sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Descoberto e Encoberto (2)



O Encoberto e o Descoberto
Aspectos da História dos Descobrimentos

(continuação) 

Capítulo 2 - Os paralelos como referência

Havendo todo este secretismo nacional, o que serviria de referência para diferenciar Descobertas vs. Encobertas?... Normalmente, nas descrições de Gomes Eanes de Zurara e de Duarte Pacheco Pereira, podem ser os paralelos, entre África e a América, da seguinte forma:

Resumo do possível paralelismo nas descrições de Duarte Pacheco Pereira e Zurara.

Ou seja, a cada descrição em África, corresponderia uma descrição na América, podendo haver sobreposições. Há até uma subida de latitude (que pode ir até 6º) nas cartas de marear, a que Pedro Nunes se refere:
(...) convém a saber Roma, que está a 41 e meio, fica na carta a 46, e Veneza que está em45 fica na carta a 50. Rodes que está em 36 fica em 42 (...)
Com este pressuposto, é possível seguir as descrições dos autores, sem preconceitos, e sem préjulgamentos, de localização geográfica. Percebe-se que pode haver algo diferente que os autores nos queriam transmitir, de forma encriptada. 
A organização é de tal forma complexa, que D. Afonso V achou bem oferecer uma cópia das Crónicas da Guiné de Zurara, ao Rei de Nápoles, seu familiar. Duarte Pacheco Pereira, é mais explícito... mas igualmente intrincado, já que a certa altura é mais difícil perceber quando fala de África ou da América. 

Alguns nomes vão mudando... uma designação para Zurara, não é necessariamente a mesma de Pacheco Pereira, pois o nome já é outro. É preciso abstrairmo-nos de preconceitos, pegar num  mapa, e ir descendo a Costa Americana, de acordo com as latitudes. Não é assim um exercício tão difícil, e é surpreendente!

A propósito da Crónica de Zurara, o Visconde de Sacavém relata que Frei Luis de Sousa (na sua História de S. Domingos) teria visto a divisa do Infante num “livro que o Infante mandara escrever do sucesso destes descobrimentos, em que usava com a mesma letra diferente corpo de empresa, mas muito avantajado em agudeza de significação e graça”. Ou seja, também Frei Luís de Sousa invocava essa dupla interpretação.

2.1. Cabo Bojador
Começamos pelo Cabo Bojador. Qualquer cabo só constituiria uma dificuldade a navegações mais primitivas, onde seria necessário seguir a linha costeira para orientação. A partir do momento em que se fazem (oficialmente) carreiras frequentes com a Ilha da Madeira (desde 1419), ou com os Açores (desde 1432), em alto mar, não há qualquer razão para uma dificuldade em ultrapassar um cabo costeiro. Muito menos que tal tenha tomado 12 anos de tentativas infrutíferas, até 1434, conforme se lamentava o Infante D. Henrique (na Crónica de Zurara)!

Esses 12 anos simbolizam algo diferente, e o cabo a ultrapassar não seria uma dificuldade de navegação costeira, mas mais naturalmente, uma dificuldade de navegação política.
Assim, podemos conjecturar que "dobrar este cabo de trabalhos", o Bojador, começa depois de Gil Eanes ter coordenado uma grande expedição - exploratória da América - até 1434.
Quando os portugueses perceberam que passar o continente não era possível, dentro de latitudes razoáveis, o Infante Dom Henrique terá tido luz verde para avançar com outro projecto, o projecto Oriental, com consentimento do seu irmão, o Rei D. Duarte. O cabo Bojador estava dobrado!

Dito doutra forma, uma vez passado o Cabo Bojador, em 1434, que sentido faria parar as navegações e atacar Tanger de seguida, em 1437? - Apesar de Tanger ser costeira, a invasão vai ser por terra, partindo de Ceuta. Porquê? Qual a razão desta estratégia do Infante Dom Henrique?

D. Manuel, sucessor político do Infante D. Henrique, insistiu sempre num ataque à península arábica, no sentido de terminar com o poder islâmico e recuperar Jerusalém. Seguiria assim um velho ideal templário, herdado desde a fundação da nacionalidade, e acentuado com o estabelecimento da Ordem de Cristo. Uma possível motivação para o desenvolvimento das navegações no seio das ordens, seria um plano militar de Cruzada, contornando o continente africano, e surpreendendo os mamelucos do Cairo com um desembarque, colocando bases europeias no Mar Vermelho, no sentido de recuperar Jerusalém. Com D. Manuel, o centro de poder passou para Istambul, mas a ideia manteve-se, e levou à conquista de algumas praças na península arábica. No entanto, no tempo de D. Manuel, há duas (ou mesmo três) perspectivas distintas. Por um lado, mantem-se essa perspectiva de Cruzada, que D. Manuel preconiza, mas por outro lado há uma perspectiva mais comercial, que favorece o comércio com os novos territórios, e que é seguida por uma boa parte dos Vice-Reis da Índia (Afonso de Albuquerque será talvez a maior excepção). A este propósito citamos o Cardeal Saraiva:
He portanto fora de duvida, que o sábio Infante levou na gloriosa empreza de seus descobrimentos hum fim mais alto e mais importante do que a mesquinha idéa de colher os Mouros pela retaguarda, idéa da qual se não diz uma só palavra na vida do Infante, nem de seu augusto pai, nem tão pouco em historia alguma dos descobrimentos Portuguezes. (Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1875) 
Assim, a ideia do Infante D. Henrique poderá ter sido usar Tanger como simulação para mostrar que seria perfeitamente possível, a partir de um ponto terrestre marchar por um terreno difícil, e atingir Jerusalém. Precisava do apoio dos aliados europeus... e assim julgaria convencê-los.

Acaba por não conseguir, sendo derrotado!... Tem apenas uma escapatória, o apoio por mar do irmão Fernando, que escolhe como refém, e será esse “Infante Santo” sacrificado para manter Ceuta. Há um claro trauma nacional, durante o cativeiro do Infante Santo, e faz-se ainda uma tentativa armada de resgate... mas sem sucesso. Pouco depois D. Duarte morre e há um problema na regência, pela menoridade de D. Afonso V, a mãe aragonesa é rapidamente exilada (havia demasiados segredos em jogo, para qualquer conhecimento de Aragão)! É nessa altura que se definem três irmãos nos vértices do triângulo político nos descobrimentos:

- Infante D. Henrique, pelo projecto oriental de cruzada;
- Infante D. Pedro, pelo projecto ocidental de colonização e comércio;
- D. Afonso, Duque de Bragança, por um projecto político ibérico.

O Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra, assume a regência em 1439, e é o primeiro período de ouro, que marcará os desenvolvimentos seguintes. Inicialmente há uma colaboração com o irmão Henrique, nesta nova empresa. É literalmente o primeiro período de ouro, já iniciado no reinado de D. Duarte. É o tempo das caravelas... rápidas na ligação com a América. Se as expedições de Gil Eanes se teriam preocupado com a passagem ocidental, sem entrar no continente, navegando pela costa, a partir daí vão começar os contactos comerciais.

Logo de início, antes de 1440, há expedições por Gil Eanes e Afonso Baldaia - os registos começam aí com Zurara (que escreve "sob orientação científica do Infante Dom Henrique", já depois do Infante Dom Pedro morrer). Observa-se uma sucessão de nomes em África, de locais desérticos que nenhuma importância aí parecem ter, mas que se percebe terem importância - à mesma latitude - na América, por exemplo - o Rio do Ouro (pequeno rio, em África), poderá ser associado ao Rio Bravo. A costa vai descendo, Arguim, Tider, Ergim, invocando povos em ilhas que não passam de bancos de areia... em África. Do outro lado, na América, é só difícil saber exactamente que ilhas se tratam.

É aqui que se começa a atribuir a chegada do ouro a "mercadores do deserto"... é a necessidade de fazer uma Feitoria em Arguim. Há contactos com Azenagues, de língua desconhecida. Mas... onde se passará tudo isto?
Porque não do outro lado, no mesmo paralelo, no México, com os Aztecas?
O Infante Dom Pedro pode ter sido um excelente governante (a nível interno e externo), mas também poderá ter beneficiado desse proveitoso comércio aurífero!

2.2. Cabo Verde e Antilhas 
Seguimos a descida da costa usando a descrição de Duarte Pacheco Pereira, e chegamos ao Cabo Verde (actualmente em Dakar). Essa pequena península do Cabo Verde, será associada por distorção (que se vê nos vários mapas) à grande península do Iucatão. Qual seria a razão para essa escolha? À mesma latitude, a Costa Africana continua a descer, mas a Costa Americana tem essa enorme península do Iucatão, que será diminuida (e assim seriam também ignorados os contactos com os Maias...). As ilhas de Cabo Verde seriam associadas a Grandes Antilhas, enquanto ilhas que surgem dessa grande península do Iucatão. Assim, poderá corresponder São Tiago a Cuba (essa designação consta ainda do mapa de João de Lisboa).

Com maiores dúvidas, surgem os nomes de outras ilhas. Essa diferença de designações pode ainda ser vista nos mapas constantes do Livro de Marinharia e do Planisfério de Jorge Reinel (figuras seguintes). Há algumas curiosidades, talvez a mais interessante é a actual ilha Mayaguana nas Bahamas (que foi ilha de piratas) ser anteriormente designada Triamgo. Inagua mantém o nome, mas a ilha adjacente perdeu o nome anterior Sabaio. No mapa de Jorge Reinel usa-se a designação Hispaniola, mas no Livro de Marinharia aparece como S. Domingos (em Duarte Pacheco Pereira poderia ser designada Santo Antão). Há uma sucessiva confusão de nomes, invocando nuns casos nomes de ilhas cabo-verdianas (como Ilha de Mayo em Reinel, e Santa Luzia ou São Vicente no Livro de Marinharia), e só em poucos casos mantendo designações: Guadalupe, Antigua, etc. Todas estas ilhas e zona tropical paradisíaca poderia ser aquilo que Camões designava como Jardim das Hespérides.

A península do Iucatão (cujo nome poderá advir da confusão colombiana de Cipango|Japão com Cuba e dessa terra com Cathay|China), surge assim com um correspondente Cabo Verde africano, exagerado nos mapas da época e associado a um zénite polar, para justificar a distorção. É ainda aqui que Pacheco Pereira faz a distinção entre Etiópia Superior e Etiópia Inferior... e havendo ainda uma outra, a Etiópia Sob-Egipto.
Esta confusão de etiópias, pode ser justificada ainda na perspectiva do paralelismo. De facto, não havendo o continente americano, uma circum-navegação por paralelos nas latitudes superiores da costa brasileira, faria prever encontrar do outro lado a Etiópia no continente africano. Ou seja, esta confusão que Colombo terá cometido, e que levou à designação de Índias Ocidentais, pode ter estado presente previamente, nas primeiras navegações portuguesas, onde foi encontrado o pau Brasil (que é até referido por Chaucer nos Contos de Canterbury, 1387).

2.3. Nicarágua e Canágua 
A próxima latitude, compatível com outras latitudes no continente africano, é já localizada nas Honduras, na "Etiópia Inferior". Teremos aí outros pontos de referência, já que há rios com características semelhantes às descrições, por exemplo o Rio Patuca ou o Coco. No entanto, o nome mais importante em África é o Rio Canágua... que depois é renomeado convenientemente:
Canágua >> Çanaga >> Senegal 
conforme vai constando nas cartas, e temos ainda o Rio Gambea.
Do outro lado a nessa latitude temos, exactamente a Nicarágua.
O nome aparentemente deriva da designação do chefe Nicarao... e da palavra água, mas não deixamos de notar que Canágua está também foneticamente muito próximo da capital Manágua.

Para além disso, na descrição desta região Duarte Pacheco Pereira fala de uma lagoa com "32 por 12 léguas", falamos de aproximadamente 188 Km por 72 Km... dimensões que se ajustam ao Lago da Nicarágua. Não encontramos nada semelhante a isso na costa ocidental africana (o lago Guier é muito mais pequeno). Convém ainda notar que na zona Honduras/Nicarágua a resistência à colonização espanhola foi muito prolongada, e por isso não terá sido possível uma imediata renomeação.

Comércio na Gambea: Sobre o comércio de escravos tido perto do Rio Gambea, Duarte Pacheco Pereira faz a seguinte descrição do comércio que os mandiguas faziam:
(...) todo aquele que quer vender escravo ou outra cousa se vai a um lugar certo para isto ordenado & ata o dito escravo a uma arvore & faz uma cova na terra daquela cantidade que lhe bem parece & isto feito arreda-se fora um bom pedaço & então vem o rosto de cam & se é contente de encher a dita cova d’ouro enche-a & se não tapa-a com a terra & faz outra mais pequena & arreda-se a fora & como isto é acabado vêem seu dono do escravo & vê aquela cova que fez o rosto de cam & se é contente aparta-se outra vez fora & tornado o rosto de cam ali enche a cova de ouro & este modo tem em seu comercio & assim nos escravos como nas outras mercadorias & eu falei com homens que isto viram (...) 
Duarte Pacheco Pereira in Esmeraldo de Situ Orbis (1506-09). 

Para além da curiosidade trágica, o ponto em trazer aqui esta descrição será salientar que não havia apenas uma compra de escravos pelos portugueses. Desta transcrição, concluímos que os escravos eram vendidos em troca de ouro. Ou seja, transportando esta descrição, tida em África, para a América Central, isto poderá sustentar a hipótese de que os portugueses levariam escravos africanos para trocar por ouro com as culturas da América. A este propósito, Duarte Pacheco Pereira refere que Gambea tem nome Guabú na língua mandígua, e o fonema “gua” é comum na toponímica da América Central.

2.4. Panamá e Sagres 
À mesma latitude da cadeia montanhosa do Panamá, que liga a América do Sul à do Norte, encontra-se a Serra Leoa, em África. Essas montanhas são o obstáculo natural que impede a passagem para o Oceano Pacífico, só contornado no século passado com a abertura do Canal do Panamá. Mais uma vez a Costa volta a subir, e o contorno americano não acompanha o africano... é aqui que encontramos um Cabo Sagre no Panamá, conforme o mapa do Livro de Marinharia.
Cabo Sagre no mapa do Livro de Marinharia (assinalado no quadrado verde).

Haveria assim 3 cabos Sagres em 3 continentes distintos (um em Portugal; outro, menos conhecido, em África, na Guiné-Conacri; e finalmente este no Panamá, que foi renomeado Nõbre de Dios, e actualmente é denominado Graças a Dios). É interessante notar (ver figura do paralelismo) que:

  •  (i) os cabos americano e africano estão ~ sobre o mesmo paralelo;//
  • (ii) os cabos português e africano estão ~ sobre o mesmo meridiano; 
  • (iii) aí terminam as "navegações" atribuídas ao Infante D. Henrique. 


2.5. Colômbia e o Castelo da Mina 
A Mina está normalmente associada à fortaleza existente em Elmina, no Gana. Mais longe, mas ainda no Gana, após a cidade de Acra, encontra-se a foz do Rio Volta. Toda a descrição feita por Duarte Pacheco Pereira envolve um largo rio navegável, cuja descrição se pode assemelhar também ao Rio Atrato, na Colômbia. A foz destes rios está aproximadamente no mesmo paralelo (a foz do Atrato a 8ºN e a foz do Volta a 5ºN), correm ambos na direcção norte-sul, ainda que o sentido do rio Atrato seja sul-norte.

A ligação Atlântico-Pacífico através do Rio Atrato chegou a ser considerada como alternativa ao Canal do Panamá. A navegabilidade do conjunto dos rios Atrato e San Juan (o Rio de São João, que desagua em Buenaventura, está assinalado no Livro de Marinharia) passa por uma pequena cidade chamada Istmina (próximo de Quibdó). No lado africano, no Gana, temos a cidade de Elmina, por outro lado na Colômbia temos Istmina. A diferença principal é que não há nenhum rio próximo de Elmina que corresponda à descrição feita por Duarte Pacheco Pereira. A melhor hipótese seria o Rio Volta, que está bastante afastado de Elmina, e até mesmo de Acra.

Encontramos finalmente uma possível justificação para os castelos com bandeira portuguesa na Colômbia... seria talvez aí o Castelo de S. Jorge da Mina.

Há ainda coincidências menores. O navegador português Pêro Escobar esteve associado às navegações da Mina, e à descoberta de São Tomé, sob serviço do comerciante lisboeta Fernão Gomes. Esse serviço requeria efectivamente muita mão de obra, de origem africana. Para além de Escobar ser um nome comum na Colômbia, este é também o país hispânico do continente americano que tem mais população de origem africana. Uma hipótese é que essa mão de obra seria usada no serviço da Mina. Quando Portugal abandonou esses locais para a Espanha, os escravos ficaram e só mais pontualmente foram usados pelos espanhóis noutros locais. Algumas das ilhas das Antilhas, como é mais evidente no Haiti, têm também uma grande população de origem africana, provavelmente devido a esse uso de mão de obra em plantações. Essas populações podem assim também ter resultado de um cruzamento de população africana e portuguesa, que posteriormente foi abandonada, em consequência da evolução política internacional.


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