quinta-feira, 30 de junho de 2016

Arrumar de Botas (2)

A forma como o regime irá encobrir a Salazar a sua demissão por Américo Tomás, é especialmente bem retratado numa entrevista que Roland Fauré, o director do jornal francês L'Aurore, caracterizava desta forma:
«Salazar dominava a actualidade política francesa. Sabia da substituição de Charles De Gaulle por Georges Pompidou [ocorrida em Abril desse ano]. Era bizarro: sabia tudo quanto se passara em França com De Gaulle e ignorava o que se passara consigo mesmo...»
Assim quando Fauré regressa a França, o jornal fará disso uma história sensacional - com o título "Salazar acredita que ainda governa Portugal":
L'Aurore - entrevista a Salazar depois da "queda da cadeira" (in Expresso)
Para conseguir a entrevista, segundo consta a única que Salazar deu, Fauré, admirador e amigo de Salazar, teve que solicitá-lo à guarda da reclusão, ou seja, a governanta Maria de Jesus.
A história parecia demasiado incrível, retirada de uma tragédia shakespeariana, ter um rei enclausurado no seu castelo, tendo a ilusão de que ainda reinava, e Fauré decidiu investigar por si mesmo. A promessa que teve que fazer - não revelar a Salazar que já não era ele o Presidente do Conselho.
O Expresso publicou parte dessa entrevista de Roland Fauré, pela ocasião dos 40 anos da morte de Salazar:
» Durante a sua doença, até que ponto participou na direcção dos negócios do Estado?
»» Ainda não estou completamente restabelecido e a minha única e verdadeira preocupação é de conservar força suficiente para continuar a assumir as minhas funções.
» Recebe aqui os ministros do Governo? (Sem hesitação, o doutor Salazar responde:)
»» Sim, aqui mesmo, é mais agradável neste jardim que dentro de casa.
» Todos os ministros vêm aqui prestar conta do respectivo departamento?
»» Sim.
» E dá-lhes directivas?
»» Eu não imponho as decisões. Elas são tomadas colectivamente pelo Conselho de Ministros.
» Que se reúnem aqui?
»» Não, as decisões aqui esboçadas são tomadas oficialmente nos conselhos a que preside o Presidente da República no seu palácio.
» Mas todos os ministros do actual Governo foram escolhidos por si e têm a sua confiança?
»» Sim, evidentemente.
» E se algum deles não aplicasse a política por si definida, demitia-o e substituía-o por outro?
»» Pois claro (diz, com toda a naturalidade, com um gesto negligente da mão direita.)
(...) Eu sabia que só dispunha de mais três ou quatro minutos, o tempo para a governanta regressar do interior da casa, acompanhada de outros visitantes. Arrisquei então uma última questão: aquela que eu talvez não devesse colocar.
» Desde há algum tempo que se fala muito de um dos seus antigos ministros, Marcello Caetano. Que pensa dele? (Dez segundos de silêncio que me pareceram demasiado longos.) Depois, o doutor Salazar disse muito naturalmente:
»» Conheço bem Marcello Caetano. Foi várias vezes meu ministro e aprecio-o. Ele gosta do poder: não para retirar quaisquer benefícios pessoais ou para a família: é muito honesto. Mas gosta do poder pelo poder. Para ter a impressão exaltante de deixar a sua marca nos acontecimentos. É inteligente e tem autoridade, mas está errado em não querer trabalhar connosco no Governo. Porque, como sabe, ele não faz parte do Governo. Continua a ensinar Direito na Universidade e escreve-me às vezes, a dizer-me o que pensa das minhas iniciativas. Nem sempre as aprova - e tem a coragem de mo dizer. Admiro a sua coragem. Mas parece não compreender que, para agir com eficácia, para ter peso sobre os acontecimentos, é preciso estar no Governo.
» Mas diz-se que foi o senhor que não o quis mais como ministro...
»» Talvez, talvez...
Portanto, esta entrevista de Fauré, em 20 de Agosto de 1969, é o testemunho mais incrível do teatro em cena.
Salazar aparece como suficientemente lúcido para manter uma conversação sólida, e a pergunta que ficará é a de saber se o próprio tinha consciência de que tinha sido afastado. Afinal, com a assumpção de ignorância, ele acabava por obrigar a que os ministros continuassem a visitá-lo, a darem-lhe conta do que se passava, e a ouvirem a sua opinião sobre cada assunto.

Afinal, sejamos claros... o que tivemos aqui foi uma absoluta "teoria da conspiração".
O que tivemos aqui foi aquilo que é sistematicamente negado poder acontecer.
Ou seja, é negado sucessivamente que haja poderes de bastidores que, mantendo uma fachada de poder ao líder, tenham em funcionamento um governo completamente diferente, indiferente à sua opinião, condicionando a informação que chega a uns e a outros.

Só que a situação é sempre muito mais complicada do que aparenta ser.
Salazar, ao forçar a visita dos ministros, ainda que fosse no simples encenar da palhaçada, conseguia manter funções essenciais... de influência. Ou, conforme ele dizia - "eu não imponho decisões", as decisões eram ele "esboçadas" e tomadas "oficialmente no conselho" a que presidia Américo Tomás.
Mas afinal, não era sempre isso que acontecia? - Ele nunca poderia controlar por completo todas as decisões... qualquer líder é sempre limitado pelas informações a que tem acesso.

Se o sistema arranjara outro pé para aquela bota, o pé de Marcelo Caetano, a encenação forçava a que os ministros, afinal escolhidos por Salazar, não pudessem ser demitidos por Marcelo, enquanto durasse a encenação. Assim, quem aparecia afinal como figurante naquele teatro, no Verão de 1969?
Marcelo ou Salazar?
Consta que Marcelo tentou, mas pouco conseguia mudar o rumo político anterior.
Ainda que tivesse um novo pé, a bota tinha o número de Salazar. O sistema funcionara como uma bota que apenas calçara o seu pé, qual Cinderela eleita para se casar com um poder inerente à sociedade portuguesa. Para manter o pé, Marcelo teria que conformar a sua cabeça à medida do "Botas".

Marcelo ficaria furioso com esta entrevista de Salazar, e depois do afastamento de Franco Nogueira, e das eleições de Outubro 1969 (posteriores à entrevista), em Janeiro de 1970, Marcelo Caetano procederá a uma maior reformulação ministerial. Decidira calçar as suas próprias botas.
Se Salazar mantinha alguma lucidez, já não podia dizer "como sabe, ele não faz parte do governo". O sucessor estava finalmente encontrado, e aquele teatro já seria muito mais difícil de manter. Nos seis meses seguintes o estado de saúde de Salazar vai agravar-se sucessivamente até à sua morte em 27 de Julho de 1970. A conta apresentada pelo Hospital da CUF, envolvendo um total de 43 médicos, e a visita de especialistas americanos, foi considerada exorbitante. O sistema arrumava o "Botas".

Na perspectiva da "teoria da conspiração" vigente, Salazar terá sido enganado por todos. Pelos mais próximos, com o pretexto da "verdade poder afectar a sua saúde", e pelo sistema que aceitara Caetano como sucessor. Se todos os fiéis, desde a governanta Maria de Jesus, ao Cardeal Cerejeira, e tantos outros, aceitaram sem pestanejar esta decisão, parece inverosímil, ainda que sejam bem conhecidos casos em que as famílias decidem enganar, pensando no "melhor" para o enganado. Talvez muito mais natural é que Salazar desviasse o assunto, sempre que lhe pretendiam dar a entender a realidade, preferindo assim a situação de afastamento, com influência, conforme descrevera a Roland Fauré.
Depois, quando ficou definitivamente afastado, já lhe seria indiferente o resultado, dada a sua clara impotência para influir nas decisões, e terá esperado pelo fim, mais ou menos apressado pelas circunstâncias da doença.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Arrumar de Botas (1)

Nas últimas décadas, em que Fernando Pessoa foi elevado ao estrelato nacional, é de certa forma inconveniente um seu pequeno opúsculo de 31 páginas, escrito em 1928, onde defendia a implantação da Ditadura em Portugal:

Fernando Pessoa (1928)

Citamos uma parte do manuscrito que o mação Pessoa se viria a arrepender de ter escrito, ao mesmo tempo que à época não deixa manifestar orgulho nele - "Não há hoje quem, no nosso país ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opúsculo como este. D'isto nos orgulhamos.";  e se isto parece um excesso egocêntrico, é justificado, pois a sua análise é boa.
Talvez seja mesmo brilhante, mas quando o próprio exibe grande conta, dispensa mais superlativos. Deixo então um extracto (pág. 27)
Concentrados, dos Filipes ao liberalismo, numa estreita tradição familiar, provinciana e religiosa; animalizados, nas classes médias pela educação fradesca, e, nas classes baixas, bestializados pelo analfabetismo que se distingue nas nações católicas, onde não é mister conhecer a Bíblia para ser cristão; desenvolvemos, nas classes superiores, onde principalmente se forma a opinião de intuição, a violenta reacção correspondente a esta acção violenta.
Desnacionalizámos a nossa política, desnacionalizámos a nossa administração, desnacionalizámos a nossa cultura.
A desnacionalização explodiu no constitucionalismo, dádiva que, em reacção, recebemos da Igreja Católica.
Com o constitucionalismo deu-se a desnacionalização quase total das esferas superiores da Nação. Produziu-se a reacção contrária, e, do mesmo modo que na Russia de hoje, se bem que em menor grau, a opinião de hábito recuou para além da província, para além da religião, em muitos casos para além da família.
Surgiu a contra-reacção: veio a República e, com ela, o estrangeiramento completo. Tornou a haver o movimento contrário; estamos hoje sem vida provincial definida, com a religião convertida em superstição e em moda, com a família em plena dissolução. Se dermos mais um passo neste jogo de acções e reacções, estaremos no comunismo e em comer raízes - aliás o terminus natural deste sistema humanitário. É este o estado presente dos dois elementos componentes da opinião pública portuguesa.
Em poucas palavras, indo ao princípio físico newtoniano, da acção-reacção, Pessoa procura estabelecer o processo de repetição histórica entre uma visão local e global, como oscilação pendular. Ou seja, quando domina o estrangeirismo, é desestruturada a cultura provinciana, familiar, depois por reacção nacionalista, esses valores familiares, religiosos, são de novo elevados ao topo, e o país fecha-se a qualquer influência estrangeira. Segundo a visão de Pessoa, isto só teria sido diferente aquando da expansão marítima: 
No caso notável do início dos nossos Descobrimentos, a opinião de hábito se opunha à novidade deles, a de intuição a promovia; porém uma e outra não pensavam fora do ideal de grandeza pátria, ou seja, no fundo, do ideal do império. Assim pôde o Império Português, quando por mal ou bem, veio a ser, ser informado por toda a alma de Portugal.
Porém, a ditadura que trazia alguma ordem ao caos republicano, não rumou no sentido de um grande império global, ao invés, conforme a reacção local prevista ao entrangeirismo republicano, voltou a fechar-se na cultura provinciana, tacanha, de dimensão local, ainda que espalhada pelo globo. 
Assim, passados alguns anos já exibe a sua feroz crítica a Salazar
Coitadinho do tiraninho! Não bebe vinho; nem sequer sozinho…
Bebe a verdade; e a liberdade; e com tal agrado; que já começam a escassear no mercado.
Coitadinho do tiraninho!
O meu vizinho está na Guiné; e o meu padrinho no Limoeiro; aqui ao pé, e ninguém sabe porquê.
O rei reside em segredo; no governar da Nação;
Que é um realismo com medo; chama-se nação ao Rei; e tudo isto é Rei-nação.
A República pragmática; que hoje temos já não é a meretriz democrática;
como deixou de ser pública; agora é somente Ré.
Parece-me que a dimensão que Pessoa pretendia em Portugal, era simplesmente a detida pela Grã-Bretanha, e depois pretendida pela Alemanha, na sua pretensão imperial nazi. Mas ao contrário do que previa Pessoa, o comunismo não se resumiu "a comer raízes", e a disputa por um império de influência global, ocorreu no confronto entre EUA e URSS, ambas desprezando ou suprimindo os interesses locais. 
A análise de Pessoa só é mais notável porque facilmente a encontramos plasmada de novo, no confronto entre os interesses nacionalistas locais, e a imposição de impérios de comércio global que destroem ou ignoram a dimensão local, as tradições culturais e a estrutura familiar, e com isso o bem estar individual é sacrificado face ao plano global.

O problema geral de Pessoa seria o mesmo que uma boa parte dos portugueses... nasceram educados nas grandezas passadas, para uma pequenez presente. Como costumo dizer, ou a mãezinha, ou o espírito santo de orelha, disse-lhes que tinham "grande queda", mas nunca encontraram sítio onde cair, onde exibir tão excelso dote. No caso de Pessoa, essa frustração pessoal encontrou maior âmbito como frustração de toda a nação portuguesa, cada vez mais reduzida na sua influência global.

O "Botas", a forma pejorativa como era identificado Salazar, misturando o seu problema nos pés, com uma sarcástica forma de gozo citadino contra o seu provincianismo, não era certamente o líder da ditadura que Pessoa vira como necessária na transição de regime. Por muito brilhante que tenha sido a condução política de Salazar a nível internacional, o país fechou-se, mantendo aberto um império que não acompanhava minimamente o progresso tecnológico internacional. Como se não bastasse o ridículo, por falta de indústria aeronáutica, e por boicote da NATO ao império colonial, os aviões eram sempre uma segunda escolha.
Assim, se Salazar tinha a amizade e pretensões nacionalistas de Charles de Gaulle, ao contrário disponibilizava uma logística miserável ao exército, contando sempre com sacrifício total, como quando não aceitou a rendição de Goa perante o avanço das tropas de Nehru. E esse miserabilismo era razão suficiente para arrogar ao mesmo tempo uma grandeza da nação e uma conformação do povo à pequenez.

Porém, isto serve apenas como primeira parte da tragicomédia de Salazar, que terminará os seus dias com a ilusão de que ainda era Presidente do Conselho.
E a questão é muito simples... se Salazar tinha o poder nacional tão concentrado na sua pessoa, na figura de ditador único e intransmissível, quem então arriscou a decisão de o demitir?
Formalmente, foi o Presidente Américo Tomás, mas este "obviamente, demito-o" foi a perdição do seu concorrente, Humberto Delgado... portanto não seria uma decisão que Américo Tomás tomasse facilmente, e muito menos sozinho. 
Ou seja, a questão é - quem detinha o poder que decidiu colocar Salazar numa casa de bonecas?
Procurei, e estranhamente não vi nenhuma resposta significativa a esta ligeira questão.

sábado, 18 de junho de 2016

Arrisca, seguir à risca

A observação seguinte não é minha, mas fui dar com ela "naturalmente".
Trata-se da semelhança entre as velas representadas em barcos vikings e barcos fenícios:

in http://redqueenwhitequeen.com/wordpress/?page_id=36

Bom, e já aqui tínhamos falado da bandeira da Companhia das Índias inglesa:
Bandeira da Companhia das Indias (B. Lens, em 1700)
onde as riscas vermelhas e brancas, sugerem na forma a bandeira dos Estados Unidos da América, mas sendo igualmente semelhante na disposição à bandeira grega (com a diferença de aí as riscas serem azuis e brancas). O autor do site refere ainda o caso japonês (Rising Sun Flag), mas que é substancialmente diferente na orientação.
Ainda que possam haver cores das velas dos barcos normandos na Tapeçaria de Bayeux, não temos propriamente uma representação colorida do passado fenício, e desconheço se algum historiador refere a forma das velas fenícias, para co-substanciar esta relação vermelho-branca entre velas normandas/vikings e as velas fenícias. Certo parece ser que o vermelho e branco foi ainda seguido nas velas com a Cruz de Cristo. Não é ainda de excluir que parte do legado fenício tenha sido assente na região veneziana, e como o próprio nome indica, a região Venécia e a Fenícia partilharam ligações que Júlio César ligava ainda aos Venetos gauleses, da região da Normandia. (Notar ainda na bandeira de Aragão, que será meia bandeira espanhola com a união dos reis católicos).
Galleaza veneziana  (reconstrução EPFL)

Outra questão é... para onde foi o legado Fenício, da Fénix que renasce das cinzas?
Ou, de que forma o símbolo do pelicano de D. João II, se assemelharia a essa Fénix? 

Como há a suspeita, mais que natural, de navegações fenícias que teriam atingido as paragens americanas, ter riscas fenícias no símbolo da bandeira americana, seria até bastante adequado.
Mas, não é apenas isso.
Com efeito, a maçonaria insiste bastante na história de Hirão Abi, o arquitecto fenício que teria dado a vida para proteger o segredo do Templo de Salomão.

Com a queda de Cartago em 146 a.C., a herança dos navegadores fenícios e cartagineses aparentemente perdeu-se, mas não é de excluir que os judeus tenham tomado para si esse legado, relembrando a velha associação de exploração naval entre o rei hebreu Salomão e o rei fenício Hirão, em direcção às paragens míticas de Ofir.

O poder comercial e o poder militar
A característica principal do poder fenício e cartaginês era a sua faceta comercial, e se houve algo que caracterizou a transformação de Roma, que na sua queda passou a ser o centro de decisão medieval foi o fecho do comércio, que permitiu consolidar o poder militar feudal.

Há uma substancial diferença entre a queda de Cartago às mãos romanas, que é basicamente terraplanada, e a queda de Roma às mãos das invasões bárbaras, já que renasceu imediatamente como único centro de decisão de todas as disputas medievais, através da figura papal que se colocava acima dos reis bárbaros.

Conforme referimos no texto Sete Monarquias, pretendeu-se haver uma continuidade numa certa "Monarquia Universal", que desde o tempo dos Assírios foi passando por diversas mãos, mas só chegou às mãos dos gregos com a investida de Alexandre Magno, e depois passou para os seus generais - Ptolomeu e Seleuco.
Os seleucidas ficaram com o legado fenício, e tal como os cartagineses foram hostis aos romanos até à conquista romana em 60 a.C. Apesar de estar no território seleucida, terá sido mais Alexandria do que Antioquia, a tomar o estatuto de mega-cidade da Antiguidade, após a conquista da Babilónia. 
Na rivalidade natural entre os Seleucidas e o Egipto dos Ptolomeus, levaria uns a apoiar Cartago, pela ligação natural à Fenícia, e os outros a favorecer Roma. 
Assim, a continuidade da monarquia na Antiguidade ficará no Egipto ptolomaico, até ser passada a Júlio César por Cleópatra. É aí que começa a monarquia romana, especialmente com a morte de Cleópatra à chegada de Octávio Augusto, o primeiro imperador.

Mas onde fica mais clara esta circunstância é com o que se irá seguir.
Não é difícil seguir um percurso dos dois lados em confronto.

1) Poder comercial, naval 
Celtas, Fenícia, Grécia, Cartago, Judeus, Árabes, Normandos, Templários, Veneza, Portugal, Holanda, Inglaterra

2) Poder militar, territorial 
Mesopotâmia, Ptolomeus, Roma, Sacro Império Germânico, Espanha, Áustria, Alemanha

Será extenso entrar com cada uma das explicações particulares, mas podemos dizer que a primeira linha terá levado à formação da Maçonaria, enquanto a segunda linha seguiu durante bastante tempo o domínio que a Igreja Romana teve na Europa.

Segue-se uma tentativa de resumo explicativa:

terça-feira, 14 de junho de 2016

Virando para Meca

Saindo de Lisboa, e desviando um pouco dos caminhos habituais, virei um dia para Meca.
Sim, há uma Meca perto de Lisboa, no concelho de Alenquer, pouco conhecida.
Já sabemos que há nomes estranhos em localidades portuguesas, mas não estava propriamente à espera de encontrar aí uma basílica de dimensões assinaláveis, construída ao tempo de D. Maria I (1799), em honra de Santa Quitéria.
Basílica de Santa Quitéria em Meca (imagem)
O estilo da basílica não se afasta muito da Basílica da Estrela, tendo sido construída na mesma altura - e se é óbvio que não tem a mesma dimensão da lisboeta, muito menos tem as dimensões esperadas para uma igreja numa freguesia do concelho de Alenquer.

A fonte para saber mais alguma coisa seria o Portugal Antigo e Moderno de Pinho Leal, que remete para o nome "Espiçandeira e Meca" (pag. 60, Volume 3). 
A aldeia de Espiçandeira tinha um culto a São Sebastião, com uma igreja igualmente interessante, mas muito menos imponente. No Séc. XIX, nalguma reforma administrativa habitual, as freguesias teriam estado juntas, e o nome da aldeia de Meca nem era "oficial".

Pinho Leal refere o seguinte:
Na aldeia de Meca está fundada a famosa igreja de Santa Quitéria, virgem e mártir, que é capela real. É um templo rico e majestoso, e muito concorrido de fiéis de povoações de muitas léguas em redor, pela muita devoção que tributam a esta santa imagem.
Segundo a tradição, no ano de 1238, aparecera num espinheiro, na Quinta de S. Braz, uma pequena imagem de Santa Quitéria, advogada contra a hidrofobia. Edificou-se logo ali uma capelinha para colocar a santa. (...)
Formou-se uma confraria, que veio a ser das mais ricas de Portugal, e no final do Séc. XVII decidiu edificar-se um templo vasto e sumptuoso. D. Maria I, a quem foi pedido auxílio para as obras, deu por várias vezes avultadas esmolas, e as construções principiaram com grande solicitude. É tradição que o mestre de obras não as viu concluir, por morrer da queda de uma das torres. (...)
Concluída a capela, D. Maria I obteve do Papa Pio VI que fosse declarada pertença da Basílica de S. João de Latrão, de Roma, e como tal goza das grandes indulgências e graças espirituais desta famosa basílica. (...)
É um dos mais vastos, ricos e majestosos templos rurais de Portugal. (...)

Portanto, a Basílica de Meca, sendo pertença de Latrão, seria propriedade do Vaticano... o que não deixa de ser curioso. Nada é dito sobre a origem do nome "Meca"... Pinho Leal remete diversas vezes para o nome "Meca", indicando que teria intenção de escrever mais, porém isso não vai acontecer.
Fazendo parte da chamada "região saloia", talvez o nome "Meca" seja remanescente de alguma comunidade muçulmana que ali se tenha mantido, depois da reconquista cristã, mas não vimos nenhuma informação nesse sentido. Já o culto de Santa Quitéria, é tipicamente lusitano, e encontra-se espalhado pelo país, sendo as preces dirigidas para as vítimas de raiva - uma doença ainda mortal, que afligia as populações rurais. A procissão local envolve ainda uma benção aos animais domésticos.

Cabeço de Meca - Chaminé vulcânica
Umas centenas de metros a norte da Basílica de Meca, encontra-se uma cratera com um pequeno lago, que terá tido origem como chaminé vulcânica, em tempos remotos, do complexo vulcânico de Lisboa. 
Cabeço de Meca (imagem - Rui Nunes, 2000)
Este registo é igualmente estranho, pois não sabia de "lagos vulcânicos" no continente (nos Açores são bem conhecidos)... ainda que este seja pequeno e tenha sido bastante destruído pela exploração mineira de basalto, que terá danificado significativamente a forma da cratera da chaminé vulcânica original. 
Google Maps - Cabeço de Meca 
O "cabeço" também aparece com o nome de Santa Quitéria, e não será de excluir que para a hidrofobia (raiva) fossem consideradas as águas da lagoa vulcânica como alguma forma de cura.
Na sua forma actual, tendo sido destruídas paredes laterais, a lagoa não terá aspecto muito diferente de um vulgar charco de uma pedreira, mas ainda assim nota-se bem a forma do "cabeço".

Meca-ventos
No mapa da Google notam-se ainda umas ruínas - provavelmente da antiga exploração mineira, mas não tendo encontrado nada sobre isso, fui parar não muito longe, a umas ruínas igualmente interessantes, a sul, já à vista de Lisboa - no cabeço de Montachique.
Sanatório Grandella - Cabeço de Montachique (imagem - Paulo Benjamim Cardoso)
Já aqui falámos dos Macavencos, uma sociedade "secreta" presidida por Grandela, que reunia vários bon.vivants de Lisboa (incluindo Rafael Bordalo Pinheiro, Bulhão Pato, Ferreira do Amaral, etc.), e que serviria um pouco como escaparate sexual, ou bordel, para devaneio de alguns maçons na transição para o Séc. XX.

Na sua faceta de benemérito, ciente dos problemas de saúde no início do Séc. XX, Grandela terá financiado um sanatório para "raparigas indigentes e tuberculosas", ou como é dito no anúncio abaixo transcrito - aceitava também "candidatas a tuberculosas", o que reflectiria melhor o espírito do clube Makavenko. 
Anúncio do Sanatório Grandela pelo "Clube dos Makavenkos"
Já meio apagado, deveria ler-se a citação do Antigo Testamento - Eclesiastes - Cap. III, que reúne duas frases do ideal hedonista do clube dos Makavenkos:
12 - Descobri que não há nada melhor para o homem do que ser feliz e praticar o bem enquanto vive.
13 - Descobri também que poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho é um presente de Deus.

O imóvel não terá sido completamente acabado, e na prática o sanatório nunca terá funcionado, mesmo depois de doado a uma associação nacional de tuberculosos. No entanto, apesar disso no alto do cabeço de Montachique, com uma vista esplêndida sobre Lisboa, as suas ruínas ficaram hoje como um monumento digno de nota.

Mecânica
Para a mecânica universal, não há qualquer acrescento cognitivo quando os homens são felizes, tendo razões materiais para isso, e igualmente muito pouco, quando complementam isso com alguns actos de generosidade colectiva. A grande interrogação cognitiva do Mecanismo universal é entender a disposição dos restantes, na ausência de tudo isso.
As regras mecânicas conhecidas servem a tecnologia, que nos serve, mas na ausência de mecânica conhecida, surge o deus ex machina, uma última esperança de que há uma lógica ulterior que poderia impedir profundas injustiças. Enquanto a população de Meca e arredores endereçava preces para uma cura de raiva, de hidrofobia, numa última esperança de que a mecânica universal se vergasse perante as suas orações, os makavenkos encaravam-se como pequenos deuses, por dominarem pequenas regras do mecanismo, pelo simples facto de terem acesso a uma herança de botões negados aos restantes. Ora, não é novidade nenhuma que os botões controlam um mecanismo, e que a potência pode ser exercida. É com a potência dos maxilares que os animais predadores dilaceram as presas, desde o tempo em que se definiram predadores e presas. Pode parecer estranho, mas ainda assim faz parte de uma mecânica evolutiva, que a mãe de uma cria esteja disposta a arriscar a sua vida por ela... pois está em causa o seu material genético. Agora, o que ultrapassaria toda a mecânica, que se faz do passado para o presente, seria que houvesse homens capazes de se sacrificar a sua vida por uma causa humanitária, que não lhes traria nenhuma vantagem pessoal. E a partir desse momento, a mecânica maternal, que se faz do passado para o presente, deixa de ser o único factor em jogo. Entra em jogo a mecânica paternal, que se faz do presente para um futuro com sentido racional, numa racionalidade que não está escrita do passado por uma ciência exterior, mas sim se escreverá por uma avaliação interior, com valores universais e intemporais, escritos em espirais murais que definiram a igualdade nos nossos espíritos morais.

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Nota adicional (17/06/2016)
Alguns links deixados pelo comentador J. Ribeiro:
- Basílica de Meca - por J. Hermano Saraiva na RTP
- Sanatório Grandella - reportagem Abandonados na SIC

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A teia global

A designação Dios ao invés de Zeus é frequente quando olhamos para transcrições dos textos gregos, e não para as suas traduções. A wikipedia espanhola fala numa excepção gramatical, de declinação para o genitivo.
En griego el nombre del dios es Ζεύς Zeús en el caso nominativo y Διός Diós en el genitivo. Las formas más antiguas del nombre son las micénicas di-we y di-wo, escritas en lineal B.
Interessa que, aprendida essa justificação, os tradutores invariavelmente omitem qualquer menção a Dios como nome alternativo a Zeus, nem para dizer que seria um equivalente de escrever "de Zeus". Acresce que aparecem outras declinações (como Diés), pelo que a excepção terá como causa muito provável evitar confundir o nome Deus com o nome Zeus, ainda que em português é preciso ser um pouco surdo para não notar uma semelhança. Isso resultará ainda da outra variante Θεός, transcrita como Theos, associada à divindade.
Como já referimos há bastante tempo, consta ter havido uma introdução de novas letras gregas após a Guerra de Tróia, e aí se incluem o zeta e o theta, sendo assim natural suspeitar que o original fosse o mesmo e escrito como Dio, conforme sugere a mais antiga escrita Linear B.

É ainda natural que a divindade correspondesse ao Dia, não no aspecto de Hemera, mas sim na suas vertente de tempo, unidade de contagem... e no seu aspecto de luz, associada ao Sol. Enquanto unidade de tempo, o Dia-Zeus seria naturalmente visto como o filho do Tempo-Cronos, assim como pela sua ligação ao Sol, estaria colocado no topo das divindades, como os egípcios faziam com  (também lido em copta como "Rei"). O que mais ensombraria os dias seriam as suas manifestações com tempestades, trovões e relâmpagos, entendidas como armas de Zeus. Qualquer uma destas divindades esteve associada ao "touro".

Curiosamente acresce que a habitual transcrição deturpada do upsilon em ypsilon, ou seja de ύ em y, não é feita neste caso... se fosse feita, de Ζεύς falaríamos em Zeys e não em Zeus (e talvez fosse apropriado ser conotado com o número 6, pelo menos em português, e triplamente sendo a terceira divindade na teogonia, após Úrano e Cronos).

Também Úrano é escrito como Οὐρανός ... devendo ler-se Ouranos, ou usando o y seria Oyranos, e não deixa de ser significativo que tanto temos "ouro" como "oiro", ou ainda "touro" e "toiro", provavelmente relevando dessa variação propositada de transcrições.

Nada tem de especial este assunto, apenas reitera a desconfiança em todo o legado antigo que se arrasta como uma permanente codificação desde a Antiguidade, destinada a baralhar as fontes, separando coisas iguais, ou juntando coisas diferentes.

Afinal, quando falamos em filosofia ateia vamos ao grego para explicar para explicar filo como amiga do saber sofia, e em que o prefixo a nega a religião teia, numa variante no feminino do theos divino (ou di vino, de vinho, como sangue presente na Eucaristia).
Porém parece naturalmente vedado associar a teia à religião.
Também se fala mais facilmente em rede global do que em teia global, sendo que a palavra web se usa mais para a teia da aranha.

El ... "eles"... "seus"
Uma divindade do panteão antigo judaico é El, nome da divindade suprema dos Cananeus, também usado em hebreu, que na sua vertente plural é Elohim.
El (divindade)
El seria depois considerado pelos judeus como Deus único, na forma de Jeová, numa vocalização próxima à do romano Jove, o correspondente a Zeus, também escrito como Jupiter.
Na sua forma plural, seria natural nós declinarmos El como Eles.

"Eles"... é ainda o nome culpado numa boa parte de "teorias de conspiração" que vemos circular. Mesmo que se evidencie um nexo de culpabilidade de "alguém", é depois muito mais difícil de concretizar e apontar culpados, surgindo assim facilmente "eles" como uma entidade impessoal, culpada naturalmente. Depois é frequente ouvir perguntar:
- Mas quem são "eles"?
Ora, e "aí é que são elas", porque a menos que o sujeito invoque os culpados de serviço (maçons, judeus, etc...), dificilmente consegue apontar alguém em concreto.

É pois interessante que, ao fim de tantos milénios, se use quase o mesmo nome para agentes não identificados que condicionavam o bom desenrolar dos acontecimentos. Antes seriam divindades, hoje serão "eles"... mas estes "eles", ainda que humanos, parecem estar numa esfera igualmente inatingível ou imprescrutável.

Acresce que os motivos, igualmente não declarados, são "seus", tais como seriam os de Zeus ou de Deus... e mais uma vez se mantém a forma não prescrutável das suas intenções finais.
Só que aí o problema é bem mais vasto, e, se podemos vislumbrar nexos fáceis, tipicamente animais, em acções de favorecimento, para benefício competitivo, num padrão evolutivo darwiniano, parece também claro que isso só explicaria a faceta pouco profunda do problema. Ou seja, ainda que "eles" julguem que sabem, que têm um nexo e orientação na sua acção, é inevitável que não façam a mais pálida ideia, e assim, os nossos "eles" têm outros "eles" que os condicionam a "eles". Reduzir "eles" a um único senhor, a um único "el", não adianta rigorosamente nada. Mas, mesmo chegados ao topo da pirâmide de poder, restará toda a impotência... faceta clara de uma realidade que não é sonho individual.

E há uma coisa completamente clara...
Quem se tiver em pouca conta, pode considerar que o seu destino está condicionado pelo exterior, estará sempre sujeito a uma potência externa, mais humana e previsível, ou menos humana e imprevisível, pode considerar que está a ser avaliado superiormente, pelas suas acções.
No entanto, quem não reduzir o seu papel a coisa nenhuma, deve ter em atenção que o nosso papel não é somente de ser condicionados e avaliados.
O papel principal de cada um é o de ser, ele mesmo, avaliador de tudo o presencia. A avaliação do próprio pouco conta para o conjunto se for pessoal e subjectiva, mas será incomensuravelmente devastadora se, elevando-se acima das suas aspirações mundanas, for objectivo e compreensivo.
Porquê? Porque podemos aceitar uma provação sendo prova de ser são, mas devemos rejeitar todas as que não são. Aceitar insanidades é um caminho que leva apenas a um universo insano, que não tem sustentação na realidade. E a realidade será o único sonho onde até as insanidades terão a sua justificação, com a devida compreensão... será o único sonho para o qual não é possível deixar de acordar, porque não resta outra realidade que o sustente enquanto tal.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

O "António Maria" (1892)

Os ingleses tinham o "John Bull", desde o tempo de Gillray, mas parece-me que o "Zé Povinho" foi apenas definido por Rafael Bordalo Pinheiro, quase um século depois.
Rafael Bordalo Pinheiro usou abundantemente a figura do Zé Povinho na sua publicação regular sarcástica denominada:
"António Maria" (1879-1885, 1891-1898)
cujos volumes estão disponíveis no link (que remete para a Biblioteca Nacional Digital). 

Para compreensão do final do Séc. XIX em Portugal, dificilmente se encontra muito melhor.

No início do ano de 1892, Bordalo Pinheiro faz o tríptico seguinte, em que representa a transição entre os anos 1890-91-92, altura do ultimato e de grande crise financeira que leva a uma bancarrota parcial.
No periódico "António Maria" de Rafael Bordalo Pinheiro aparece este Tryptico - 1890-91-92  (clique p/aumentar)
A situação era explicada de forma razoavelmente simples, pelo "semítico" Ano 1891:
- Em 1890 houve o Ultimato Britânico onde Portugal foi forçado a abdicar do Mapa Cor-de-Rosa.
- Em 1891 ocorreu a bancarrota, pelo incumprimento do pagamento da dívida no padrão-ouro.
- Para 1892 o legado deixado era papel da Casa da Moeda - sem correspondente no padrão-ouro.

Ou seja, já em 1891 houve a tentativa "habitual" de resolver o problema da dívida, criando uma moeda alternativa, para dinamizar a economia interna... a chamada solução Keynesiana - o estado inventava dinheiro de forma a convencer os cidadãos a acreditarem no seu valor, e assim produzirem mais.
A desvalorização tornou o "conto de reis" (um milhão de reis) numa moeda corrente, porque a desvalorização ocorreu progressivamente na proporção aproximada de 1000 para 1, que levou à introdução do "escudo" como "mil reis", já em tempo republicano, 20 anos depois.

As únicas formas conhecidas de os estados se protegerem contra a demagogia política resultante do caos económico imposto por potências externas, levaram praticamente sempre a regimes totalitários - ou seja, o fascismo ou o comunismo, na sua faceta de reacção nacionalista contra o ataque externo.
Foi assim que os regimes fascistas de Mussolini, Salazar ou Hitler, procuraram restaurar as frágeis repúblicas expostas ao comércio externo, definindo regimes nacionalistas que produziriam tudo internamente, livrando-se do jugo imperialista do comércio externo. Não foi diferente com o Japão, após a imposição americana (ilustrada por Madame Butterfly), e também não foi diferente a tentativa de Lenine e Estaline de procurarem definir uma auto-suficiência interna, algo igualmente seguido por Mao Tse Tung, dado o historial da Guerra do Ópio.

Portugal no Séc. XIX ficou a pagar indemnizações à Inglaterra pela ajuda nas Guerras Napoleónicas, e a sua dívida foi aumentando sucessivamente. Essa sangria económica servia para acompanhar o progresso dos tempos - na altura a construção de vias férreas, comboios, etc... A dívida teria chegado a 75% do PIB, mas os juros eram muito maiores e chegavam a representar 50% do orçamento.

Para entendermos melhor esta situação, convém relembrar o que aconteceu com Cartago.
Cartago tendo perdido a 1ª Guerra Púnica, negociou primeiro uma paz, para obter a clemência romana, Nessa altura Roma não precisava de se incomodar em explorar as minas ibéricas - os cartagineses faziam isso por si. Todos os anos entregavam um pesado tributo de prata e ouro para manter a paz.
É claro que a exploração mineira de territórios da Ibéria dava motivos de protestos, que os romanos incentivavam... Portanto, os cartagineses exploravam alguns ibéricos, para pagar aos romanos, que por sua vez apoiavam esses mesmos ibéricos contra os cartagineses.
Roma deixava todo o odioso em Cartago, mas era Roma quem beneficiava da exploração ibérica, pelo tributo exigido a Cartago. 
Qual era a alternativa de Cartago? 
- Bom, tendo falhado a incursão de Aníbal, que esteve às portas de Roma, ao perder a 2ª Guerra Púnica, ainda ficou com tributo mais pesado, para evitar a escravidão.
Roma ainda hesitou se haveria de destruir Cartago, mas com o fim do prazo de 50 anos desse tributo, decidiu não arriscar mais, e Cipião varreu Cartago do mapa.
Uma geração de cartagineses acabou por trabalhar gratuitamente para os romanos, para que depois estes, ainda mais fortalecidos, aniquilassem por completo os seus filhos cartagineses, na 3ª Guerra Púnica, que foi praticamente uma chacina.

Esta receita tem sido aplicada sucessivamente...
Também o líder inca Atahualpa ofereceu o maior resgate da história a Carlos V, o que só serviu para financiar os seus exércitos na Europa, e expedições contra os turcos - nenhum resgate mudaria a intenção dos espanhóis em aniquilar o império inca.

A situação só foi ligeiramente diferente na Europa durante o tempo de intermediação papal, não impondo tratados que condenavam os estados a submissões ad eternum. Com o fim da influência papal, pela derrota na Guerra dos Trinta Anos, os "tratados de guerra" vieram a definir de novo a política mundial, como única lei internacional.
A maçonaria gabava-se de ter terminado assim com a influência papal, que proibia quaisquer negociações de tratados com infiéis. E se essa evolução permitia negociar com os infiéis, não havia propriamente nenhum limite máximo, ao que lhes poderiam exigir.
Seguiu-se assim um tempo de subjugação colonial, em que o equilíbrio inicial foi rapidamente modificado tecnologicamente.

Essa pretensa evolução da maçonaria, abolindo a mediação papal, foi um certo regresso à Antiguidade, ao ponto de não se ver nenhum problema em reintroduzir a própria ideia de escravatura, pelo menos no contexto colonial. A potência dominante praticamente poderia exigir o que bem lhe apetecesse.
Isso terá causado um incómodo interno, que foi levando aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, mas Rafael Bordalo Pinheiro era bastante sarcástico sobre a República.
Num cartoon colocou dois negros a comentar:
- Com a República seremos todos iguais;
- Sim, seremos todos brancos;
- Não, seremos todos negros.

Assim, no Séc. XIX já era bastante claro que a forma de impor um poder global sobre os estados, era torná-los dependentes de uma economia global. A diferença do poder papal, que usava a fé cristã na versão do poder católico de Roma, seria substituída pela fé no dinheiro, volátil, na especulação dos mercados na City de Londres e depois Wall Street.

A forma como a França negociou o Tratado de Versalhes, foi praticamente com condições ruinosas para a economia alemã, levando a que praticamente até à ascensão de Hitler, os alemães não tivessem qualquer hipótese de se reerguer economicamente, tendo mesmo sido alvos de uma invasão francesa do Ruhr quando não cumpriram as exigências draconianas.
A forma como os EUA negociaram depois a reconstrução europeia foi bastante mais inteligente, dando uma margem de esperança, e não de submissão completa, quase ao ponto esclavagista.

É essa transição entre uma prisão feita pelos tratados - na maioria das vezes com cláusulas secretas, e desconhecidas do público, e uma prisão feita pela desproporção económica, definida pela fé no dinheiro, que Rafael Bordalo Pinheiro ilustra neste cartoon de 1890-91-92.

As cláusulas dos tratados seriam intoleráveis, e incompreensíveis pelas populações, levando facilmente a movimentos nacionalistas, que gerariam guerras intermináveis.
Ao invés, a herança de uma dívida, poderia ser mais facilmente aceite pela geração seguinte, atribuindo à própria governação do estados a culpa dos desvarios económicos da geração anterior.

Mas, a grande novidade, que reuniu um grande consenso global, nada teve a ver com nacionalidade, mas apenas com a definição de classes sociais. Nesse sentido houve uma grande herança da política da Idade Média, trazida para os tempos modernos pela maçonaria. Também na Idade Média, as guerras entre nações não eram o principal problema... a aristocracia era uma grande família europeia. A única coisa que a maçonaria fez foi alargar muito a dimensão dessa família, ou a ilusão de dimensão dessa família.
O grande problema foi sempre manter toda a população num estado de vassalagem, de milhões de servos ao serviço de escassas centenas de senhores, e de tentar obter o máximo rendimento desses servos, dando-lhes a ilusão de democracia. Mas, o "demo" a combater foi sempre essa massa perigosa, pouco controlável, que tinha tanto de génio criativo, como de mau génio destruidor. A fé religiosa serviu durante séculos, mas à custa de uma estagnação... o que a maçonaria trouxe de novo foi convocar líderes de todo o lado, para essa grande missão de educar o povo na fé do progresso. Como o progresso comunista se revelou como uma mera forma de aristocracia, com perigos de dissolução pela realidade, a grande aposta manteve-se na manutenção da ilusão capitalista, servida como sonho de todos poderem ascender à idolatria material, em troca da simples fé no dinheiro.

Ora, o problema é que, em última análise, o dinheiro deveria ter algum correspondente no ouro guardado... sob pena de ser mesmo uma completa ilusão de fé. Aos rumores de que o ouro guardado em Fort Knox, já pouco tem de ouro, surgiu a questão de se estar apenas a imprimir papel, pois já não há qualquer ligação ao padrão-ouro, perdida nos acordos de Bretton-Woods, que levaram à formação do FMI. No entanto, o papel da moeda, já não é a produção, nem a dinamização de nenhuma economia, é uma simples lógica de manter o poder na aristocracia existente. Assim, o grande intuito da economia mundial actual é simplesmente evitar que a ideia de riqueza se possa co-substanciar, já que a capacidade produtiva mundial, sendo distribuída, tornaria praticamente todos livres do medo da pobreza.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Operação Tocha

Gastão Ferraz, o espião
Não são muitos os que conhecem o nome Operação Tocha e ainda menos os que sabem do famoso espião português Gastão de Freitas Ferraz, sendo que tudo isto não se passou agora, mas sim há quase 75 anos, no contexto da 2ª Guerra Mundial.

A Operação Tocha consistiu num ataque combinado das forças aliadas no Norte de África, em 8 de Novembro de 1942, em Marrocos e na Argélia, visando cercar a exército de tropas alemãs africanas - o Africa Korps. O sucesso desta operação militar levou à rendição completa do Africa Korps, seis meses depois, em Maio de 1943.

O nome de Gastão de Freitas Ferraz foi amplamente divulgado em 3 de Março de 2009, quando a imprensa internacional foi instada a contar a história através dos seus jornais. Por exemplo:
  • dailymail.co.uk Revealed-Allied-invasion-North-Africa-saved-dramatic-arrest-spy
  • telegraph.co.uk Enigma-machine-helped-Royal-Navy-to-intercept-German-spy
  • spiegel.de Der Spion, der beinahe die Alliierten stoppte
  • dn.pt o-portugues-que-espiou-para-as-forcas-de-hitler
  • rtp.pt secreta-inglesa-ponderou-afundar-navio-portugues-para-informacoes-nao-chegarem-aos-alemaes

(as notícias portuguesas são já de 4 ou 6 de Março), revelam os detalhes da informação após abertura de ficheiros classificados do MI-5 britânico.

A história não é nada de especial... aparentemente os alemães pagavam 1500 escudos/mensais a Gastão Ferraz, um radio-telegrafista do navio Gil Eanes por informações relativas à posição dos navios aliados no Atlântico Norte. O navio Gil Eanes acompanhava as expedições da grande frota portuguesa que pescava bacalhau ao largo do Canadá, e servia de navio-hospital. 
Acontece que Gastão Ferraz percebeu os movimentos aliados, e preparava-se para denunciar a Operação Tocha aos nazis, já que o engodo seria pensar que se tratava de um desembarque na Europa (Itália e/ou Noruega), quando na realidade o desembarque ocorreria em África (Marrocos e Argélia). 
Segundo as notícias veiculadas, o espião português teria sido denunciado pela intercepção de comunicações pela máquina Enigma, uma semana antes da invasão, e a importância da detenção foi considerada ao ponto de poder ter invertido o curso da guerra, se comprometesse a Operação Tocha. Aliás, os ingleses consideraram mesmo a hipótese de afundar o Gil Eanes, caso não tivessem podido prender Gastão Ferraz, que acabou depois por ser libertado no final da 2ª Guerra.

Surge esta história a propósito da notícia que apareceu no final do dia de domingo:
já que no dia seguinte, parece que só a imprensa nacional noticiava este novo caso de espionagem, de Frederico Gil, um filósofo maçon, empregado pelo SIS, que alegadamente teria revelado segredos nacionais aos russos. 
Bom, como desde o tempo de Cristovão Colombo (segundo alguns um espião de D. João II), que não se conhecia bem o grande interesse de potências estrangeiras nos segredos nacionais, ficámos mais descansados ao saber que afinal o SIS não tinha mais segredos do que coisas da NATO... ainda que nos fique a dúvida sobre a confiança que a NATO depositaria no SIS, depois de Silva Carvalho no caso Ongoing
Porém, parece que não restam grandes dúvidas neste caso - afinal o filósofo andava interessado em russas, ou mulheres de leste (algo muito suspeito em Portugal...), e como qualquer bom espião, partilhava secretamente o seu interesse pela Rússia na sua página do facebook
O The Telegraph sinaliza agora que o caso é ainda mais ridículo, porque ao contrário do habitual, o espião do lado russo nem sequer tinha imunidade diplomática, e assim foi também preso! Portanto, para não restarem dúvidas, deveria ter mesmo um cartão de identificação como espião ao serviço de Putin.
visitas de 26/4 a 25/5/2016
Para nos juntarmos a estas provas notáveis que a imprensa manda cá para fora, observamos que no último mês tivemos um número elevado de visitas da Rússia, talvez porque Putin se preparasse para revelar aos portugueses que tinha sido a NATO a orquestrar o 25 de Abril... um golpe perigosíssimo na opinião pública nacional, como se viu.
No entanto, atendendo a que o maior número de visitas se realizou nas últimas semanas, ultrapassando largamente o número de visitas portuguesas ou brasileiras, talvez seja mesmo um interesse filosófico!
Seja como for, acabaram-se as visitas russas desde domingo e pronto, assunto resolvido - os russos em Portugal não espiam mais!

Como se o ridículo não chegasse, basta considerar que desde a sua criação, o PCP é praticamente uma delegação russa em Portugal, pelo que pensar que há segredos nacionais que a Rússia desconhece, é um pouco como assumir o mesmo relativamente aos EUA ou Inglaterra. Aliás é sabido que no pós 25 de Abril a URSS nem teve que pedir segredos, quando os havia guardados, foram os próprios militantes portugueses que tomaram a iniciativa de os enviar...
Parece-me que fica o aviso aos operacionais do SIS - namoradas russas, nem pensar!

domingo, 22 de maio de 2016

Discurso do mééé - todo! (5)

Uma prova de que o "subconsciente" nada tem a ver connosco é razoavelmente evidente. Afinal, se nos lembramos do nosso papel enquanto observadores de uma ilusão fabricada num sonho, nunca nos lembramos do nosso papel enquanto criadores dessa ilusão. 
Ora, se um sonho fosse fabricação do próprio, qual a razão pela qual a memória só registaria o nosso papel enquanto observadores, e nunca o papel enquanto criadores dessa ilusão?
A questão é que quando fabricamos um enredo ficcionado, entendemos a razão da sua criação, não nos colocamos de fora, assumimos o controlo. Acontece por vezes, ao acordar, querer prolongar o sonho, e aí não hesitamos em estar conscientes de ambos os lados; mas se inventarmos a sequência, deixamos de estar num sonho, estamos apenas a fabricar um prolongamento da história enquanto Autores. Ao assumir esse controlo, não se trata de um sonho, mas apenas de um pensamento, de uma idealização de uma história.

Desde os primeiros tempos em que se inventaram contos, em que um Autor idealizou uma situação com diversos personagens que não correspondiam a nenhuma ocorrência real; desde essa altura, que o Autor se deve ter visto num papel semelhante ao de um Deus, com carácter discricionário sobre o destino das personagens. 
Porém, mesmo nessa situação, em que aparentemente o Autor detém todo o controlo sobre o destino dos personagens, há um elemento de imprevisibilidade que nem o Autor controla... porque simplesmente o próprio não prevê o seu próprio pensamento
Numa peça elucidativa deste aspecto - "Seis personagens à procura de um autor", de Luigi Pirandello, os personagens podem ganhar uma vida própria no espírito do Autor, de forma que confrontando o próprio com os seus valores, podem questionar o seu destino na peça, quanto ao nexo, à clareza, à justiça ou equilíbrio dos seus papéis.
Pirandello (ao centro) - "seis personagens à procura de um autor" (imagem)
Para além disso, os personagens quando não reduzidos a uma única obra, ganham uma vida própria na mente dos leitores, que pode ser bastante diferente da idealização do Autor, influenciando-o quanto ao desenho ou desfecho de novos capítulos da série.

Quanto aos personagens da "vida real" vemos facilmente dois tipos de atitudes. No contexto religioso, o crente, temeroso obediente à potência do Autor, procurará evitar um destino nefasto na história. Ou ainda, sendo um personagem escolhido para sofrer num livro, terá a esperança de ser escolhido para usufruir, na última obra... intitulada "Paraíso". Fora do contexto religioso, normalmente os "porquês" são banidos, é assim "porque sim"... e a ciência não se preocupa com "porquês", diz apenas como é, mas reserva a cada um a ilusão de que tem potência própria para modificar o seu destino, ou uma parte dele. A versão científica oscila actualmente em admitir que o passado determina o futuro, ou que há um factor caótico que escreve a história, em substituição à escrita divina. Isso é praticamente uma mudança do nome e qualidade do Autor, e não propriamente uma mudança substantiva. Consiste basicamente em definir o Caos como Deus, e entendê-lo como cego e surdo a preces.

Primeiro, convém entender que ninguém escolhe o contexto em que aparece, e as escolhas que vai fazendo são tão ou mais determinadas por esse contexto, do que propriamente por opção pessoal. Acresce que um "criativo", a menos que copie outra obra, pode ter uma ligeira ideia do que pretende, mas só no final da obra feita verá o resultado. Portanto, a ideia de que um autor controla por completo o processo de criação é completamente ilusória. Na melhor das hipóteses, foi fazendo escolhas de vida que favoreceram o aparecimento natural de certas ideias, que depois levaram à obra final... e só isso conseguirá explicar. Havendo várias pessoas em circunstâncias semelhantes, é praticamente uma questão de "sorte" surgir uma ideia num e não no outro. Mas não é uma questão de sorte fazer uma obra literária japonesa, sem saber japonês, nem é uma questão de sorte ser um mestre em xadrez, sem saber as regras... esses casos são simplesmente fraudes, ou impossíveis.

De igual forma, é mera fraude pretender que a Austrália, estando na rota de múltiplas viagens, de portugueses, espanhóis, holandeses, franceses, etc... não foi descoberta na parte oriental até que Cook ali desembarcou. É fraude semelhante pretender que na sua primeira viagem Colombo tenha sido o único a lembrar-se de navegar para Ocidente, quando desde Diogo de Silves, os portugueses fizeram inúmeras viagens para os Açores, e mais além. 
Ou seja, mesmo que a história seja uma obra de ficção posterior, compromete os autores e actores a encenação que nos ensinam, de uma palhaçada sem sentido nenhum.
O problema não é ser difícil apurar a verdade, o problema é ser ensinada uma mentira descarada... ao ponto de fazer mais credível uma mitologia, como fonte de informação verdadeira.
Por isso, por muito estranhas que possam parecer algumas hipóteses que fui aqui colocando, todas elas merecem mais a denominação de História, do que a historiazinha bacoca e infantil que é divulgada e ensinada. Não por serem considerações verdadeiras, mas apenas por não se resumirem a invenções evidentemente falsas.

É claro que quando temos uma boa parte da população a preferir ter a benção divina, seja jogando rios de dinheiro em jogos de sorte, seja favorecendo fraudes do poder, que lhe dão um quinhão da renda, seja aceitando qualquer forma de ganhar mérito sem o ter, invocando deuses ou poderosos para as suas ambições pessoais, então essa população nunca será livre. Estará sempre presa a um mundo de ilusão, que lhe promete tudo, em troca da fidelização da sua alma à falsidade... e se for um paraíso, será apenas um paraíso canino.
E a revolução não é feita na forma de nenhum movimento a que se pertença, porque pertencer é o primeiro passo para deixar de ser. A fidelidade a uma causa é o primeiro passo para comprometer a liberdade, e a importância das coisas nunca será medida pelo número de adeptos, mas apenas pela sua intemporalidade. A Gioconda, ou mona lisa, será o quadro mais importante do Louvre, mas o que é mais notável nesse quadro é que passaria completamente despercebido, e ninguém lhe faria a menor menção, se não tivesse sido assinalado na nossa educação como obra fundamental a ser vista. O que é mais notável nesse quadro é que ilustra como funcionamos como carneirada, que se dirige aos pontos escolhidos pelos pastores, bastando para orientação uns quantos latidos caninos. E em coro fazem mééé... partilhando entre nós o foco de atenção escolhido, aguardando novas instruções para novos focos de atenção; sempre negligenciando a própria opinião, e esquecendo que para descobrir a nossa importância, para sermos livres de todos os medos, de pouco ou nada adiantará seguir qualquer manada.

sábado, 21 de maio de 2016

Discurso do mééé - todo! (4)

Já perdemos algum tempo a falar sobre o 1, e iremos agora falar sobre o 2.
Sobre o 1, que é o solipsismo, há ainda mais a dizer, mas para não bater na mesma tecla, passamos ao 2, que é um dualismo, mas não é o dualismo corpo-espírito. 
A quantidade 2 que aqui interessa notar, resulta da diferença entre o próprio e tudo o resto, ou seja, da diferença entre o "eu" e o "não-eu". Este "eu" não diz respeito ao corpo, porque mesmo quando sonhamos não deixamos de evidenciar um "eu" que é o nosso personagem no contexto do sonho, e que é confrontado com um "não-eu", ou seja é confrontado com um desenrolar de acontecimentos, que não controla.
Características idealizadas dos 2 hemisférios cerebrais (imagem)
Indo para um contexto que será mais simples, como se entende que o cérebro tem 2 hemisférios, poder-se-ia admitir que um hemisfério estava encarregue de fazer o papel do "eu" enquanto o outro hemisfério tinha a cargo construir o cenário do "não-eu", no sonho. Ou seja, o hemisfério do "não-eu", o subconsciente, ficaria encarregue de construir a ilusão que apresentaria ao hemisfério do "eu", o consciente... e que este aceitaria como realidade momentânea, só depois entendida como sonho. Isto pode até ser uma teoria psicológica, se alguém se tiver lembrado dela.
Não interessa. Interessa sim que há dois, e apenas dois... observador e observado.
No solipsismo estes 2 são induzidos a serem encarados como 1, porque por influência social se remete ao próprio o duplo papel. Ou seja, não só se admite que o próprio sonhou, como se remete a si a construção do sonho; usando a personagem mágica do "subconsciente" para varrer a contradição para debaixo do tapete. E é uma contradição porque o "eu" não pode ser identificado ao que não controla.
Por isso, considerarei apenas como "eu" a parte consciente, sobre a qual o próprio tem algum controlo, no sentido em que percebe o nexo de causalidade que leva às suas acções. A ideia da autoria do sonho ser remetida ao próprio não faz qualquer sentido, ou digamos faz tanto sentido quanto depois o próprio achar, enquanto solipsista, que é autor ou criador de toda a realidade, quando praticamente não controla rigorosamente nada.

Ora um sonho pode ser suficientemente complexo, e somos confrontados com cenários onde há mais que um personagem inteligente que interage connosco. Portanto esse "não-eu" que constrói o sonho, ainda que seja apenas um criador, pode manifestar-se como diversos personagens. 
No entanto, ao invés de pensarmos como habitualmente, não atribuímos a cada personagem que nos aparece no sonho uma individualidade própria. Ao contrário, somos induzidos a pensar que todos os personagens são apenas criação de uma única entidade - o tal "subconsciente". 
Curiosamente, em situação inversa, sendo confrontados com diversos personagens na realidade, ou seja diversas pessoas, desde familiares, amigos ou desconhecidos; ninguém sequer conjectura que todos esses personagens sejam apenas resultado de uma única entidade; que se manifesta de diversas formas. Quando falamos de realidade deixa de haver qualquer "subconsciente" a criar e controlar diversos personagens. Ou seja, por semelhança, assumimos que os outros são iguais a nós, e só em raras situações alguém pensará como os gregos - que consideravam que os deuses se poderiam manifestar como humanos.

Descartes, reconhecendo a sua falta de controlo, e a existência de inteligência que não é sua, remete rapidamente todo o seu "não-eu" para a noção de Deus. Portanto, é como se Deus fosse identificado ao papel de "subconsciente", em completo controlo da criação e do desenrolar do sonho... que no caso divino seria toda a realidade.
Descartes não diz isso, mas dificilmente poderia argumentar saber distinguir o discurso do padeiro do discurso divino... afinal, enquanto ser omnipotente na criação e controlo, Descartes nunca poderia negar a Deus a possibilidade de se manifestar sob que forma fosse. Há ainda registo de quem tivesse identificado o discurso de estranhos a um discurso divino, porque simplesmente a complexidade do discurso não fazia sentido naquele personagem - acontece por vezes com crianças.
Portanto, a dualidade manifesta-se pela existência do "eu" e do "não-eu", mas é algo ilusório pretender separar o "não-eu" em diversos personagens, cada um com identidade diferente. É claro que cada um sabe que é diferente, mas não tem forma de garantir a um terceiro que está nas mesmas circunstâncias.
Por exemplo, podendo ter aqui diversos comentadores, objectivamente não tenho qualquer forma de concluir que há mais do que um, já que um apenas basta para se fazer passar por muitos.

No entanto, há uma outra entidade que nos é oferecida, e que só negamos se quisermos ser cegos.
Essa 3ª entidade é composta por todas as coisas imutáveis... que não dependem do nosso controlo, nem do controlo de mais ninguém. A 3ª entidade é a linguagem, ou melhor as noções abstractas onde assenta a nossa linguagem.
Podemos duvidar de tudo, mas nesse caso podemos duvidar dessa dúvida?
Temos a noção dos números, e então quem se atreve a dizer como se termina com a existência do número 1, 2 ou 3? Ou mesmo, quem ousa negar que 1+2=3 é uma relação imutável?
A partir do momento em que essas noções abstractas se formaram, nunca mais será possível terminarem... mesmo que se proíba a linguagem, ou que se liquidassem todos os seres pensantes, estas noções uma vez pensadas não têm forma de terminarem.

Por estranho que pareça, aparece normalmente quem ouse questionar o inquestionável... Descartes sente necessidade de justificar mesmo a sua existência com o pensamento. 
Górgias favorecendo a sua tese níilista, ao duvidar de tudo, argumentou que isso não implicaria que essa dúvida existisse... porque não poderia ser partilhada! Ora, isso só mostraria que Górgias tinha uma estranha noção de existência que dependia da partilha... nada mais.

Acontece que o pensamento dominante é (quase) sempre o pensamento exterior, onde o indivíduo se vê induzido a aceitar tudo o que é exterior, e a duvidar de tudo o que é sua verdade interior.
Esse pensamento exterior não tem outra forma de se manifestar que não seja forçando cada indivíduo a pensar em nome desse exterior. Assim, a visão externa, que reduz o indivíduo à sua máxima insignificância, como ponto minúsculo num universo imenso, como um espirro num tempo infinito, só consegue captar a atenção do indivíduo retirando-o do mundo interior, onde não se veria ameaçado por nada, e ameaçando-o com as vicissitudes deste mundo.
O nosso "eu" é o "não-eu" do "não-eu", ou seja somos o complemento, ou opositor natural a si. E se o "não-eu" evidencia a todo o momento que pode terminar connosco num simples colapso cardíaco, dispomos de toda a racionalidade para duvidar que isso seja assim... porque simplesmente também não sucumbimos quando o famoso "subconsciente" nos coloca um sonho em que deveríamos concluir a nossa morte. Simplesmente acordamos de um pesadelo, nada mais.

Ora, o mais importante neste acordo do acordar, é que aceitamos uma realidade comum, mas com regras... não se trata de dar a um qualquer Autor a simples faculdade de inventar de uma peça ou um filme, sem nexo, por mais cor-de-rosa que se prometa ser o final. 
Essas regras limitam profundamente a necessidade de um criador de conteúdos, para não dizer que dispensam totalmente esse papel. Dispensaria por completo, se o universo fosse determinista, mas como o universo admite um caos residual, significativo, haverá um espaço de imprevisibilidade cuja origem não se poderá atribuir, e cada um pintará esse espaço em branco com as cores que quiser.

No entanto, como referi, na dualidade haverá sempre a tentação de reduzir as condicionantes objectivas a zero... e o argumento é simples - quanto menos regras físicas, maior liberdade criativa. Só que essa relação a dois entre o "não-eu" e o "eu" deixa a parte mais fraca completamente nas mãos da parte mais forte. Assim, tal como no convite de uma droga que promete experiências inolvidáveis, o percurso desse sonho "a dois" tende a ir parar em ressacas cada vez piores.


sexta-feira, 20 de maio de 2016

Discurso do mééé - todo! (3)

Convém dar o devido destaque a uma guerra não declarada entre a visão externa e a visão interna. Desde que nasce que o indivíduo é esmagado pela visão externa, em que se vê forçado a agir em resposta às condicionantes exteriores. O mundo existia antes de si, existirá depois de si, e o seu papel no processo será ínfimo ou diminuto.
Isso contrasta profundamente com a sua visão interna - o seu universo interior roda em torno de si, onde é o elemento mais importante, e afinal tudo o resto é medido em função da importância que lhe dá. O solipsismo pode parecer o extremo dessa visão auto-centrada, em que só o próprio existe, mas nada tem a ver com o egoísmo... e até se lhe opõe, de várias formas.
O egoísmo é uma resposta interior de quem adopta a visão externa. O egoísta tem uma visão limitada de si no contexto exterior, e no esforço de ganhar importância, reduz a importância de tudo o resto. Mas não reduz a importância de tudo o resto por não acreditar na sua existência, fá-lo numa tentativa frustrada de ganhar importância, por admitir que não a tem. Isso opõe-se claramente ao solipsismo, onde o indivíduo centrou em si todo o destaque, e portanto é-lhe indiferente o destaque externo que tem. Não reduz importância ao restante, porque vê esse restante também como produto seu. Nesse desvio de visão interna, atribui ao que não controla um produto do "seu subconsciente", usando uma nomenclatura moderna.

Essa noção de subsconsciente é directamente importada da visão externa. Porquê? Porque a versão exterior dos acontecimentos imputa os seus sonhos, as suas ilusões, a um produto do próprio. Portanto são os outros que convencem o indivíduo que ele é dono e autor dessas ilusões. Porém, como o próprio sabe que não o é conscientemente, delegou-se a autoria numa entidade chamada subconsciente, onde foi arrumada toda a autoria dos sonhos. Também num sonho o indivíduo é confrontado com uma realidade que o circunscreve e domina, em tudo análoga à habitual realidade. Assim, por influência social, o solipsista aceita-se como autor e dono dos sonhos que presencia, e logicamente não vê razão objectiva para que seja diferente o que se passa com a realidade.

As coisas passaram-se de forma diferente na sociedade oriental, especialmente hindú, ou de influência budista, e na sociedade ocidental. Na sociedade indiana é razoavelmente fácil encontrar pessoas com um discurso solipsista, até porque o budismo convidou a essa reflexão interior, desligada do exterior - cujo extremo levou aos ascetas.
Na sociedade ocidental isso foi combatido... houve sempre a tentativa de combater a visão interna, solipsista, porque seria altamente contra-produtiva. Aliás, o que se descobriu no ocidente é que socialmente havia interesse em fomentar uma visão egoísta... especialmente após a Idade Média. Os indivíduos querendo exibir os seus méritos para ascensão social, fomentavam o aparecimento de produtos e ideias para o bem comum, ou melhor para o bem dirigente, ainda que tivessem como motivo apenas o bem próprio.
No hinduísmo, surgiram assim vertentes monistas, solipsistas, como o Advaita Vedante, ensinado por Sankara, um guru do Séc. VIII, que visava uma unidade da realidade como "Brahma" em oposição às ilusões aparentes, denominadas como "Maya" (também uma divindade hindú, e o nome da mãe de Buda, para além de múltiplas atribuições ocidentais ao mesmo nome - mãe de Hermes, divindade ligada à agricultura, etc.).
 
Na filosofia oriental Maya corresponde ao ilusório. 
"Maya - o espelho de ilusões";  suástica - símbolo do Jainismo, que combate Maya - a ilusão. 

Sobre a dualidade entre ilusão e realidade, os filósofos gregos entretiveram-se abundantemente.
Como extremo do solipsismo, encontramos Parménides, que chega ao ponto de negar a própria existência do tempo. E, é claro, em última análise é contado que os opositores lhe atiravam pedras para contrariar experimentalmente a sua oposição ao movimento. No entanto, e num notável esforço de sistematização, Zenão de Eleia, discípulo de Parménides, enunciou uma série de paradoxos, que demoraram mais de dois milénios a serem esclarecidos matematicamente. Basicamente a questão da inexistência do tempo foi depois rebuscada no Séc. XX por McTaggart, na sequência do idealismo de Hegel. Mais uma vez, como em tantas vezes, foram retomadas teses anteriores, milenares, com novas noções, que pouco ou nada mudavam o problema ou a discussão original.

A questão de Parménides é muito mais facilmente perceptível no contexto do solipsismo, porque um problema solipsista imediato tem a ver com a origem do próprio e a sua mudança no tempo.
Ou seja, o solipsista pode fiar-se tanto na memória, como em qualquer outra coisa... afinal também a memória facilmente nos engana. Um reduto final consiste então em argumentar que só existe o conhecimento do momento presente, e assim negar a mudança, o tempo.
Levado noutro extremo, o sofista Gorgias, também tido como solipsista, argumentaria que nada existia, porque nada de objectivo poderia ser comunicado a outros, o que poderá ser entendido como uma forma de níilismo.

Indo ainda mais atrás, vemos Pitágoras, ou os pitagóricos, afirmando que a vida nada mais era do que um espectáculo que se desenrolava, e que estávamos condenados a assistir como espectadores. Não participaríamos como actores, entendendo que as nossas acções fariam parte do enredo já escrito.
Curiosamente, aquilo que se nota é que quanto mais regredimos no tempo, mais sabedoria vemos... já que muito provavelmente os que se seguiram não perceberam o que os anteriores tinham dito, e serviram praticamente para lançar a sua confusão no que seria claro. Afinal a própria conclusão pitagórica não é diferente de uma noção, certamente muito anterior - a noção de destino.

Tendo feito este enquadramento, irei agora expor o que vim concluindo aqui neste espaço.
Conforme já referi, o meu solipsismo militante, ao estilo de Parménides ou Pitágoras, não resultou deles, ao contrário, o processo mais simples foi sempre inverso... só depois de tirar as minhas conclusões é que as entendi como análogas a conclusões alheias - ainda que essa questão de autoria não interesse para nada - basta notar que para um solipsista, a autoria seria sempre sua, seja pelo consciente ou inconsciente.

Para o que interessa, a conclusão de Pitágoras é a correcta, só que abreviando o escrito, ele não nos deixou explicados convenientemente os muitos porquês. Essencialmente tudo parte do paradoxo do pensador, que enunciei há uns cinco anos. Ou seja, num caminho completamente oposto ao solipsismo, fui forçado a concluir que nem o nosso pensamento nos é interno... aplicando-se isso a qualquer ser pensante.

Afinal, o primeiro passo para ficarmos livres é percebermos o que nos prende, e porquê!