domingo, 1 de novembro de 2020

Descobrimentos em diversos anos e tempos (7)

Continuamos, a transcrição do livro de António Galvão.
Nesta parte entre os anos de 1509-11, é especialmente intrigante esta citação que destaco: 

Avante destas ilhas dizem que há outras de gentes mais alvas que andam vestidas de camisas, gibões, e ceroulas como portugueses, e têm moeda de prata; os que governam a República, trazem nas mãos varas vermelhas, por onde parece que devem de ser da China, e não tão somente estes, mas há por aqui outras de gentes pintadas, que dizem ser dos Chins povoadas.

Quem andaria vestido como portugueses, em paragens da Nova Guiné, ou mais além?

Galvão avança com chineses, pelo hábito de trazerem na mão varas vermelhas, mas o hábito de trazer nas mãos varapaus era também coisa muito europeia. Já as gentes pintadas, seriam facilmente ligadas ao hábito das tatuagens maoris e similares.
O texto aqui citado foca o ano de 1511, quando Afonso de Albuquerque depois de conquistar Malaca envia Duarte Fernandes à Tailândia (Sião, Muantai com "Tai" de Tailândia), Rui Nunes da Cunha à Birmânia (Pegú), e António de Abreu parte para as ilhas de Sumatra, Java, e restantes até avistar as ilhas Molucas. Sobre este assunto, Galvão não levanta dúvidas e diz, relativamente a 1511-12:
  • António de Abreu fez seu caminho [de regresso] para Malaca, deixando descoberto todo aquele mar, e terra nomeadas.
Galvão menciona ainda Francisco Serrão, um elemento importante na iniciativa para a viagem de Magalhães (talvez seu primo), mas hesita até em nomeá-lo como português, dizendo que foi o primeiro entre os "espanhóis" a ver a ilha do cravo. A designação Hispânia incluía Portugal, por isso era usada, até ser apropriada por Castela.
O problema é que Francisco Serrão após ter naufragado, ficou ao serviço do sultão da ilha de Ternate, nas Malucas, e morreu pouco antes de Magalhães se querer juntar a ele. Na realidade morreram perto um do outro: Serrão em Janeiro/Fevereiro nas Molucas, Magalhães em Abril de 1521, nas Filipinas.
O plano de Magalhães seria aproveitar a boa influência de Serrão na corte do rei de Ternate, para ter esse rei a negociar com Carlos V, ao invés de estar sujeito ao domínio português na área.

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DESCOBRIMENTOS 
em diversos anos & tempos, 
& quem foram os primeiros que navegaram.
por António Galvão (1563)

continuação de (6) e (5) (4) (3) (2) (1)
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No ano de 1511, e mês de Abril partiu Afonso dalboquerque [de Albuquerque] da cidade de Cochim para Malaca, e neste mesmo ano e mês de Julho foram os Chins de Malaca para a sua terra, e mandou Afonso de Albuquerque com eles a Syão [Sião] um português que se chamava Duarte Fernandes com cartas, e recado a el rey dos Muãtais [Thai Mueang], que agora chamamos Sião ao Sul, ao longo da terra passaram pelo Estreito de Sincapura [Singapura], e tomaram a Norte correndo aquela costa de Panpatane [Pan Patane], até à cidade de Cuy, e dela ao Dia [Bangcoc], que é cabeça deste reino, que estará até quatorze graus de altura [Bangcoc está a 13º30']. El rey fez a Duarte Fernandes, por ser o primeiro português que vira, muita mercê e honra, e mandou com ele embaixadores, a Afonso de Albuquerque, atravessaram pela terra a Loeste a cidade de Tanasarim, que está no mar da outra banda em doze graus, embarcados em dois navios se vieram ao longo da costa até à cidade de Malaca, deixando-a toda vista, segundo alcançam os que vão por mar ao longo da terra.

João de Lisboa. Referências sublinhadas:
Malaca (de onde sai a bandeira portuguesa), Pedra Branca (Singapura), Patane, Siam (Bangcoc), Camboia (Camboja).

A gente deste reino de Syão é gentia, come toda alimária, bicho, pescado que a terra e água produzem, prezam-se de trazer cascavéis em suas naturas (a el rey, e religiosos é vedado); e dizem que são dos mais virtuosos e honestos que há na redondeza, prezam-se muito de castidade e pobreza; em sua casa não criam galinha pomba, nem outra coisa fêmea. Terá este reino duzentas e cinquenta léguas em comprido, e oitenta de largo, fora os que lhe obedecem. Deste só reino põe el rey em campo trinta mil elefantes de guerra, fora os que lhe ficam nas cidades por guarda; tem um branco em grande estima, e outro ruivo de olhos que escamecham, como fogo. Há nestas terras hum bicho pequeno, que se lhe pega na tromba, e os ensanguenta até que os matam, tem a concha tão dura, que um arçabuz o não passa, e cria nos fígados uma figura de homens, ou mulheres a que chamam toqta [toqueta], que é como mendracola, e quem as traz consigo, dizem que não podem morrer a ferro, e nas cabeças de vacas bravas acham-se pedras mui ditosas para mercadores.

Depois de Duarte Fernandes ir aos Mantuis [Muantais, tailandeses], mandou Afonso de Albuquerque um cavaleiro que se chamava Ruy Nunez da Cunha [Rui Nunes da Cunha] com cartas, e embaixada ao Rei dos Sequis, que nós chamamos Pegus [Pegu, Birmânia]; foi num junco dos da terra ao longo dela, à vista do cabo rachado, e daí à cidade de Perá, e aquém da Iunsalão [Phuket], e outras muitas povoações que jazem ao longo desta ribeira, por onde já Duarte Fernandes viera, até à cidade de Tanasarim, e de Bartabão [talvez Abaw, Birmânia], que está em quinze graus da parte do Norte, e à cidade de Pegu em dezassete. Este foi o primeiro português que trilhou aquele reino, e deu informação da terra, e de como traziam cascavéis como os Muantais.

No fim deste anno de 511, mandou Afonso de Albuquerque tres navios às ilhas de Banda, e Maluco [Molucas] e por capitão-mor deles António Dabreu [de Abreu], e um Francisco Serrão: iam neles cento e vinte pessoas, porque não foram mais velas, nem homens ao descobrimento da Nova Espanha com Christouam Columbo, nem com Vasco da Gama à India, porque Maluco depois destes não é menos em riqueza, nem se deve de ter em menos estima, foram pelo Estreito de Sabam ao longo da ilha de Samatra, e à vista de outras que ficam da mão esquerda contra o Levante que chamam dos Salites, até às Ilhas de Palimbão, Lusuparam, donde atravessaram pela nobre ilha da Iaoa [Java], foram a Leste correndo sua costa, por entre ela, e a ilha da madeira. A gente desta ilha é mais belicosa, e que menos tem em conta a vida que se sabe na redondeza, e dizem que as mulheres ganham soldo pelas armas, e por qualquer coisa se desafiam, e matam uns a outros, como se fazem a Mocos, e inventa pelejarem galos com navalhas, porque o principal seu desenfadamento e languiolento.

Além desta ilha da Iaoa, vão ao longo doutra que se chama Balle [Bali], e outra logo (que se diz) Anjano, Simbaba, Solor, o Galao, Mauluoa, Vitara, Rosolanguim, Arus, donde vêm os pássaros mirrados, que são muito estimados para penachos, e outras que jazem nesta corda da parte do Sul, em sete ou oito graus de altura, e tão juntas umas com as outras, que parece toda uma terra.
Haverá nesta derrota mais de quinhentas léguas: os cosmógrafos lhes chamara as Iaoas ainda que agora têm nomes diferentes como aqui vedes. Avante destas ilhas dizem que há outras de gentes mais alvas que andam vestidas de camisas, gibões, e ceroulas como portugueses, e têm moeda de prata; os que governam a República trazem nas mãos varas vermelhas, por onde parece que devem de ser da China, e não tão somente estes, mas há por aqui outras de gentes pintadas, que dizem ser dos Chins povoadas.


Batu Tara ou Batutara será o corrente nome da ilheta Gumuapé avistada por António de Abreu

António de Abreu, e os que com ele iam, tomaram uma derrota contra o Norte duma ilheta que se chama o Gumuapé: porque do mais alto dela corre sempre, e de contínuo até o mar ribeiras de fogo, coisa muito para ver. Daqui foram à ilha de Burro, e Damboino, e costearam a costa daquela que se chama de Muar Damboino [de Amboíno], surgiram num porto, que se diz Guli Guli, saltaram em terra, tomaram uma povoação que ali estava, e acharam nas casas homens mortos dependurados: porque comem carne humana, onde queimaram a nau em que ia Francisco Serrão por ser já velha, e foram ter à Banda que está em oito graus da parte do Sul, donde carregaram de cravo, noz e maça, e um junco que Francisco Serrão aqui comprara. 
Dizem que não muito longe deltas ilhas de Banda há uma em que se não cria senão cobras, e as mais numa cova que tem no meio, umas grandes, e outras pequenas, andam sempre enroladas, mas não se deve de haver por muito, tanto como os da terra, fazendo disto espanto pois os nossos deixaram escrito que junto das ilhas de Mayorca, e Menorca, havia uma que se chamava Euturia, em que havia muita quantidade destas bichas, não as havendo em todas as outras ilhas junto com elas.

No ano de 1512. partiram de Banda para Malaca, e nos baixos de Lulupino, se perdeu Francisco Serrão com o seu junco, donde se tornou à ilha de Midanao com ix ou x (9 ou 10) portugueses que com ele iam, e os reis de Maluco mandaram por eles: estes foram os primeiros Espanhóis que viram as ilhas do cravo, que jazem da Linha contra o Norte em um grau, onde estiveram sete, ou oito anos. António de Abreu fez seu caminho para Malaca, deixando descoberto todo aquele mar, e terra nomeadas.

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Outro vulto da literatura portuguesa, Luís de Camões, alguns anos mais tarde, no Canto X, expressa uma descrição algo semelhante... mas note-se o detalhe de puxar o assunto de que havia memória de Malaca estar ligada a Sumatra:

(...)
Mais avante fareis que se conheça
Malaca, por Império enobrecido,
Onde toda a província do mar grande,
Suas mercadorias ricas mande.

Dizem que desta terra com as possantes
Ondas o mar entrando dividiu,
A nobre Ilha Samatra, que já dantes
Juntas ambas a gente antiga viu.
Chersoneso foi dita; & das prestantes
Veias de ouro, que a terra produziu,
Aurea, por epíteto lhe ajuntaram,
Alguns que fosse Ophir imaginaram.

Mas, na ponta da terra Cingapura
Verás, onde o caminho às naus se estreita,
Daqui tornando a Costa à Cynosura,
Se encurva, & para a Aurora se endireita.
Vês Pam, Patane, reinos, & a longura
De Syão, que estes e outros mais sujeita;
Olha o rio Menão, que se derrama
Do grande lago que Chiamay se chama.

Vês neste grão terreno os diferentes
Nomes de mil nações nunca sabidas,
Os Laos em terra & número potentes,
Avâs, Bramàs, por serras tão compridas;
Vê nos remotos montes outras gentes,
Que Gueos se chamam de selvagens vidas,
Humana carne comem, mas a sua
Pintam com ferro ardente, usança crua.

Vês passa por Camboja Mecom Rio,
Que capitão das águas se interpreta
(...)

2 comentários:

  1. Boa tarde caro Da Maia,

    Estou a ler algo na mesma "onda"; As Décadas da Ásia de João de Barros que foi contemporâneo de António Galvão. Será que estas ilustres almas se terão cruzado em vida? Pergunta retórica, claro.


    https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_de_Barros

    Ab.

    JR

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    1. Caro João,
      pois bem gostaria de fazer isso, mas as Décadas são demasiado grandes para colocar aqui, de forma que também me fiquei pela leitura, menos atenta do que se fizesse uma transcrição.
      Sim, Barros e Galvão foram contemporâneos, e Barros acabou por suceder ao pai de Galvão nos destinos da Torre do Tombo. No entanto, Galvão aparece-nos excluído do circuito, enquanto Barros teve a capacidade de se conformar e adaptar às circunstâncias, numa altura em que a Inquisição já estava bem estabelecida, e fazia o favor de controlar tudo o que podia ser publicado.

      Abç

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