sexta-feira, 28 de junho de 2019

Do Cavalo ao Cavaleiro e ao Cavalheiro

Não consta terem os homens tentado deslocar-se em cima de mamutes, nem em cima de leões, tigres, ou rinocerontes. Consta ainda que os primeiros cavalos eram pilecas pouco eficazes, parecidos com zebras, ou mesmo com burros.

 
Um cavalo primitivo desenhado numa parede da gruta de Niaux
Garrano no Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Os desenhos nas grutas francesas, de Lascaux ou Niaux, estão longe de exibir a elegância que vemos hoje aos cavalos modernos, porque os mais altos e robustos parecem ter resultado da primeira engenharia genética. Curiosamente é raro vermos cavalos primitivos nas grutas espanholas, onde o mais habitual serão os bois/touros. Quanto às grutas portuguesas, por enquanto estamos limitados a saber dos desenhos equestres do Vale do Côa.

Domesticação
A domesticação animal terá seguido as seguintes vertentes principais:
- Bovina. Que levou de selvagens auroques, ou similares zebus, a pacíficas vacas.
- Outra vertente bovina, que é caprina e ovina. Poderá resultar da cabra selvagem ou muflão.
- Suína. Que terá resultado dos javalis.
- Equina. Que sairá de zebras e garranos afins. 

Quanta paciência e quanto tempo terá demorado este processo de domesticação?
Será uma tarefa ocasional de poucas gerações, ou um processo prolongado de muitas gerações?
Colocados no meio de uma África selvagem, quantas espécies conseguiríamos domesticar de raiz, por exemplo, ao ponto de usar como cavalos os descendentes de um grupo de zebras?

Alguns estudos apontam que a domesticação bovina poderá ter começado com um grupo de auroques criados na Mesopotâmia, há 10 mil anos, dos quais foi traçada alguma ascendência genética, para todos os bovinos (bos taurus) actuais. Parece-me uma grande simplificação do problema, que tende a esquecer a inundação provocada pelo degelo seguinte à Idade do Gelo, ou seja, de forma simplificada, tende a esquecer o dilúvio e a arca de Noé.

Há ainda a questão da domesticação de canídeos e felinos, que terá sido diferente. Os lobos eram já gregários com hierarquia social, e a colocação do homem como lobo-alfa poderá ter facilitado o processo. Será o caso mais antigo de domesticação, remontando a 15 mil anos, na Europa (ver cão de Oberkassel). 
A domesticação de gatos terá sido inversa e não terá sido procurada pelo homem... o mais natural é que os próprios felinos tenham procurado no homem um parasitismo de subsistência, após a agricultura, devido à grande presença de roedores no armazenamento de cereais. Alguns leopardos são igualmente simpáticos para os homens (por exemplo, as chitas). 
Numa família, enquanto os cães identificam o dono, os gatos identificam o escravo - aquele a que permitem que lhe faça festas, etc. Os cães exibem um raciocínio directo masculino, de utilidade, enquanto que os gatos têm uma inteligência indirecta, tipicamente feminina, que visa mais o aproveitamento.

Houve outras domesticações, uma delas a aviária, nomeadamente de galos, de que já aqui falei, e creio que a sua origem é claramente da região indonésia, tendo sido trazida para Europa pelos celtas, gaulos da Gália, da Galícia, de Gales, da Galécia ou da Galácia. 

Do cavalo ao cavaleiro... e do porco ao porqueiro
Qual a diferença?
A diferença seria entre ter um cavalo ou ter um porco, não considerando a sua criação.
Tivesse sido o cavalo um animal destinado ao consumo da sua carne e não haveria provavelmente grande diferença entre uma coisa e a outra. 
No entanto, o cavalo passou a ser crucial no combate.
Cavaleiro passou a ser uma faceta da nobreza, enquanto o porqueiro uma faceta popular. Isto pelo menos até ao momento (fim do Séc. XX) em que alguns porqueiros ficaram mais capitalistas, na venda de carne de porco, do que os cavaleiros na preservação da tradição equestre. 
Com pequeno desvio, lembrança da tradição medieval da cavalaria, ficou-nos ainda o Cavalheiro.

A grande diferença é que quando o homem conseguiu domesticar o Cavalo ao ponto de meio de transporte, capaz de tornar a sua deslocação quase 10 vezes mais rápida, todo o enquadramento social teria que mudar.

Para mostrar que tal coisa nem sempre é fácil, bastam 8 segundos nos rodeos americanos, para ser colocado fora do dorso de um touro, ou de um cavalo (bronco). Portanto, será de prever que a criação de cavalos e equitação tenha sido fruto de imensa paciência e estabilidade. Houve a capacidade de conduzir cavalos, elefantes e camelos. Isto permitiu uma vantagem considerável ao proprietário de tal espécime.
Para colocar as coisas em perspectiva, suponhamos que queremos domesticar uma variante de urso, de tal forma que seja possível chegar ao ponto de o montar e conduzir nas suas capacidades guerreiras. Quanto tempo demoraria esse projecto, supondo ser realizável? Que se saiba não houve grande sucesso na domesticação de ursos, mas sendo tão comuns nas florestas europeias, certamente que foi tentado.

De forma notável, e mostrando algum contacto e comércio global primitivo, o mesmo tipo de animais que foi domesticado numa parte do mundo foi semelhante ao que foi domesticado na restante, com possível excepção na domesticação de cobras (um assunto algo submerso). 
Note-se que há um foco que aponta origem de domesticação de bovinos, suínos, caprinos e ovinos, para uma zona central Euro-asiática, entre 10 e 8 mil a.C. o que coincidirá com uma provável inundação de toda a orla marítima pelo menos até 300 metros de profundidade, e que terá atingido áreas hoje com 200 metros acima do nível do mar. Os sobreviventes desta inundação seriam residuais de uma fictícia arca de Noé.

O cavaleiro
A presença de cavaleiros em figuras rupestres é rara, mas foi encontrada em Bhimbetka, na Índia, com uma datação até 2000 a. C. A presença de cavalos em batalha é atestada desde o confronto com os Povos do Mar, e em particular o uso de carros puxados por cavalos, em combate, está presente nas inscrições relativas à Batalha de Kadesh, entre egípcios e hititas.
A figuração de cavaleiros montados, que requer uma técnica equestre mais cuidada, aparece posteriormente, como por exemplo neste friso assírio (onde quem dispara o arco, não é quem conduz o cavalo - sugerindo o uso de parelhas de cavalos).
 Friso assírio (séc. VIII a.C.) mostrando o uso de cavalaria.

O registo mais comum era quase sempre o de tropas apeadas, e mesmo na Grécia, até que as tropas macedónias ganharam protagonismo, com Filipe e Alexandre Magno, era raro saber-se de tropas montadas.
Aliás, a esse propósito recordamos o texto de Calisto Barbuda,

onde se elabora sobre a hipótese de na Ibéria ter aparecido a técnica equestre:
"Em nenhum outro local existem evidências da existência de cavalos montados há tanto tempo. Embora noutras paragens, como na Grécia ou no Egipto, também já se utilizasse o cavalo na guerra, essa utilização era sempre feita como animal de tiro, puxando os carros de combate. Isto permite-nos colocar a hipótese da origem ibérica da própria equitação. A confirmar-se, o cavalo Peninsular seria, então, o primeiro cavalo de sela conhecido."
De facto é remetida uma certa fama existente entre gregos e romanos de que os cavaleiros e a cavalaria ibérica seria particularmente apta no combate, tal como aconteceu com a cavalaria numida (de origem maura-africana que é posterior).

Equites
O nome equites refere à classe patrícia romana, cuja principal característica era a posse de cavalo, e que em termos hierárquicos apenas estaria abaixo da classe senatorial de Roma, que era eleita de entre os seus membros. 
A equidade entre os seus membros era a "egualdade", no sentido em todos seriam "eguais", possuindo "éguas", ou cavalos. Portanto, falamos de uma igualdade elitista, tal como depois foi entendida no quadro da cavalaria, quando se referia ao carácter supostamente equalitário dos cavaleiros da Távola Redonda. Seria o carácter de igualdade entre pares, entre cavalheiros, entre cavaleiros.

O código de conduta exigido aos cavaleiros, especialmente durante a Idade Média, tornou que uma característica lendária associada ao cavaleiro, seria ser também um cavalheiro... algo que foi mais desenvolvido no imaginário quando os cavalos perderam a sua importância, já no Séc. XIX.

Cavalos em Tróia
Há alguns heróis trazidos por Homero no enquadramento da Guerra de Tróia, mas não seria propriamente uma característica fulcral dos aqueus, primevos gregos. Se Aquiles teria arrastado o corpo de Heitor, este é puxado por uma quadriga nas representações muito posteriores, que ilustram esse episódio:
Ilustração de vaso posterior (Séc. VI a. C.), mostrando Aquiles numa quadriga a arrastar o corpo de Heitor.

Até essa altura os heróis gregos não são propriamente conhecidos enquanto cavaleiros. 
O episódio do cavalo de Tróia é muito provavelmente ilustrativo de que os gregos podem ter aprendido em Tróia a arte do combate montado, que seria muito mais uma arte troiana do que grega. Essa poderia ter sido uma vantagem que Tróia manteve até ao momento em que a força grega aproveitou a presença de cavalos, domesticados na redondeza, em seu proveito... ou seja, através de Ulisses, teria sido mesmo desenvolvida uma cavalaria grega capaz de ali competir com a troiana. Isto poderia então ter dado origem ao mito do Cavalo de Tróia.

O uso de cavalos cada vez mais seleccionados e apurados para o confronto militar poderá ter tido origem nessa transição entre a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. Convém lembrar que os mitos gregos sobre os centauros podem ter justamente origem numa estilização de tribos de cavaleiros violentos que amedrontavam as primitivas tribos gregas.

Se o nome "centauro" sugere mais uma relação com o touro, com efeito para além do Minotauro (cabeça de touro, corpo humano), o mito associado a Aqueloo, deus dos rios, apresenta-o com cabeça humana e corpo taurino (em oposição ao Minotauro). É particularmente representado em Gela (ou Celas), em muitas moedas sicilianas
Moeda siciliana de Gela (Celas), ilustrando um cavaleiro, e na outra face, Aqueloo, deus dos rios.

Rapariga conduz uma vaca.



Também nestes casos se poderá colocar a possibilidade da figura de Aqueloo corresponder a uma eventual figuração de outras tentativas de conduzir animais... neste caso de gado bovino, o que é possível de ser conseguido, com paciência, conforme é mostrado na imagem ao lado (com ligação ao vídeo incluída).
Ou seja, tal como no caso dos cavalos, também no caso do gado bovino, nem todos os animais reagem violentamente à presença de um peso incómodo no dorso. A condução bovina parece ter ainda um lado perfeitamente acessível.


Interessa especialmente notar que, mesmo no caso de tropa de combate, o uso de cavalos estava praticamente reservado à nobreza e fidalguia, deixando situações de desvantagem por mero preconceito social. Só já depois do Séc. XVII é que começou a ser popular a instrução de tropas com uma parte de cavalaria plebeia - por exemplo, o caso dos regimentos de dragões.
Com efeito só com a popularização do coche, inicialmente muito reservado à nobreza, especialmente a partir do Séc. XVIII, é que os cavalos começam a ser usados como um transporte mais normal e não apenas propriedade distintiva de uma classe abastada. Quando chegamos ao Séc. XIX já teremos colonos ou comerciantes vulgares como felizes proprietários de cavalos, e não de meras pilecas para trabalho pesado.

A imagem do cowboy viajante pelas paisagens do Oeste americano é o último símbolo de liberdade (e perigo) que seria encontrado pelos colonos exploradores daquelas paisagens. O cavalo em breve seria substituído pelo automóvel, quando a sociedade conseguiu enquadrar a mobilidade humana com naturalidade. Nunca antes o homem teria sido movido pelo desejo de passear, sem um qualquer propósito de utilidade subjacente.
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29.06.2019

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Moedas (3) moedas portuguesas

Continuando o assunto de "moedas ibéricas"  interrompido há dois meses atrás... e ao invés de regressar às moedas anteriores à administração romana, vou aqui colocar algumas moedas da monarquia portuguesa, de D. Afonso Henriques a D. Sebastião. 

Serve especialmente para notar que só houve uma grande diferença qualitativa com D. João III.
Antes disso, a cunhagem das moedas era tosca, e mesmo no período dos descobrimentos não se pode considerar que fosse de grande qualidade.

Isso é razoavelmente importante, porque significa que a técnica que esteve presente em Portugal, mesmo durante o período áureo, não foi uma técnica que seria de esperar tendo em conta a exigência de outras experiências - como a exigência da navegação.

As moedas aqui colocadas estão acessíveis pela página do Museu da Casa da Moeda, que fornece uma extensa lista de moedas, reinado a reinado.

1ª Dinastia. Começamos pelas moedas da primeira dinastia, onde não há propriamente grandes surpresas, e onde parecem ser escassas as moedas restantes, com desenhos quase infantis, mal definidos, próprios de uma cunhagem deficiente e pouco cuidada. As moedas típicas mais simples são os dinheiros (bolhão), havendo também tornês de prata com D. Dinis, e dobras ou morabitinos de ouro.
  • D. Afonso Henriques
     
    Morabitino de ouro (esq.) e dinheiro [bolhão] (dir.) com pentagrama!
  • D. Sancho I até D. Afonso III
    Morabitino de ouro de Sancho I (esq.) e dinheiro [bolhão] (dir.) de D. Afonso III.
  • D. Dinis até D. Pedro I
    Tornês de prata de D. Dinis (esq.) e conto (dir.) de D. Afonso IV.

D. Fernando a D. João I. Uma significativa diferença parece ocorrer no reinado de D. Fernando com a presença de um maior número de moedas - forte, real, grave, barbuda, pilarte, isto para além do dinheiro, do tornês, e ainda das dobras de ouro.

Diferentes moedas do reinado de D. Fernando.

Dobra de ouro de D. Fernando (esq.) e real de 10 soldos (dir.) de D. João I.

Curiosamente, no decurso do reinado de D. João I não parece haver uma produção numismática comparável.
A produção parece ser assinalável no curso do reinado de D. Fernando, onde convém lembrar que se fez uma das mais importantes obras medievais em Lisboa - o cerco da Muralha Fernandina. 
No entanto, aqui será de ponderar que o comércio implementado por D. Fernando poderia já estar ligado às primeiras explorações portuguesas do continente americano e africano, feitas ainda sem qualquer autorização papal... É importante aqui notar que o papado estava deslocado para Avinhão, o que correspondia quase a uma delegação no reino de França.

D. Duarte a D. Afonso V. Tal como no reinado de D. João I, também no reinado de D. Duarte, a produção numismática parece ser bastante escassa, merecendo apenas destaque a introdução do "leal" - uma designação cara a D. Duarte. 
Significativa diferença ocorrerá de seguida com D. Afonso V, só semelhante à ocorrida antes com D. Fernando. Nota-se aqui uma nova produção de moedas, com diferentes designações. 

Leal de D. Duarte (esq.) e  meio escudo de ouro (dir.) de D. Afonso V.

Diferentes moedas do reinado de D. Afonso V.

De entre os novos nomes de moedas que estão presentes no reinado de D. Afonso V, destacam-se o ceitil, o cruzado, o espadim, o cotrim, o chinfrão, ou o real grosso, para além do escudo de ouro. O ceitil, tal como o vintém ou o tostão, serão moedas populares no curso dos descobrimentos.

D. João II a D. Manuel
A produção numismática não parece sofrer grande diferença no reinado de D. João II, talvez apenas com a introdução do justo de ouro, ou do vintém. As moedas anteriores, do reinado do pai, são praticamente mantidas, com pequenas alterações.
Justo de ouro de D. João II.

Moedas no reinado de D. João II: espadim, cinquinho, cruzado, vintém, ceitil.

Já no reinado de D. Manuel parece haver de novo uma grande abundância de novas moedas, e novas designações... começando por uma moeda com o seu próprio nome - manuel.
Manuel de ouro de D. Manuel, com a esfera armilar.
Moedas no reinado de D. Manuel: bazaruco, tostão, português, vintém, ceitil, cruzado, bastardo, soldo.


D. João III a D. Sebastião
É apenas no reinado de D. João III que vemos moedas já com uma qualidade bastante razoável, que depois só será melhorada no reinado de D. João V. Deixamos aqui como ilustrativo o caso do "S. Vicente" de ouro, vendo-se o santo segurando um navio, e ladeado por duas estrelas.
S. Vicente de ouro de D. João III, onde notamos uma maior qualidade na escrita e desenho.

Com D. Sebastião não há propriamente uma grande diferença face ao anterior. Um tema que se tornava recorrente era a designação "In Hoc Signo Vinces", ou seja, "com este sinal vencerás", que está presente na moeda que trazemos aqui enquanto ilustrativa:

Engenhoso de ouro de D. Sebastião com a inscrição "in hoc signo vinces" e a data 1562..


Nota adicional: Ver ainda

domingo, 9 de junho de 2019

Outros Quinhentos (4) 500 anos - A méxica

Em Fevereiro de 1519, Hernán de Cortés parte de Cuba para a invasão do território Azteca.
Doze anos mais tarde, Francisco Pizarro irá iniciar a invasão do Peru, saindo do Panamá.
Farão isso de forma cruel, pragmática, ou brilhante. Ajustam-se diversos adjectivos.
Passam 500 anos, e para os mexicanos não é muito claro o tom da comemoração.

Convém notar que os Aztecas e Incas não eram civilizações antigas.
Os Incas iniciaram o seu império em 1438. 
O Império Azteca começa em 1428, com a aliança das cidades Tenochtitlan, Texcoco e Tlacopan.
Passado um século, ambos estes impérios foram destruídos num ápice pelos espanhóis.

Quadro da conquista do México e Tenochtitlan por Cortés.
Portanto, quando Ceuta é conquistada (1415), e o Infante D. Henrique começa a tomar conta das explorações atlânticas, os impérios Azteca e Inca ainda não existiam. Estes impérios desenvolvem-se ao mesmo tempo que se desenrolam as explorações portuguesas no Atlântico, e vão cair quando Carlos V é sagrado imperador do Sacro-Império Germânico, em Janeiro de 1519, e inicia a sua expansão territorial além das Caraíbas.

Surge assim uma pergunta:
- Há alguma evidência de contacto anterior entre Incas ou Aztecas com europeus?
- Aparentemente, não.
Um argumento comum é que se tivesse havido um contacto anterior, as doenças que vitimaram muitos indígenas, teriam aparecido mais cedo.

Esse dado, normalmente aparece sem grande suporte objectivo.
Os indígenas teriam sucumbido às doenças trazidas pelos europeus, dando-se como exemplo mais comum a varíola. Aponta-se para este número uma redução de 90% da população indígena. 
Normalmente parece esquecer-se que também os europeus eram vítimas naturais desta doença, e que na Europa do Séc. XVIII foi contabilizada a morte de 400 mil pessoas por ano, até à invenção da vacina. Ou seja, a varíola não atingia só os indígenas, a novidade terá sido que passou a afectar também os indígenas. Também os europeus passaram a ser vítimas de novas doenças tropicais, de que antes tinham pouca notícia - por exemplo, a febre amarela.

Outra causa do decréscimo da população indígena pode explicar-se praticamente por um factor:
- Mestiçagem.
Este factor teve logo como exemplo a entrada de Cortés no México.
La Malinche foi oferecida como companheira de Cortés, e dela ele teve vários filhos. 

Este processo era o mais frequente porque as tripulações embarcadas de Espanha não levavam mulheres. As mulheres a que os espanhóis tinham acesso eram as indígenas, e aí não houve prurido de múltiplos acasalamentos. Rapidamente surgiu uma segunda geração mestiça, já afiliada a uma origem espanhola, ocidentalizada, que foi perdendo a ligação aos aztecas. Repetidamente, o processo levou a que se perdesse a língua e cultura dos antepassados, com a pressão do clero católico, extremamente cioso da pureza cristã e condenação da bárbara cultura pagã azteca.
A população nas cidades mexicanas poderia ser medida no seu nível social pela maior ou menor quantidade de sangue espanhol. Ao contrário do que veio a ocorrer depois com as colonizações britânicas ou holandesas, no caso espanhol ou português a mestiçagem foi crucial para o desaparecimento da cultura indígena. Por exemplo, o emblemático Mayflower partiu para a América com colonos - homens e mulheres - mas só nos séculos XVIII e XIX é que as colonizações portuguesa ou espanhola seriam mais feitas por famílias partidas do continente europeu. Apesar de haver alguma presença de mulheres e famílias nos navios que cruzavam os oceanos, esse número foi sempre contido ou reduzido ao estritamente necessário.
A facilidade de ligação com os indígenas nem sempre foi tão facilitada quanto no caso americano, sendo claro que no caso do contacto com populações chinesas ou japonesas, a miscenização foi uma prática muito residual, quase inexistente.

A rota de Cortés
O sucesso estrondoso de Cortés é pouco digno de ser reconhecido, porque ao mesmo tempo acaba por se ligar a um pragmatismo possível. 
Cinco centenas de espanhóis consegue, por meio de grande engenho e artimanha, fazer sucumbir em dois anos, um império ingénuo e cruel, que contava com milhões de habitantes.

Uma das razões do sucesso de Cortés foi o seu percurso até Tenochtitlan, de Abril a Novembro de 1519, onde com sucessivas alianças a tribos inimigas dos aztecas foi reunindo uma força invasora já muito considerável, com milhares de homens.
Para esse efeito contribuiu La Malinche, a concubina nahua oferecida a Cortés, que depois o ajudou não apenas na tradução, mas até a definir a estratégia de alianças. O termo "malinche" passou a designar a traição ao próprio povo... por incompreensão posterior.
Mais crucial terá sido a aliança com Tlaxcala, que após feroz guerra no início de Setembro, aceitaram negociações e aliança com os espanhóis contra os aztecas, seus inimigos. Os seus quatro chefes foram baptizados e ofereceram as filhas em casamento aos companheiros de Cortés. 

Parte da grande pirâmide de Cholula.
De forma mais importante, Tlaxcala deu um exército suplementar a Cortés, que o usou contra Cholula, a segunda cidade mais importante, e um grande centro religioso. 
Cholula tinha sido instruída pelo imperador Moctezuma para parar Cortés, mas a cidade era um ponto religioso, com fraco dispositivo militar. Acabou por acolher Cortés, e como a sua concubina acabou por revelar/descobrir um plano de assassinar aí os espanhóis, estes terão executado 3 mil (ou 30 mil) habitantes, e deitado fogo à cidade para servir de exemplo.
A partir daí, Cortés não teve maiores dificuldades em seguir até ao centro do império Azteca, a cidade de Tenochtitlan, e lago Texcoco, no que é hoje a Cidade do México.

Tenochtitlan no lago Texcoco, é hoje a Cidade do México.
Tenochtitlan teria, à chegada de Cortés, uma população estimada em 200 mil habitantes, e seria assim uma das maiores cidades do mundo à época, maior que as cidades europeias.
Além disso, a complicada construção de Tenochtitlan, no meio do lago Texcoco, faziam dela uma cidade comparável a Veneza, em diversos aspectos. Este enorme lago Texcoco foi completamente assoreado pelos espanhóis, o que permitiu depois a construção de uma Cidade do México cada vez maior, assente num lamaçal que resultou da construção feita sobre o lago (isto causa ainda problemas graves na propagação das ondas sísmicas, conforme se verificou no sismo de 1985).

Aztlan, Quetzalcoatl, Kukulkan e Viracocha
Moctezuma II recebeu com todas as honras Cortés e os seus homens, instalando-os no palácio que fôra de seu pai. Desde que desembarcara, emissários de Moctezuma enviavam saudações e presentes, procurando que ele não fosse a Tenochtitlan, mas os ricos presentes apenas serviram para mostrar que estava no caminho certo. 
Moctezuma prendeu-se à lenda Mexica-Azteca que colocava a origem do povo em Aztlan (note-se a semelhança com o termo Atlan, ou Atlas-Atlântico), um local indefinido a norte. Ligando Cortés à divindade Quetzcoatl, enquanto homem branco de barba, o imperador dava aos espanhóis um estatuto divino que facilitou a perdição azteca. A mesma lenda, que existia nos Maias e nos Incas, variando no nome - Quetzalcoatl era Kukulkan para os Maias e Viracocha para os Incas - serviu de grande facilitador para a conquista de Aztecas e Incas (os Maias, menos centralizados, resistiram mais tempo). 
Ao fim do segundo dia, e com o pretexto de erguer uma cruz e um altar à Virgem Maria, os espanhóis arranjaram pretexto para sequestrar Moctezuma, e mantê-lo como imperador fantoche. Fraco, esteve mais preocupado em não ser destronado, caso os espanhóis escolhessem o irmão Cuitlahuac, apesar dos protestos da sua corte. Moctezuma foi colaborando ao ponto de o avisar da chegada de um exército de Cuba, liderado por Narvaez, para o prender. 

Cortés, mais uma vez resolveu a situação pragmaticamente. Foi até Veracruz, onde derrotou Narvaez, e convenceu o exército que vinha no seu encalço a juntar-se a si, na conquista de Tenochtitlan. Quando regressou, a situação era ainda mais caótica, os Aztecas tinham-se juntado em torno do irmão de Moctezuma, após um massacre no grande templo ordenado por Alvarado (segundo no comando de Cortés). Cortés pede a Moctezuma que fale à população para a apaziguar, mas este acaba morto pela saraivada de pedras que recebe.
Com a morte de Moctezuma, os espanhóis são forçados a fugir de Tenochtitlan, mas reagrupam forças com os aliados de Tlaxcala. No final tudo se resume a convencer as cidades vizinhas a alinharem com o novo poder espanhol, e um cerco de dois meses à capital, que acabará por cair a 13 de Agosto de 1521.

Uma conquista que doutra forma poderia ter demorado séculos (o que aconteceu noutras paragens próximas, incluindo os Maias), acabou por se resumir, numa série de acasos favoráveis, e numa crença no cumprimento do mito de Quetzalcoatl. O engenho de Cortés, para coordenar os diversos balanços de poder, e tirar daí o melhor proveito, foi ainda mais notável.

Os Aztecas, e a sua Méxica, caíram sem grande dificuldade aos pés de Cortés.
Como já referimos, o nome "América" poderá ser um desvio de "A méxica", mas aqui também surge como interessante este mito ligado a "Aztlan", um nome demasiado próximo de "Atlan" para não ser ignorado. Aliás, a frequência dos nomes aztecas com o som "tl" não deixa de ser intrigante como relação do próprio nome de Atlas, com este continente perdido.

Curiosamente, até a descrição de Platão de uma cidade aquática atlante deixa algumas questões, pois isso teria ocorrido milhares de anos antes de ser construída. Ou seja, a lenda que levou os Mexica-Aztecas até ao lago Texcoco, procurando o símbolo da águia que bica a serpente junto ao cacto (símbolo da bandeira mexicana), serviu ainda para ajustar a pretensão de que a lenda parecia inspirada no cumprimento do relato de Platão no Timeu.