segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Silêncio intemporal


Necrópole de São Gens (Celorico da Beira) - Pedra do Sino

Uma característica da paisagem arqueológica portuguesa é a existência de sepulturas cavadas directamente sobre o granito. Umas têm o formato rectangular, outras seguem mesmo uma linha do corpo, percebendo-se a orientação cabeça-pés, e são chamados sepulcros antropomórficos.
Não conheço uma outra paisagem que tenha tantos exemplos deste tipo de sepulturas trabalhadas na rocha, e que não são propriamente grandes monumentos fúnebres, mas não deixam de envolver o árduo trabalho de moldar a rocha à função.

Este exemplo da Necrópole de São Gens é mais notável porque há sepulturas claramente orientadas para a chamada Pedra do Sino - uma rocha invulgar que se equilibra distintamente na paisagem. Creio que actualmente a EDP arranjou maneira de fazer passar uns cabos de alta tensão pelo local, perturbando a paisagem intemporal, com a lógica parola, crápula ou mesquinha, que é tão típica da desgovernança nacional.

É assim claro que os habitantes da região davam uma importância suplementar à paisagem rochosa envolvente, e se não foi ao ponto de terem equilibrado propositadamente rochas, umas nas outras, não foi porque não o pudessem fazer. A religiosidade transcendente do local relacionar-se-ia mais com o acaso singular das formações rochosas, e raramente passaria por esculpir a paisagem artificialmente. No entanto, não se deverá excluir terem existido efectivas alterações, que podem ter contribuído para um certo "esculpir" da paisagem.

A forma como Monsanto aproveitou a rocha e os enormes calhaus para se inserirem na própria construção das habitações da aldeia, é um exemplo notável de como esteve presente uma conexão entre a construção da presença humana e a paisagem já existente.
Não se tratou de deixar os blocos intocáveis e construir à volta. Ao contrário, foi desafiar o equilíbrio dos próprios blocos e construir paredes aproveitando o legado da natureza. Sendo claro que uma grande parte da aldeia foi perdendo características mais antigas, medievais ou manuelinas, poderá colocar-se mesmo a questão se este tipo de aldeias não tem uma origem ainda muito mais antiga, dos primeiros milénios anteriores à cristandade.

A necrópole de São Gens está datada entre Séc. I - IX, ou seja do primeiro milénio cristão, mas essa datação é sempre circunstancial, muito associada ao que se encontrou depois no local, não permitindo uma grande certeza sobre as datas que são avançadas, e podendo remontar a tempos bem anteriores, em que as antas iam também moldando a paisagem.

O facto de Portugal se ter tornado num país litoral, em que basicamente, ao contrário da maioria dos países europeus (e em particular, Espanha), o isolamento se começa a notar a 50 Km da costa, foi acabando por preservar algumas destas pérolas da nossa paisagem. E se não há mais, não é porque não existam, simplesmente são desconhecidas da maioria dos portugueses... e assim vão permanecendo, com as vantagens e desvantagens inerentes.

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