia.

ALBUFEIRA
Situação oposta é a de Albufeira, em que o brasão mudou por completo. Segundo Vilhena Barbosa - "O seu brasão d'armas é uma vacca de oiro em campo azul." A página da Câmara Municipal não acrescenta razão para a mudança, mas confirma que a "vaca de oiro em campo azul" constava das ordenações filipinas, e simbolizava uma abundância de gado. Apresentam um brasão antigo com orientação para leste, diferente da orientação para oeste, usada por Vilhena Barbosa. Poderá haver alguma semelhança com o brasão de Atougia da Baleia, que já aqui foi mencionado.
Quanto à toponímia, Vilhena Barbosa diz que o nome de origem romana seria Balium, e com a invasão árabe passou a ser Al Buhar, significando "o mar" (dito "al-buhayra", para "pequeno mar"... digamos que bufar seria o mar, e bufeira seria a lagoa). Referia-se a uma grande lagoa de água que o mar enchia em tempestades, ou grandes marés, e que ficava ali aprisionada. Agora essa Albufeira desapareceu, ou digamos aparece naturalmente quando há cheias e inunda a cidade... Na região de Valencia em Espanha, também encontramos uma Albufera, referente a uma mesma lagoa retendo águas.

ALCÁCER DO SAL
Salacia, mulher de Neptuno.
O brasão de Alcácer do Sal inclui agora um castelo e cruzes de Santiago, mantendo o navio (em direcção oposta) já constante no livro de Vilhena Barbosa que diz - "Tem por brasão uma nau, e por timbre as armas reais". Segundo ele, a nau referia-se à armada de cruzados que ajudou D. Afonso Henriques na conquista da cidade. Conforme já fizémos aqui referência, o nível do mar era bastante mais alto, permitindo que Alcácer do Sal recebesse navios de grande porte no seu porto até ao Séc. XVIII. E também por isso é perfeitamente admissível que a conquista de Alcácer do Sal tivesse uma forte componente marítima, conforme já abordámos, para o caso da Batalha de Ourique.
Acerca do nome, Vilhena Barbosa refere Salacia ao tempo dos romanos, referindo-se à deusa, mulher de Neptuno que, para preservar a sua pureza tinha fugido do deus dos mares, escondendo-se no Oceano Atlântico. Conforme o próprio nome indicia, a ninfa Salacia refere o carácter salino da água do mar, e assim o Sal já era carácter notório da vila em tempo romano (segundo a Câmara Municipal, teria antes dos romanos o nome púnico de Bevipo).
Vilhena Barbosa acrescenta uma lenda interessante... de uma invasão vinda do norte de África, ao tempo do imperador Augusto, chefiada por um rei de nome Bogud. Este Bogud teria saído do sul da Lusitânia carregado de despojos, após ter destruído o templo a Salacia. Porém, um forte temporal fez naufragar os navios com a pilhagem, e fez perecer a maioria do seu exército. Isto foi entendido pela população como um castigo de vingança da deusa Salacia, sendo erguido novo templo ainda maior. Augusto aproveitou para declarar Salacia Imperatoria como município romano. Em tempo romano poderá ter ficado enorme, já que alguns autores reportam 10 Km, havendo vestígios de grandes edifícios. Do nome Alcácer é fácil de entender a sua origem árabe, pois comummente "alcazar" significa castelo. Vilhena Barbosa acrescenta que em 1217 deu-se a definitiva recuperação, após curta perda, com tropas lideradas por D. Soeiro, bispo de Lisboa, e as batalhas em redor, com auxílio de tropas árabes vindas de Badajoz, Jaen, Sevilha e Córdova, terão sido tão sangrentas, que foi chamado a um local "Vale da Matança".

_________________ 03/02/2018


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