sábado, 29 de outubro de 2011

Abalos de Sebastião - Marquês

Se há méritos na actuação do Marquês de Pombal, durante o reinado de D. José, eles não são muito fáceis de encontrar, ao contrário do que se institucionalizou na propaganda, formada durante os séculos seguintes, que o tornou numa figura central da História Portuguesa. 

Sebastião (de Carvalho e Melo) combateu o Sebastianismo, tornando-se numa espécie de último Sebastião, visto como último protagonista do papel de "regente esclarecido".

Se este último Sebastião pretendeu combater o sebastianismo, é bom notar que antes desses dois "Sebastiões", houve um terceiro Sebastião português... no Séc. V. 

Sebastião - general romano
Em 427 d.C. quando o Império Romano se fragmentava e a Hispania começava  a ser "concessionada" aos godos, há um general romano, de nome Sebastião que organiza os Lusitanos, derrotando uma coligação de Alanos e Suevos, ao ponto de conquistar Lisboa!
De acordo com Pinho Leal, esse general Sebastião decide então aclamar-se rei, contra a "vontade popular", e é assassinado... qual César. Pouco depois, os Alanos e Suevos reconquistavam Lisboa! 

Esta história, pouco ou nada conhecida (... e sobre isto agradeço mais informação!), talvez complemente o motivo do singular nome de Sebastião dado ao Rei Desejado. 
A posteriori parece infelizmente adequada a conexão a São Sebastião, o santo - cristão infiltrado que chega a capitão da Guarda Pretoriana, mas que é executado ao ser descoberto. Também D. Sebastião sendo capitão da Cristandade, poderá ter sido executado ao lutar no sentido de restaurar a verdade histórica.

(reconstituição da condenação de "falso" D. Sebastião)


A Fama do Sebastião - Marquês de Pombal
Houve vários factores que concorreram para esta fama do Marquês.
1º) A eliminação da Casa de Aveiro tornou-o personagem agradável à Casa de Bragança, que deixou de ter fantasmas a assombrarem a legitimidade da sua linha de sucessão definida na Restauração.
2º ) A sua ligação à maçonaria granjeou-lhe um clube de fãs que se propagaram na história, nas artes e ciências, nunca atacando o lado ditatorial e tirano. A maçonaria estava então particularmente activa, participando na criação dos EUA e na Revolução Francesa.
3º) Reabilitando os descendentes dos cristãos-novos, colocando-os a par dos outros cidadãos, terá sido uma medida positiva, certamente apreciada no contexto de influência judaica.
4º) Mesmo o lado jesuíta, ligado a Roma, tendo sido fortemente perseguido pelas repressões do Marquês, acabou por aceitar o personagem. Isto não deixa de ser algo estranho, e talvez diga mais sobre a evolução dessa organização católica, do que propriamente sobre o Marquês.
5º) Salazar viu no Marquês um exemplo de "despotismo iluminado", que adoptou como referência reformista para a ditadura do seu "estado novo". Estratégia inteligente, indo captar um herói caro à 1ª República, pelo lado maçónico, ditos combatentes encarniçados da influência da Igreja de Roma. Salazar, ao colocar o Marquês no mais alto pedestal de Lisboa - na Rotunda, coloca o símbolo maçónico no alto, perante o silêncio de uma Igreja rendida, que via em Salazar a sua maior esperança contra o anticlericalismo maçónico.

Assim, de forma algo singular, o Marquês apareceu como figura consensual entre lados opostos!
Os registos críticos que apareceram sobre a actuação do Marquês foram quase sempre tímidos e algo silenciados. 
A nova censura - o politicamente correcto, impede pôr em causa a obra do Marquês em Lisboa, após o Terramoto, ou na reestruturação administrativa ou da universidade, admitindo a crítica sobre a chacina dos Távoras. Os adeptos do Marquês tentam usar a semelhança com as execuções ordenadas por D. João II... sendo óbvio que a comparação é algo absurda. A execução dos Távoras teria melhor paralelo nos métodos da Antiga Roma, ao estender-se a toda a família.

Os agentes do encobrimento histórico parecem apreciar tornar vilões em heróis, e denominar como fracos os regentes mais lúcidos. Dessa forma ignoram os mais sensatos e elogiam os mais cruéis...  ficando assim mais próximos, pelos defeitos, daqueles que colocaram no panteão que inventaram. 

Assim, a maioria dos erros foram passados ao antecessor, D. João V, quiçá o melhor governante da dinastia de Bragança... já que ameaçava colocar Portugal de novo no caminho de potência mundial.
D. João V é criticado por trazer ouro do Brasil... esquecendo que essas remessas pararam pelo total desinteresse do Marquês no Brasil.
Ao Marquês elogia-se a pretensa obra nacional, omitindo o desastre que foi a sua condução do império... foi aliás durante essa pretensa "regência brilhante" que se serviu a Sandwich Havaiana e Australiana aos ingleses.
Se há mérito nalguma actuação será coisa de bastidores... e apenas se justificaria se a ruína nacional fosse necessária para algum bem maior!

Os sucessos de um rei, levam a uma absorção e a um descuido com a sucessão. Era assim habitual um investimento no príncipe seguinte, por aqueles que eram preteridos pelo rei.
Quando D. João V morre, é a rainha (austríaca, Habsburgo) Maria Ana Josefa que vai indicar Sebastião de Carvalho e Melo ao seu filho, D. José.
Este diplomata, antes embaixador na Inglaterra e depois na Áustria, e que D. João V acabara de demitir, aparece num lugar de destaque arranjado pela Rainha Maria Ana de Áustria, que o irá proteger (casando mesmo com uma austríaca). As ligações à maçonaria, essas parecem ocorrer aquando da embaixada em Londres... onde certamente terá privado com cozinheiros e sanduíches.

Porém, atrevemos também a sugerir um plano de longo curso, que estava já a ser testado pelos hábeis Habsburgos. De facto, uma maneira de controlar uma sociedade maçónica, em crescimento acentuado de poder, seria usar essa avidez de poder a serviço da aristocracia implantada. 
D. José I passa assim como figura despercebida, desfrutando das delícias da corte, longe dos assuntos de estado, encarregues a Sebastião de Melo... mas influenciando decisivamente as decisões mais controversas - como a execução dos Távoras. Em troca desses serviços, o Sebastião passa a Conde de Oeiras e depois a Marquês de Pombal. A aristocracia usaria o prestígio como moeda de troca na governação, e poderia descansar... mas a Revolução Francesa alterou um pouco estas contas.

Este plano aristocrata de longo curso seria inteligente... abdicavam das tarefas pesadas de governação, e passavam a desfrutar das vantagens do Reino. As quebras de popularidade passavam para os ministros, que tinham aparente carta-branca, mas que estavam condicionados.
Os Habsburgos austríacos, com Metternich, preferiam a via absolutista, que viam como única solução face à experiência caótica da Revolução Francesa de 1789. Os ingleses, que já tinham uma experiência revolucionária bem anterior, com Cromwell ao invés de Napoleão, preconizavam uma filosofia ainda mais inteligente - a Monarquia Liberal.

A Monarquia Liberal, tornou-se a forma comum de governo nos Séc. XIX e XX, especialmente após as Revoluções de 1848, e ainda hoje perdura na Europa. A legitimidade do Rei não era afectada, mas o governo passava a ser opção por eleição. No fundo a responsabilidade da governação visível passava para o próprio povo, por resultado de uma pretensa eleição, mas estes governantes estavam depois condicionados a todo o jogo que se passava nos bastidores, nas armadilhas cortesãs.
A população era co-responsabilizada nos erros governativos dos ambiciosos líderes que elegia, e a cabeça coroada passava incólume pelos pingos da chuva.

A experiência mais decisiva ocorreria com as Repúblicas... mesmo com a destituição do Rei e das Cortes, os poderes instituídos seriam corrompidos pelas ligações ancestrais das famílias, e na prática esses elementos aristocratas voltavam a concentrar o poder sob forma camuflada. 
Aparentemente partilhavam o poder com uma nova parte da população burguesa, que subia nos degraus do poder, mas esses novos protagonistas eram seduzíveis a honrarias e festas, e poderiam ser manipulados em jogos cortesãos, onde a aristocracia reinava sem concorrência.
Talvez a última experiência, destinada a erradicar essa submersa influência aristocrática nas Repúblicas, terá sido tentada na Revolução Russa de 1917. No entanto, é fácil perceber como os jogos de bastidores assumiam, mesmo assim, contornos tenebrosos... a luta de poder na antiga URSS acabou por substituir um sistema oligárquico por outro - em que a aristocracia passou a ser o "partido único". 
Essa experiência russa foi fechada, expondo fantasmas semelhantes aos fantasmas do Reino de Terror, que se seguiu à Revolução Francesa. Os escritores da História decidiam assim fechar definitivamente a hipótese comunista, usando dos habituais reflexos pavlovianos - a palavra comunista ganharia um tom pejorativo automático.


Abalos Lisboetas antes de 1755
Voltamos a Sebastião, Marquês de Pombal, e aos sentidos abalos!
Um dos méritos propagandeados ao Marquês é a reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755.
Isto é colocado como se Lisboa não tivesse passado antes por dezenas de terramotos severos.

Em 26 de Janeiro de 1531 estima-se que tenham morrido 30 mil pessoas em Lisboa, número até maior ao avançado para o de 1755. 
Também nessa altura foi feito um bairro com estrutura quadricular que sobreviveu - o Bairro Alto (ver p.ex. aqui). Assim, a proclamada "quadrícula inovadora" nas ruas da baixa lisboeta, pensada pelo Marquês, já tinha tido um precedente com 250 anos, durante o reinado de D. João III.

Vejamos então um registo de sismos em Lisboa (usamos os adjectivos de Pinho Leal):
1009 - grande terramoto que destroi "mais ou menos" Lisboa.
1117 - idem
1146 - ibidem
1290 - fortíssimo terramoto aluíram muitas casas de Lisboa.
1344 - idem
1531 - espantoso terramoto que dura 50 dias! Arruinados alguns templos e 1500 casas cairam. 
1551 - terramoto medonho destruiu 200 casas em Lisboa
1575 - violento terramoto sem vítimas
1598 - violento terramoto sem vítimas
1699 - violento tremor de terra de 3 dias com alguns intervalos 
1724 - fortíssimo tremor de terra, não causou desgraças 


O abalo sísmico de 1531, tendo até levado à construção do Bairro "Alto", parece ter um registo histórico mais devastador que o de 1755...
Porém o abalo do Marquês teve várias componentes - especialmente posteriores.

Selecção Herculana
O terramoto do Marquês e assessores foi de tal forma potente que parece ter feito cair as Torres de Hércules em Cadiz (construção que tinha aguentado milénios de terramotos), apesar de ter poupado o Aqueduto das Águas Livres em Lisboa, ou o Convento de Mafra.
As ditas Torres de Hércules tiveram ainda uma queda diferente em Coimbra, onde a Torre Pentagonal tombou pela outra proeza pombalina - a universidade!
Não terá sido a Universidade de Évora, que Pombal decidiu fechar, nem o Observatório Astronómico, que apenas serviu de pretexto para a destruição da Torre de Hércules. O que Pombal fez foi importar génios... ou melhor arrumar o génio nacional na prateleira e contratar a subsidariedade, pela ideia de que um bom estrangeiro seria sempre melhor! Os textos de autores do Séc. XVIII que ironizam esse estado de coisas são particularmente interessantes para se perceber quando se começou a venerar a importação externa de valores, e a consolidar a dívida subjacente, transformando os valores nacionais em resignados, menosprezados, e desconsiderados subsidiários de uma inteligentia externa.

Como era Lisboa antes do Terramoto?
Apesar de serem pouco vistas imagens de Lisboa anteriores ao Terramoto de 1755, sobreviveram algumas bem ilustrativas, onde se percebe que a "grande reconstrução", ou a "grande alteração", é essencialmente manobra publicitária.
Pormenor da zona do Palácio do Rei,  onde depois do Terramoto será o Terreiro do Paço.
Estampa na Biblioteca Nacional de Maillet (impresso em Paris, 1760)


Estampa na Biblioteca Nacional de Clara Black (início Séc. XVIII)


Podemos ver em particular que o posterior Terreiro do Paço e os edifícios pouco mais são do que a adaptação do que já era o Palácio do Rei. Aliás, o que se notará mais é que a zona do Paço terá até perdido alguma qualidade estética, a avaliar pelas estampas. Se havia caos urbanístico na zona interna até ao Rossio, pois isso é algo que não se consegue avaliar nestas imagens, e não seria no Bairro Alto. Mas há outras que mostram pelo menos uma grande rua com clara vista do Tejo, e podem ainda ver-se edifícios com altura de 5 andares.

Em resumo, para além da duplicação dos torreões no Paço, não se vislumbra propriamente uma "grande" alteração face ao que era Lisboa antes do terramoto.

A destruição de Lisboa, não terminou no Terramoto, e em larga parte uma das maiores perdas resultou do incêndio, que também destruiu os Arquivos da Torre do Tombo. Estes acidentes, ditos fortuitos, têm a particular selectividade de destruir a memória histórica, de forma quase definitiva. Este caso, ou a Biblioteca de Alexandria, são alguns dos muitos exemplos ao longo dos séculos (e.g. Grande Incêndio de Londres, ao tempo da nossa Rainha Catarina)...

Quanto à contenção do desastre, conhece-se a forma brutal de repressão que se processou após o terramoto, causando mais vítimas do que o próprio acidente (isso é habitualmente ilustrado nesta imagem).

Processo dos Távoras - 1758
Ainda no rescaldo do acontecimento, e devido à sensação de "castigo divino", a insatisfação sobre a actuação do Marquês acentua-se, mas irá terminar de forma contundente.
Três anos depois do terramoto, dá-se o incidente da "tentativa de assassinato" do Rei, que resulta no chamado Processo dos Távoras, sendo implicados o Duque de Aveiro, o Conde da Atouguia e toda a família dos Távoras, entre outros.

Processo dos Távoras
Teatro da Execução (estampa na Bibl. Nac., anónima, c. 1759-60)

Já aqui falámos sobre a particularidade dos mortos envolvidos no processo serem das mesmas Casas que estiveram até à morte ao lado de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, e até de 1578 e 1758 terem os mesmos dígitos.
O que choca mais neste processo é a brutalidade envolvida nas execuções públicas. Talvez não fosse novidade, dado o tratamento de tortura e esquartejamento que Louis XV decidiu implementar a Robert Damiens em 1757... a novidade aqui foi a sua aplicação a uma casa aristocrata rival.
Convirá ler Pinho Leal sobre o Processo, num apontamento que tem sobre o sítio "Chão Salgado"... nunca é demais saber de que matéria são feitos os heróis que estão no pedestal mais alto da capital lisboeta.

Guerra Fantástica
Portugal participou na Guerra dos Sete Anos, ao lado da Inglaterra...
... e assim, ao contrário do que é habitualmente publicitado, os conflitos com Espanha não terminaram nas vitórias da Restauração. Houve a Guerra Fantástica.
A Espanha, aliada da França, entrou em Portugal, e ameaçou a invasão em 1762, durante a regência do Marquês... o exército português tinha sido reduzido desde 1754 a metade dos efectivos - manda dizer a publicidade instituída - que por culpa de D. João V - que apesar de este ter morrido em 1750, tinha costas largas para aguentar com esta culpa adicional, mesmo morto. Lê-se isto na wikipedia:


       "O Exército Português, abandonado desde a doença de D. João V, não tinha oficiais preparados para a guerra — fardamento, soldados e armas eram praticamente inexistentes."

Ainda que isso fosse verdade, será que a ausência de espírito crítico é tal que não se percebe que a doença de D. João V ocorreu em 1750... e que nos 12 anos seguintes as responsabilidades sobre o exército estariam a cargo de D. José e do ministro Pombal.

Há ilustrações dessas batalhas, que levaram a fortes derrotas das forças portuguesas.

"Guerra Fantástica"
O espanhol Conde de Aranda invade Portugal em 1762, durante a regência pombalina,
conquistando Salvaterra e ameaçando Lisboa. (**)

A solução pombalina recai mais uma vez na ajuda externa, pela organização militar do Conde de Lippe, aparentando quase que já não poderia ter sob controlo português um exército forte - aconteceu depois o mesmo com a ajuda de Wellington - as tropas portuguesas nunca parecem ter ousado responder sem haver direcção externa. De forma semelhante, mesmo a presença do Duque de Schomberg, durante a Guerra da Restauração nunca foi bem vista pelos nacionais (nomeadamente o Marquês de Marialva), e terá contribuído mais para a deposição de Afonso VI em favor de Pedro II, ou para colher os louros de da vitória portuguesa em Montes-Claros.

Esta "Guerra Fantástica" evidencia a acentuada degradação nacional após D. João V.
Dir-se-à uma decadência quase propositada, conduzida pelo Marquês de Pombal, e pelas forças infiltradas de traição nacional que continuam a promover a incompetência, de forma a suprimir qualquer renascimento organizado.
Foi essa a principal herança pombalina!

(**) ________________
Observação [18/05/2013]
Lê-se na legenda:
Vue perspective de la Bataille remportée par les Troupes Espagnoles et Françoises aux ordres de Mr. le Comte d'Aranda sur les Portugais aprés laquelle le Comte d'Aranda s'est emparé de la Place de Salvatierra ainsi que du Chateau de Segura sur le Tage ou il a laissé une partie de ses Troupes. Cette Ville a capitulé le seize Septembre 1762.
A figura induz em erro, pela extensão de água apresentada para o Tejo, pensando-se em Salvaterra de Magos. Porém, tratava-se da zona fronteiriça Salvaterra do Extremo e do Castelo de Segura, na proximidade de Idanha. 
Fica assim em dúvida a imaginação artística ao ponto de colocar navios numa parte montante do Tejo, que só faria sentido na zona do Mar da Palha, próxima da outra Salvaterra de Magos...
... a menos que consideremos alguma barragem na zona das Portas do Ródão, como falámos aqui:
http://alvor-silves.blogspot.pt/2011/07/portas-do-rodao.html
... algo que dificilmente justificaria a navegabilidade de embarcações consideráveis, pelo que é mais natural admitir a confusão do artista na mistura de paisagens das duas Salvaterras...

Nota 19/03/2014:  
Correcção de todos os links para as imagens, devido a mudanças nos links da Biblioteca Nacional.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Bolonhesa e Carbonara

[reeditado e terminado em 8 de Outubro de 2011]

Não tinha pensado apresentar um texto sobre os 101 anos da implantação da República Portuguesa, mas junto pequenos detalhes que me mereceram alguma atenção.

O primeiro desses detalhes, é o excelente documentário, feito a propósito do centenário: 

Uma figura central da Revolução de 5 de Outubro, é aí bem identificada - Machado Santos, o jovem romântico, à frente das tropas populares da Carbonária, estacionadas na Rotunda.

No entanto, como é claro nestas coisas... uma coisa é ter um papel decisivo, outra coisa é obter o devido reconhecimento. Uma coisa é garantir a vitória militar na Rotunda, outra coisa diferente é determinar que afinal o momento da Implantação da República são uns gritos fotografados na varanda da Camâra de Lisboa:

 
(o elemento que parece ser Machado Santos, é afinal Marinha de Campos).

Os melhores heróis são os mortos... foi o caso do Dr. Miguel Bombarda e do Almirante Cândido dos Reis... todas as cidades viriam a ter uma rua com o nome estes personagens, cujo papel singular face aos restantes, terá sido o seu falecimento politicamente correcto - foram enterrados conjuntamente a 6 de Outubro de 1910.

Dos mortos não se esperam críticas à evolução do movimento... as críticas de Machado Santos.
Faltou, no documentário da RTP2, apontar o destino do herói da Rotunda... e bastava ligar a uma outra excelente mini-série da RTP: a Noite Sangrenta.
O destino de Machado Santos e José Carlos da Maia, heróis incómodos da implantação da República foi traçado pela "camioneta fantasma" que, na Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921, levou para a execução estes antigos heróis da implantação da República, bem como o chefe de governo António Granjo e outros antigos apoiantes de Sidónio Pais.

Após 100 anos, houve finalmente um conjunto de informação transmitida pela RTP, e que tinha sido varrida para baixo do tapete republicano, que sufocou protagonistas, nomeando outros no seu lugar.
Após 100 anos, a informação ainda vem separada... há ainda receio de abrir os armários.
É fácil falar do apagamento de Trotsky nas fotos com Lenine, mas é complicado assumir que Machado Santos foi apagado nas fotos da República, e depois executado a mando de "desconhecidos" que organizam a Noite Sangrenta. Falar em "desconhecidos", ou acusar subalternos, é resultado da falha e condicionamento histórico.
Como contraposição à 2ª República de Salazar, desenvolveu-se uma mitologia própria de branqueamento da 1ª República, estratégia achada apropriada nas décadas pós-25 Abril, procurando definir um único monstro (Salazar) no conto de fadas republicano.
O número de protagonistas assassinados na 1ª República excedeu largamente os do Estado Novo, já para não falar da Monarquia Constitucional. Nos bastidores do "partido único" dito "democrata" de Afonso Costa o que mais se temia eram os verdadeiros democratas, que iam pagando com a vida as suas iniciativas. Assim, quando se fala em partido único, ao tempo de Salazar, importa notar que a grande diferença face ao estado anterior, é que era um novo partido único assumido, e não um regime colorido com vários partidos, em que dominava o Partido Democrático, com poucas políticas assumidas e muitas acções radicais definidas nos bastidores.

Republicanos e maçonaria
É especialmente elucidativo o documentário da RTP2 ao estabelecer a interacção da Carbonária com a Maçonaria na execução do golpe republicano de 5 de Outubro.
Os líderes da Carbonária, no quais se inclui Machado Santos, estão ainda na Maçonaria, e assim de alguma forma o projecto maçónico parece aproveitar-se da estrutura popular da Carbonária, usando-a como um braço armado. Isso parece tanto mais notório pela auto-extinção da Carbonária nos momentos seguintes à revolução. Se a maçonaria aparecia como elitista, era pragmático desenvolver uma estrutura auxiliar de interacção necessária à coordenação das forças populares. São essas forças da Carbonária acusadas da morte do rei D. Carlos, que aguentam a Rotunda, com Machado Santos à cabeça... ou seja, a estrutura que parece protagonizar o sucesso do golpe republicano desaparece com o sucesso da acção.

Porém, a acção é mais complexa, e a resistência de Machado Santos tem muito de simbólica, tal como a de Paiva Couceiro pelo lado oposto. São actores ocasionais que aparecem numa peça escrita nos bastidores. Acabam por aparecer como heróis isolados na luta simbólica que travaram na Rotunda. Irão repetir essa rivalidade no episódio da Monarquia do Norte, de 1919, que é uma reacção monárquica ao assassínio de Sidónio Pais.

O argumento já tinha sido escrito nos bastidores, e por isso Paiva Couceiro vê-se sozinho a defender uma monarquia moribunda. As deslocações do grão-mestre da Maçonaria, para garantir a não intervenção externa, inglesa e francesa, completam o ramalhete... Há uma organização que parece assim coordenar toda a acção, com influência em ambos os lados das tropas. Mas a organização tendo cariz maçónico não se confunde com a Maçonaria... o grão-mestre é candidato a Presidente da República, mas quem define a escolha é o Partido Republicano. O poder usa as diversas estruturas, mas não se identifica exactamente com a hierarquia de nenhuma delas. Assim, as presidências dos órgãos surgem como figurativas, escondendo um poder definido através da cúpula, mas não identificável, gerando a óbvia confusão nos opositores. As várias iniciativas disparavam em diversas direcções, sem conseguirem identificar exactamente a cabeça do poder.

Os republicanos, enquanto partido, tinham obtido uma derrota histórica nas eleições de 1910, que antecederam a revolução armada. Precisaram de restringir o universo eleitoral e suprimir partidos monárquicos para que não houvesse surpresas no parlamento, já que o povo menos informado poderia continuar a votar na "direcção errada". É esta minoria que passará a completa maioria pela via revolucionária...
Curiosamente, durante estes 100 anos republicanos, as constituições votadas ocorrem com Sidónio Pais, e com Salazar. A população é chamada para escolher partidos, mas não a forma de governo. Independentemente de todas as necessárias críticas, a forma ditatorial do Estado Novo foi legitimada por consulta popular na Constituição de 1933, aprovada esmagadoramente. A parte incorrecta surge na não renovação dessa legitimação... passados 20 anos. Passado esse tempo, haveria toda uma geração votante que não se pronunciara sobre o regime. Mas isso não foi defeito ocasional... os regimes actuais, ditos democráticos, têm constituições com mais de 20 anos, que nunca foram sujeitas a nenhum escrutínio desse tipo. Os cidadãos nascem condicionados ao funcionamento do sistema, sem hipótese de se pronunciarem sobre ele.

Os contos e as histórias
Se nos é ensinado que a evolução histórica caminhou no sentido de uma maior consagração da liberdade individual, extensiva a toda a população, também fica evidente que a poderosa ocultação histórica - que está em curso - pode ter falsificado toda a informação que dispomos, e sobre a qual não há testemunhos pessoais fiáveis que ultrapassem o Séc. XX ou o final do Séc. XIX (contando até com os relatos de avós ou bisavós). É claro que isto é um exagero, mas convém atentar, por exemplo, no caso das Colunas de Hércules... que passam por um mito da antiguidade, tendo-se até perdido o registo popular das torres existentes em Cadiz, e que desapareceram apenas no Séc. XVIII ou XIX.

Há teorias com origem na Rússia, que afirmam uma supressão histórica de 1000 anos!
Pode parecer absurdo... mas convirá observar a excessiva ausência de registos da Época Medieval, que comporta esses mil anos. Invoca-se uma estagnação de mentalidades, colorida com uma atribuição de monumentos padrão a esse período, mas o único obstáculo sério a essa hipótese é a necessidade de uma coordenação das diversas culturas na preservação e colaboração do embuste. Mas, à excepção de casos singulares, na aristocracia, onde há algum registo de antepassados que perdura por séculos, a restante maioria da população dificilmente conhece mais do que registos dos seus avós ou bisavós.

A disseminação da Escola, uma conquista da República (que acabou por ser mais efectiva na 2ª República, e que já estava bem presente na Monarquia), levou também a uma quebra da tradição familiar. A história familiar passou a reduzir-se a pequenos episódios pessoais, sem o enquadramento da época. Os pais passaram a negligenciar a transmissão da sua vivência e interpretação dos acontecimentos, confiando à Escola essa transmissão... assumindo que ela seria objectiva e formativa. Porém, é fácil perceber que para a maioria dos filhos, essa vivência vai resumir-se a duas ou três frases aprendidas num livro escolhido. Uma informação complementar simples perde-se nos silêncios familiares, que remetem o conhecimento antigo à escola estatal.
É depois habitual caricaturizar-se isto com o desconhecimento sobre o 25 de Abril... quando os próprios caricaturistas dificilmente sabem que o 5 de Outubro foi também a data da assinatura do Tratado de Zamora, que consagrou a independência nacional em 1143.
Se as iniciativas revolucionárias republicanas começaram a 3 de Outubro, a chancela oficial acabou por surgir apenas depois, num dia que ficaria assim duplamente simbólico. Coincidência?

Carbonara e Bolonhesa
No meio deste processo haverá boas intenções misturadas com intenções castradoras.
O processo republicano aparece assim identificado com a mesma massa, mas com dois molhos:
- A Massa Carbonara - que é feita de molhos de população, liderada pela Carbonária, uma organização ocasional, que surge no Séc. XIX para liderar processos republicanos na Itália, Espanha e Portugal, e cujo nome fica definido pela troca do B pelo V.... ou seja, o nome Carvonária resultaria das reuniões secretas iniciais efectuadas em casas de carvoeiros, na Sardenha. E sobre a Sardenha parece sempre haver muito pouco a dizer... a enorme e paradisíaca ilha mediterrânica parece ter passado pela história despercebida, ao contrário da Sicília ou da Córsega.
- A Massa Bolonhesa - cuja carne é misturada nos molhos de pedreiros livres da Maçonaria. A ligação a Bolonha surge na origem reportada a 1248 da Carta de Bolonha:
Statuta et Ordinamenta Societatis Magistrorum Tapia et Lignamiis
ou seja, os primitivos estatutos e regulamentos da Sociedade dos Mestres Maçons e Carpinteiros.
Esta pasta bolonhesa será da mesma Bolonha italiana que foi primeira universidade, e cujo nome serviu para um tratado de graus universitários europeus (o chamado Tratado de Bolonha).

Afinal, parece que a típica massa italiana, "a pasta", mais característica de Nápoles e Sicília, onde leva apenas azeite, ganhou outros molhos noutras ilhas e paragens, tendo sido exportada com sucesso.