sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Fá-la com a fala, e fá-lo com o falo

Um facto razoavelmente intrigante é a forma como foram separadas a língua alemã e a inglesa.
Em inglês escreve-se Folk para povo, enquanto em alemão se escreve Volk... mas como em alemão o V é lido com F, o som é o mesmo. Daí obtivemos a palavra Folclore, que em alemão se escreve também Folklore e não Volklore... porque estranhamente usam ambos V e F com o som do F.
Um alemão se quiser escrever o som V usa a letra W, mas que os ingleses usam como U. 
Portanto, pelo lado alemão usar ambos W e U com o som de U, é que poderá soar estranho. 
Mas a "coisa" prossegue, e há palavras que podemos ver semelhança, como em When e Wenn (sendo que em inglês se lê "Uén" e em alemão "Vén"), ou em Will e Will (em inglês "Uíl", em alemão "Vil")... mesmo que nem sempre tenham o mesmo significado exacto. Ou por exemplo nos nomes, como William ou Wilhelm, que nos chegaram como Guilherme, por via do francês Guillaume...

Parece um pouco estranho que ao cruzar o Canal da Mancha, ou ao passar além da Alsácia, os povos esquecessem a sua pronúncia original, e invertessem sons, só para que as palavras soassem diferentes. O que ocorreu é muito mais facilmente justificado pela escrita do que pela língua falada... o problema é que no decurso da Idade Média os únicos alfabetizados eram praticamente os monges!

Ora, este "G" que torna Guilherme tão diferente, chegou a ter um significado mudo, como tem o H. E não é difícil concluir que Huillaume seria sonoramente mais próximo de William.
Este poderia ser um exemplo isolado, mas não é bem assim.
Se entendermos que "Gu" se relaciona com "W", em Guarda lemos Warda, e em inglês Warden significa mesmo Guarda. Um outro exemplo, Guincho daria Wincho, e Winch é mesmo um guincho. Não havendo muitas palavras em "gua, gue ou gui", não é tão evidente no caso de Guerra, já que Werra não deu Wer mas sim War, e falha ainda no caso de Guia, que em inglês é Guide (digamos que neste caso não foi precisa a mudança).
Relembramos que esta codificação não deve ser encarada como estranha novidade, porque já falámos do assunto nos Galos de Gales, em que Gales passou a Wales... e no caso galês uma conversão que ocorreu foi do "V" como "Gw", conforme foi explicado:
(...) whence Welsh gw as in Gwener (Friday) from (dies) Veneris; gwir (true) from Verus, - a change which was effected by the eighth century (later in Cornish and Breton). 

Aqui a referência ao Séc. VIII é oportuna, porque é a altura em que Carlos Magno chega ao poder, e se vai revolucionar a Gramática no seu império. Ou seja, grande parte destas alterações, ou perversões, tiveram origem por via do Sacro Império, através dos seus obedientes monges.
O processo não chegou muito ao Convento Bracarense (que definiu o Galaico-Português), nem a Espanha, de um modo geral, porque o exército de Carlos Magno (aliado aos Árabes), foi travado no mítico desfiladeiro de Roncesvalles.
De qualquer forma, não esqueçamos que os Guimarães são Vimaranenses e não Guimaranenses... e não é claro se Vimara Peres seria ou não Guiomar ou Viomar, de nome original.

Passagem de Roncesvalles (Roncevaux Pass), onde Carlos Magno foi derrotado pelos bascos.
Se o Império Romano estava unido por uma língua quase comum, que seria a língua Romance ou Romana, a separação em Constantinopla definiu como efectiva a concorrência da língua Grega, e os monges obedientes procuraram talvez imitar a divina confusão linguística como na Torre de Babel, punindo assim a heresia e depravação do pagão Império Romano. Ainda que o corpo comum, dito Latino, mais erudito, tenha sido passado por semelhança a quase todas as línguas europeias, houve perfeitas invenções - um dos muitos exemplos é em inglês dizer-se advance:
             The -d- was inserted 16c. on mistaken notion that initial a- was from Latin ad-. 
ou seja, os ingleses escreviam "avance", mas foram enganados e meteram um "d" para parecer latim... e antes tivessem feito como em Braga, que diriam a correcta palavra latina - "abante".

Chatos
O nome Carlos em Carlos Magno é ainda apropriado para vermos outra confusão.
Em inglês ou francês foi abandonado o som "C" pela interpretação errada do "Ch", onde o "h" normalmente só serviria para uma transcrição do Grego, mas que aqui tomou o som Charles, afastando-se completamente do alemão Karl, ou de Carlos ou Carlo (em italiano).

Exemplo mais estranho ainda é o de gato que em inglês se diz Cat, mas em francês se diz Chat, e será o único exemplo de língua europeia em que se perdeu por completo a ligação fonética, já que Gato é ainda razoavelmente próximo de Cat e até do alemão Katze.
A origem da palavra Gato é desconhecida, pois em latim seria "feles" (felino) e em grego "ailuro" (ailurofilia), mas implantou-se em toda a Europa como forma simples de "kat/gat"... e até os gregos dizem hoje "Gata".
Se é verdade que os franceses também se desviam no Cantar dizendo Chanter, não se trata aí de uma palavra usada nas línguas germânicas. Seria como um francês dizer "Chalar" e nós devermos entender isso como "Calar", para que o desvio se torne mais evidente.

Agora, este tipo de desvios, ou foi moda induzida, ou foi imposto à força... e não sendo por convencimento, conseguir que todas as mães ensinassem os filhos a dizer "chat" com a pronúncia de "chá", só poderia ter sido conseguido com medidas muito drásticas!
Muito drásticas mesmo... se não foi conseguido por alienação, com influência de uma moda, só vejo como hipótese que tenha corrido muito sangue, e tenham ficado muitos órfãos, o que corresponderia a algo arrasador, chato, como despedaçar (shatter) uma população. E abstenho-me de continuar a falar sobre outros chatos.

No entanto, para terminar, e tendo em atenção o título deste postal, faço notar que é uma questão de linga... e sim, não escrevi língua, porque já escrevi sobre isto.
Experimentem escrever a mesma piada (sim, é uma piada...) numa outra língua, por exemplo, em espanhol, lembrando que nuestros hermanos substituiram o "falar" por "hablar" e o "fazer" por "hacer"... ou seja, a eles atacou-lhes um vírus que comeu os "F" por "H"!


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Estado da arte (9) - Atlatl

Atlatl é a designação azteca para um propulsor de lanças encontrado também com relativa abundância na Idade do Gelo, no final do Paleolítico.
Há uns belos exemplares (ver por exemplo link indicado por José Manuel), como o caso dos encontrados na gruta Mas d'Azil (como habitual, no sul de França):
Atlatl (propulsor) encontrado em Mas d'Azil, e exemplo de utilização (em baixo).

Estes propulsores inovaram bastante na forma de lançar... as lanças.
Na prática funcionavam como um acrescento de braço, suplantando capacidades de indivíduos maiores, ou com braços maiores, na possibilidade de alcançar maiores distâncias. 
Este é um exemplo de como o engenho humano poderia suplantar uma vantagem genética.
A natureza poderia querer definir, no seu processo selectivo de ADN, que Golias iriam ter vantagem sobre Davids, mas conforme é ilustrado no episódio bíblico, a Terra não iria ser de gigantes, iria ser de humanos manhosos, capazes de usar novas armas e engodos para que o engenho suplantasse os atributos naturais. 
É claro que este é só um dos muitos aspectos em que isso se manifestou, e nem todos esses aspectos foram honrados, porque o engano e o roubo serviram também vantagens competitivas nessa evolução. Só que as sociedades também evoluíram, e sociedades em que todos os membros eram vigaristas ou ladrões teriam um rápido fim caótico, prevalecendo as que definiram esse privilégio apenas para uma reduzida elite, por um lado, e para marginais, por outro.

Outro aspecto que se salienta nestes atlatl é o excepcional trabalho artístico de escultura, que usa e aproveita o formato do chifre de veado, de que eram feitos. Portanto, estes são dos primeiros trabalhos onde se conjuga utilidade com estética, mesmo que a estética visasse algum propósito religioso - ou seja, poderia pensar-se que as figuras dos animais visavam um bom augúrio para a caçada.

Estes atlatl acabaram por desaparecer nas civilizações europeias e asiáticas, enquanto se mantiveram em uso corrente do outro lado do Atlântico, em particular entre os Aztecas. No entanto, a sua eficácia enquanto arma de arremesso levou até a que fosse considerada como 
Os espanhóis, desconhecendo a função do Atlatl, entenderam alguns belos objectos ornamentados como um bastão de comando... e será de ponderar se o simbólico bastão não teria ganho essa importância devido a uma utilidade então perdida na Europa.
Relativamente ao arco e flecha, do outro lado do Atlântico, estes atlantes aztecas usavam os atlatles com a capacidade de enviar lanças mais pesadas, o que teria sido uma vantagem razoável em tempos que não havia poder de fogo, nem armaduras de metal, na Europa.

Uma consideração lateral tem a ver com o nome Atlatl ser particularmente semelhante a Atlas, o titã que deu nome ao Atlântico, separando os Aztecas dos Europeus. Aliás só há uma outra palavra começada por Atl (típico som azteca) que é a palavra Atleta, o que designava na Grécia os desportistas que competiam por um prémio. Ambas estas palavras gregas são consideradas "de origem desconhecida".

Sendo o lançamento do dardo uma modalidade olímpica da Grécia Antiga, o nome "dardo" apesar de ser usado na Europa, não tem origem grega ou romana. Raphael Bluteau recusava uma associação do nome aos Dardânios ou ao Dardanelos, associação que parecia ser corrente no Séc. XVII.
Os Romanos distinguiam o Pilum do Jaculum, consoante a lança fosse para atirar, ou para manter... mas curiosamente as Pila (plural de pilum) é que passaram a ser entendidas para arremesso, enquanto o Jaculum era suposto ser mantido erguido (um contra-senso para a etimologia de ejacular).  
Com alguma semelhança aos atlatles foi reportado que os gregos e as tribos ibéricas usavam contra os romanos uma variante com corda, conhecida como Amentum, algo que provocava uma rotação da lança, o que conferia maior estabilidade no voo, podendo aumentar a distância de 20 para 80 metros.

Interessa que, apesar de se ter mantido nas tropas o uso tradicional de lanceiros (até que as baionetas os tornaram obsoletos), ou de archeiros, por alguma razão o antigo uso dos atlatles deixou de ser considerado, especialmente durante a Idade Média.
E ninguém se terá lembrado de o reinventar, dado o espanto que levou até à confusão com um bastão?
Falta pois falar nos aborígenes australianos.
Na Austrália também se usou o propulsor, mas não era chamado atlatl, o nome dado pelos aborígenes é woomera, que de certa maneira é uma extensão do úmero, o osso do braço, mas que normalmente é feito de madeira.

Acresce que uma outra arma típica dos aborígenes, e bastante mais conhecida, é o bumerangue...
Ora, poderá ter sido uma invenção australiana, mas tendo-se encontrado uma colecção de bumerangues guardada pelo faraó Tutankamon, e até mesmo um bumerangue com 20 mil anos, feito de dente de mamute, encontrado na Polónia... conclui-se que mesmo este tipo de arma, que parecia tão característica dos aborígenes, pode ter tido um uso mais difundido na Antiguidade. Acresce que até entre os índios americanos Navajo o bumerangue também era usado como arma de caça.

Em resumo, as informações disponíveis parecem mostrar que havia, até à época da Idade do Gelo, uma circulação de informação, de partilha de conhecimento, à escala mundial - da América até à Austrália. Também podemos considerar que foram invenções que surgiram independentemente, em diversas partes do globo, mas isso não me parece tão natural neste caso dos atlatles ou dos bumerangues, porque serviram depois para algum espanto dos europeus. Aliás, esse argumento também serviria para os aborígenes terem descoberto o uso de metais, o que não aconteceu.

Para além disso, ocorreu depois uma possível proibição de utilização de certas armas... algo que só pode ser entendido como "muito estranho", em situação de guerra. 
O caso do atlatl não é o mais estranho... nem nada que se pareça!
Por exemplo, aquando da invenção dos mosquetes, era perdido imenso tempo a carregar a arma... e estranhamente, ninguém se terá lembrado de colocar dois ou mais canos, permitindo um grande aumento de eficácia.
Apesar de os besteiros usarem também um simples arco e flecha, na China há mais de 2 mil anos foram inventadas bestas de repetição... autênticas metralhadoras de flechas, que permitiam disparar 10 flechas em 15 segundos, ao invés da normal situação de disparar 2 flechas por minuto (mas é claro, com menor precisão e potência que um simples arco).
Houve uma série de invenções que simplesmente foram desconsideradas, ou rejeitadas, e isto para não falar no caso do barco a vapor de Garay, apresentado em 1543, ou do mecanismo de relógio de Anticítera, conhecido dos Gregos, e outras invenções antigas de que já falámos. 

Mesmo perante os inimigos mais ferozes e riscos de aniquilação, o registo de batalhas da Antiguidade e Idade Média parece denotar sempre um certo equilíbrio de processos e técnicas, onde a grande diferença era marcada essencialmente pelo número de tropas em combate e não pela tecnologia.
A diferença só seria avassaladora quando começou a Idade Moderna, com os descobrimentos e colonização de povos com arsenal muito primitivo... que não tinham evoluído desde o Paleolítico!


terça-feira, 6 de setembro de 2016

Estado da arte (8) - Ver o Vero, Colombo troglodita

Vero Beach, Florida. Um colector de fósseis reparou em 2009 que, um osso que tinha recolhido dois anos antes, continha um desenho de um mamute.
O achado foi para o Smithsonian que validou a descoberta, com anúncio público em 2011:


Desenho de um mamute inscrito num osso encontrado na América.
Osso onde se vê ao centro o desenho do mamute.
Se repararmos bem na imagem, vemos um traço no desenho que é muito semelhante aos que encontramos nas inscrições rupestres na Europa.
Portanto, como os mamutes se extinguiram em ambos os continentes no final da Idade do Gelo, estamos provavelmente a falar de uma ligação directa entre os povos que fizeram este desenho na Flórida e os que faziam os mesmos desenhos na Espanha e em França.
Ou seja, mesmo querendo excluir uma viagem marítima, haveria uma passagem pela ponte de gelo que ligaria os dois continentes, e que justificaria sem problemas este achado. 

No entanto, para a comunidade troglodita que acha que Colombo foi o primeiro a chegar à América vindo da Europa, este achado revelou-se um problema difícil de contornar.
Poderiam ter argumentado que o osso tinha ido parar à costa da Flórida arrastado por alguma corrente mirabolante... só que Vero Beach tinha sido um local que já tinha sido alvo de explorações há 100 anos, por Elias Sellards, onde tinham sido encontrado mesmo ossadas humanas, e falara-se então do Vero Man. A história e controvérsia está bastante bem detalhada no site Don's Maps:

Foi aí que fui encontrar esta "novidade", cinco anos após a comunicação pública do Smithsonian, divulgação que passou ao lado de tudo o que é tablóide nacional ou internacional, e também ao lado da malta que passa a vida a encher os facebooks de grandes novidades (encontrei apenas uma referência cruzada num artigo do Herald Tribune de 2010 - ainda antes do reconhecimento pelo Smithsonian). 
Mexer com a descoberta da América por Colombo é sempre complicado... 

Numa época de fácil comunicação, se fosse o diz-que-disse habitual, ou a foto de um gatinho fofo, teria rapidamente agregado uma rápida comunicação no espaço de horas... tratando-se de um assunto mais inconveniente, pois temos que contar com anos, neste caso com 5 anos, até dar com isto, o que nem é mau... será mais ou menos o tempo que as notícias deveriam correr mundo no Paleolítico.

E para vermos que nem é mau, basta atentar num dos 3 comentários que se lê na página do Smithsonian (esquecendo o trombudo que não consegue ver nem tromba, nem animal, e o outro que lhe tenta explicar):
Wrong! There is a piece of artwork that was found in Delaware which depicts a mastodon dating back to at least the Clovis period, and it was discovered almost a hundred years ago.
A acreditar neste comentário, e tendo verificado que houve de facto achados que mostram a caça de mastodontes na zona do Rio Delaware, haverá outros desenhos de mamutes, encontrados há perto de 100 anos... mas que não serão agora do conhecimento público. Como, ao que parece, os caçadores de Foz Côa importavam sílex da zona de Lisboa, creio que 100 anos era tempo exagerado de comunicação, mesmo para os standards do Paleolítico (lembrando que, caminhando a passo, se poderia ir da Europa à China em menos de um ano).

Acresce que esta descoberta também concorda, de certa maneira, com os estudos de haplogrupos, que mostraram haver entre os índios da zona do Canadá uma dominância do R1, que é o dominante na Europa, e característico da cultura indo-europeia. 

A Flórida, no tempo da Idade do Gelo não seria zona costeira... a costa estaria milhares de quilómetros avançada, e por isso este achado em Vero Beach deve ser encarado como uma descoberta no interior da antiga América. 
Havendo desenhos desta qualidade em ossos, tal como existem na Europa, será de considerar que possam igualmente existir pinturas rupestres em cavernas americanas... mas dada a política de ocultação, isso seria tão difícil vir a público nos EUA, quanto o é em Portugal.

sábado, 3 de setembro de 2016

Estado da arte (7) - a gestão da sugestão

No ano passado publiquei 6 textos sobre o "Estado da arte": (1), (2), (3), (4), (5), (6); em que o sentido da expressão era duplo ou triplo... já que "estado da arte" é uma expressão genérica que significa o estado de um conhecimento, de uma certa arte, num dado momento, mas pode ainda referir-se ao estado em que está a arte, a arte pictórica por exemplo, ou ainda a um estado que é dominado pelo conhecimento artístico... como se fosse a arte a mandar no estado das coisas. 

Há um site muito bom, que reúne muita informação e imagens sobre arte rupestre:
Don's Maps (de Don Hitchcock)

No texto de Don Hitchcock dedicado à gruta de Combarelles, vêem-se imagens de grande qualidade, por exemplo, o grande realismo na cabeça de um cavalo:
 Heinrich Wendel (© The Wendel Collection, Neanderthal Museum)
 ... que está inserida num conjunto, que evidencia uma característica típica - sobreposição de imagens:
Desenho das inscrições feito em 1902 por Capitan e Breuil, onde se vê a cabeça do cavalo fotografada em cima.

Há aqui várias coisas que ocorrem tipicamente.
Uma delas é a enigmática sobreposição de desenhos, cujo propósito ou significado não parece fácil de decifrar. Ao visitar o museu de Foz Côa, o arqueólogo explicava que uma das placas que tinha acabado com as dúvidas acerca da datação das inscrições tinha sido uma placa enterrada cujo solo que a cobria fôra datado (por Carbono 14) como tendo 18 mil anos. Assim, a placa em causa não estava exposta há 18 mil anos, e as inscrições seriam obrigatoriamente mais antigas, e além disso dizia que as sobreposições de desenhos não tinham sido de várias épocas... o desenho tinha propositadamente as sobreposições!
Outra coisa que ocorre frequentemente é não identificarmos os desenhos... ou seja, pelo menos alguns deles, só os conseguimos ver depois de consultar a cábula auxiliar (ou nem isso). No desenho de 1902 aparece outra cabeça de cavalo, que não consigo ver na fotografia acima, ainda que pareça ter havido uma degradação da rocha.

Assim, poderá bem ocorrer que algumas das interpretações feitas pelos arqueólogos resultem de um fenómeno conhecido como pareidolia ou apofenia.
Ora, acresce que uma coisa conhecida é que os artistas rupestres usavam as saliências ou buracos na rocha como auxiliares para os seus desenhos.

Pois bem, para explicar melhor o ponto deste texto, vou buscar uma imagem de um silex que está na página de Don Hitchcock sobre o Abrigo de La Madeleine:
Sílex cortante, no abrigo de La Madeleine (França)
Depois de olhar para vários desenhos constantes em arte rupestre, os olhos ficam treinados para tentar decifrar imagens de bicharocos nas rochas, existam ou não... porque à partida não sabemos.
É claro que num sílex ninguém está à espera de ver nenhuma inscrição rupestre, mas olhando para este sílex pareceu-me que seria igualmente possível ver ali animais, ou mais precisamente, a partir das saliências do sílex fazer aparecer animais... que lá não estavam:
Animais que "aparecem" - uma sugestão de desenho, criada pelas saliências da pedra.
Ora, o ponto que aqui pretendo levantar é simples.
Seria esta a fonte de inspiração dos pintores rupestres?
Ou seja, vendo algumas linhas que lhes poderiam sugerir contornos de animais, seguiam essa via, e limitavam-se a adicionar alguns traços que permitissem completar o desenho?
Devo dizer que o resultado final surpreende, porque não teria sido capaz de fazer os mesmos desenhos se não tivesse usado as inspiradoras linhas já existentes no sílex.
Usei a imagem do sílex, porque se tivesse pegado numa imagem de uma rocha, colocar-se-ia a hipótese de ter havido ali um verdadeiro desenho, e neste caso isso parece-me fora de hipótese.

O que adianta esta suposição? 
Ainda que não se aplique certamente a todos os desenhos, no caso em que há sobreposição de imagens, isso poderia resultar de o pintor ver vários bichos aparecerem de diversos contornos que se sobrepunham. 
Considerando importante dar relevo a todos eles, para que aparecessem no campo, tal como apareciam na rocha, não via desvantagem nem confusão na sobreposição de imagens - muito pelo contrário, isso antevia uma abundância para a caça. O valor da superstição poderia ser diferente se fosse apenas um desenho resultante da sua imaginação (esses seriam arbitrários em número), ou se resultasse de identificar nas cavernas alguns escassos contornos que sugeriam o aparecimento de caça.

Esta hipótese de superstição daria ainda motivo para que não se desenhassem figuras humanas (algo que é raro, ou praticamente inexistente, na arte rupestre europeia). Porque, ao fazer aparecer pessoas, ainda que os contornos o sugerissem, isso significaria fazer aparecer desconhecidos, que poderiam ser competidores inimigos. 

Voltando à imagem do cavalo, podemos notar que há traços mais demarcados do que outros, que podem ter sido os traços originais, que serviram de inspiração à figura que se seguiu. Por outro lado, parece nunca ter havido uma tendência de alisar, de retirar confusão da rocha, para que uma imagem pretendida ficasse mais clara e liberta da confusão de riscos. Esta hipótese poderia ser melhor verificada, analisando se as pinturas seguem nalgumas linhas contornos pré-existentes (algo que está fora do meu alcance pessoal). 

Em paisagens graníticas, com grandes blocos de rocha, como é o caso da Beira Interior, há ainda formações naturais que sugerem diversas formas, e poderá ter ocorrido terem sido feitas pequenas alterações de escultura nas pedras para evidenciá-las. As melhores talvez tivessem sido depois destruídas, já que especialmente durante o período cristão, seriam associadas a idolatria de deuses pagãos, algo bastante reprimido pela Roma papal, que sucedeu à Roma pagã.

Em todo o caso, seja a situação de aproveitamento dos contornos das rochas muito ou pouco acidental, como técnica de pintura ou escultura seria mais fácil produzir excelentes desenhos vendo a imagem do animal em traços pré-existentes, do que procurar fazer o desenho de raiz, sem outro auxílio. Talvez essa simples descoberta tenha feito a diferença entre a qualidade dos desenhos que vemos na Europa, e outros desenhos bem mais toscos que apareceram noutras paragens.