segunda-feira, 6 de julho de 2020

dos Comentários (67) as pontes da Abissínia

As pontes portuguesas que ainda existem na Etiópia são mais um dos múltiplos exemplos de desconhecimento do nosso passado.
Ponte portuguesa sobre o Nilo Azul, em Tis Issat (Etiópia).
Ver mais pontes portuguesas na Etiópia nesta Lista da Wikipedia.

Não sabia que existiam, e tropecei no assunto, devido a uma troca de comentários sobre pontes, com Valdemar Silva, onde se falou de viadutos que uniriam a colinas alfacinhas (ou túneis para a união dos vales).

Projecto para a construção de um viaduto entre S. Pedro de Alcântara e o Campo Mártires da Pátria e daí até à Graça - ver artigo de Ana Barata, "Das colinas de Lisboa: as avenidas aéreas nunca construídas", Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser.2 no.9 Lisboa jun. 2018

... e ainda do projecto de Miguel Pais em 1879, de uma ponte entre o Grilo (Lisboa) e o Montijo:

 
Projecto de ponte sobre o Tejo do Eng. Miguel Pais em 1879 (ver rtp.pt)

Bom, e quando se vai ao "sótão", acaba-se sempre por tropeçar noutra coisa qualquer, e neste caso, ao ver a revista Guia de Portugal Artístico, coordenada por Robélia Ramalho, no volume XI (1944), pág. 9, encontra-se a seguinte fotografia (da mesma ponte em cima) com legenda:


A primeira observação (positiva) é que a ponte foi entretanto restaurada. 
A segunda menção é a legenda, segundo a qual D. Sebastião teria como plano uma grande Angola, que chegasse até à Abissínia, ou seja, até à Etiópia, e imagino que partisse da África do Sul.
Portanto, se assim foi, e não me surpreende, D. Sebastião tinha verdadeiramente planos a uma escala imperial. Que os cónegos gostassem, não me admiraria, por razão missionária, especialmente jesuíta, do espalhamento da fé... que os nobres achassem muito piada, já me parece mais difícil, porque era melhor estar no solar a picar toiros, brincando à valentia, antes de ir jantar. 

Esta ponte está perto da grande catarata que o Nilo Azul faz em Tis Issat, que tem 37 a 45 metros de altura. A página da wikipedia sobre as cataratas diz sobre a primeira ponte de pedra construída na Etiópia, o seguinte:
A short distance downstream from the falls sits the first stone bridge constructed in Ethiopia, built at the command of Emperor Susenyos in 1626. According to Manuel de Almeida, stone for making lime had been found nearby along the tributary Alata, and a craftsman who had come from India with Afonso Mendes, the Orthodox Patriarch of Ethiopia, supervised the construction.

Já se sabe que os portugueses começaram cedo a tentar uma aliança com a Terra do Prestes João, a Etiópia ou Abissínia, iniciada com a viagem de Pêro da Covilhã e Afonso Paiva em 1487. Pêro da Covilhã acabou por daí nunca sair, já que não permitiam a saída de estrangeiros. Foi feito nobre e deixou descendência na Etiópia, onde foi encontrado quando os portugueses ali voltaram já em 1520.

O reino da Etiópia era uma ilusão, enquanto poderoso aliado, mas isso despertou a atenção dos Otomanos que se preparavam para invadir o território, quando Cristovão da Gama, filho mais novo de Vasco da Gama, foi enviado e conseguiu derrotar os invasores com um pequeno exército e o apoio dos etíopes, em 1541-43. No entanto, quando perseguia os invasores foi capturado e decapitado. Os portugueses pediram vingança ao Prestes, rei etíope, e venceram definitivamente os invasores.
Este episódio foi decisivo para que a Etiópia se mantivesse cristã.

Na tradução inglesa dos relatos de Miguel Castanhoso e de João Bermudes (que foi Patriarca da Etiópia), é possível ler o seguinte por Bermudes:


Os tradutores do Séc. XIX indicam nesta nota de rodapé que não existiam pontes na Abissínia, excepto duas ou três que os portugueses teriam construído, "alguns anos depois daquela data"... o que não parece ser em 1626, já que 85 anos dificilmente são "alguns anos depois de 1543". No entanto um relato contemporâneo do Padre Jerónimo de Lobo, parece confirmar que uma ponte foi mesmo feita por ordem do imperador, com construtores vindos de Goa.

Uma e outra ponte podem ser confundidas, já que existe uma segunda ponte portuguesa no Nilo azul, esta já bem mais afastada da área do Lago Tana, e das cataratas.

Curiosamente, e porque os espanhóis são assim, depois de toda esta aventura, em que todo um exército português, anda pela Etiópia e onde o filho de Vasco da Gama perde a vida, consideram que quase passados 100 anos, houve um jesuíta espanhol (em 1618) que foi o primeiro europeu a avistar a nascente do Nilo Azul. Claro está Pêro da Covilhã andava entretido a constituir a sua prole, e mal tinha tempo para sair de casa...
Está em toda a wikipedia (inclusive portuguesa), citando livros, dizendo que Pedro Paez foi o primeiro europeu a relatar e a ver o tal Lago Tana. Por sinal há quem diga que João Bermudes, que até era galego, descrevia o Lago Tana... mas depois não havia certeza que lá tivesse ido.

Bom, fui ver o que dizia Miguel Castanhoso em 1564, e dificilmente poderia ser mais explícito, não apenas acerca da nascente do Nilo no lago, como também da sua presença (e dos hipopótamos). Assinalo duas frases a amarelo, que são suficientes:

Ou seja, diz que é do tal lago (Lago Tana) que sai o Nilo (neste caso, é ignorado o Nilo Branco, que vai até ao Lago Vitória), diz que o lago tem ilhas com mosteiros (o que se confirma), e que há umas criaturas grandes (os maiores hipopótamos conhecidos). Por causa das coisas, diz ainda que estiveram com o Preste, com o rei, na borda do lago... ou seja, não apenas Miguel Castanhoso, mas toda a comitiva portuguesa, em 1543.

Provavelmente isto não é prova suficiente... deve faltar o impresso WTF da burocracia histórica!
O impresso que está impresso é só mais uma prova da incompetência e pouca vergonha reinante, nacional e estrangeira.

No entanto, os portugueses, para além de deixarem pontes, palácios e castelos, deixaram também uma vasta prole... pelo menos é este o enredo de um filme lançado em 2018,


Birkutan eram laranjas (as mais doces que os etíopes tinham conhecido), e era também a designação dos portugas, conforme é escrito:
The word Portugal is also the root for the word orange in Persian پرتقال (porteghal), the Bulgarian портокал  (portokal),  the Albanian portokall, and  the Greek πορτοκάλι (portokali).   As it is in the Turkish portakal and the  Romanian portocală. The Georgian ფორთოხალი (pʰortʰoxali) and the Arabic البرتقال (bourtouqal)…
... e contam 16 mil laranjinhas no Facebook
In today’s Ethiopia  there are ruined castles, palaces as well as bridges spanning the Blue Nile — but there also lingers on the memory of the community of Ethiopian-Portuguese born from the marriage of Portuguese soldiers and Ethiopian women —  the Birkutan.
Portanto, quando os nosso primos passarem por maus bocados, não esquecer de fazer outra ponte... porque a expansão portuguesa não foi o que querem pintar com ela.

7 comentários:

  1. Muito bom.
    Está a ver? É este tipo de achados que desmontam toda e qualquer tese de espanhóis em bico de pé - ou seja quem fôr - que acho absolutamente necessárias e transformam o seu blogue em tal pérola.

    Relativamente a D. Sebastião e Angola fazer fronteira com a Etiópia ou Abissínia...
    Creio que Angola aqui seria um código para todas as possessões Portuguesas.
    Assim, era só ligar Angola (a faixa Ocidental) a Moçambique (a faixa Oriental) e teríamos um Império a fazer fronteira através da costa Oriental com Mombaça e outros pontos estratégicos.
    Que por sua vez no século XVI poderiam fácilmente chegar-se a Goa.

    Isto só não consigo entender é porque não ficámos com a Àfrica do Sul...

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Bom, mas neste caso nem sequer foi fácil, saiu de caras!
      Agradeço as palavras, mas, continuando a resposta ao outro comentário, eu não me preocupo, nem quero, fazer o trabalho de historiador. Só me preocupo em tirar as minhas dúvidas, que deveriam ser dúvidas em geral, e por isso agradeço outras pertinentes que se coloquem.
      Se deixa os outros mal vistos, e é claro que deixa, isso é problema deles!
      Não tenho nenhuma missão de instruir os povos, no máximo terei com aqueles que me contactam, e disponibilizo a quem procurar (e conseguir encontrar, o que dadas as circunstâncias, nem sempre é fácil).

      Quanto a "Angola", creio que a palavra foi escolhida no contexto de 1944, e não tenho a referência de D. Sebastião para perceber ao que ele se referia.
      À época de D. Sebastião creio que nem mesmo os franceses se atreviam a pôr a pata em África, e não existia ainda a Holanda para reclamar a África do Sul.
      O nascimento da Holanda e a morte de D. Sebastião ocorrem no mesmo ano - 1578.
      Convém não esquecer que o reino Zulu, ou reino Monomotapa, não era nenhum brinquedo, tal como o de Angola, e os portugueses tentaram evitar o conflito. Creio que depois, o governador Rui Távora assegurou que Moçambique ficasse com controlo português. Mas creio que nunca houve nenhuma feitoria em território sul africano, e o vice-rei Francisco de Almeida morreu em batalha com os "Cafres", quando regressava a Portugal.
      Era demasiado mundo para pouca malta, mesmo sendo muito esforçada.

      Cumprimentos.

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  2. D. Sebastião foi o primeiro monarca a reconhecer o reino do Zimbábue e a lhe dar estandarte, queria ser imperador... de Espanha nem bom vento nem bom casamento! quem perde a África do Sul é o Vaticano não os portugueses.

    Os “descobrimentos” quinhentistas por via marítima foram feitos (mandados fazer) para travar a expansão do Islão, que controlava África e Rota da Seda, findo isto aos portugueses deram-lhes o Brasil, o Vaticano deu, pretenderem que tudo fica-se sobe domínio de Portugal é a tal megalomania do Quinto Império.

    “porque não ficámos com a África do Sul” foi porque na geopolítica do Império Romano (atualmente União Europeia) nunca esteve destinado a Portugal ficar com algo, terem ficado com os Açores e Madeira depois de 74 é “milagre” pois era exigido serem entregues a alguém com as outras colónias, está escrito.

    Cumprimentos

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    1. Normalmente, é costume lembrar mais as batalhas que ganhámos do que as que perdemos, mas não se pode dizer que não tivesse havido uma tentativa contra os "Cafres" da África do Sul, e o vice-rei Francisco de Almeida morreu nesse conflito, ainda que não fosse algo muito preparado.

      O reino do Zimbabué, o reino Monomotapa era sólido, e provavelmente as construções do Zimbabué, que foram um epifenómeno na área, resultam de algum contacto europeu, de marinheiros que foram abandonados e se integraram na comunidade. Os nativos diziam ser obra do "demónio", e não as reconheciam como suas, segundo João de Barros.

      Quanto aos Açores, uns chineses que conheci ficaram muito espantados que não fossem dos EUA, conheciam os Azores e não os Açores. Já a Madeira, como me disse um marroquino... primeiro têm que recuperar Ceuta, Melilla, e as Canárias dos espanhóis, depois logo se vê!

      Cumprimentos.

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  3. Mais uma das minhas:
    Bacalhôa Buddha Eden, Bombarral, Portugal. Jardim de esculturas africanas dedicado ao povo Shona do Zimbabué.

    https://commons.wikimedia.org/wiki/File:African_sculpture_garden,_dedicated_to_the_Shona_people_of_Zimbabwe.jpg

    plenamente de acordo que "os nativos diziam ser obra do "demónio", e não as reconheciam como suas", a tendência de hoje é de meterem os negros na proa da Lua,

    " Pouca gente saberá, julgo eu, que em 1802 Napoleão Bonaparte, por exemplo, restabeleceu o tráfico de escravos e a escravidão" e "Com raras exceções eram os africanos que escravizavam outros africanos" tirado daqui:

    "Foram os europeus, e não os africanos ou asiáticos, que aboliram a escravatura"
    Entrevista ao historiador João Pedro Marques, que acaba de publicar Combates pela Verdade - Portugal e os Escravos (Guerra&Paz), livro que reúne crónicas publicadas em vários jornais, incluindo o DN. Explica como a escravatura foi um terrível fenómeno global.

    https://www.dn.pt/mundo/foram-os-europeus-e-nao-os-africanos-ou-asiaticos-que-aboliram-a-escravatura-12349115.html

    Livro que desmente totalmente a conversa do Rosas do bloco.

    E eu digo que estamos outra vez numa época em que a UE napoleónica francesa quer aumentar a população com a importação de negros de África, que para mim é outro tipo de escravatura moderna.

    Cumprimentos

    P.S.
    "Foram os árabes muçulmanos que começaram o tráfico de escravos em grande escala"
    https://www.dn.pt/cultura/foram-os-arabes-muculmanos-que-comecaram-o-trafico-de-escravos-em-grande-escala-10680721.html


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    1. Interessante a ideia que os refugiados na UE visam suprir um contingente de 'escravos', que me lembra sempre uma caricatura de Bordalo Pinheiro contra a república, em que falam dois negros:
      - A república nos dará vida de brancos!
      - Não, dará a todos vida de negros! - responde o outro.

      Sim, a Igreja tolerou a escravatura de não cristãos, isto ainda antes dos descobrimentos.
      Se alguém fosse feito escravo, poderia depois ser mantido ou comerciado como escravo... e isto terá acontecido através de mercadores italianos, judeus, etc.

      O mercado principal eram os países islâmicos (dizer isto pode não ser politicamente correcto), que mantinham a cultura esclavagista.

      https://en.wikipedia.org/wiki/Slavery_in_medieval_Europe#Slave_trade

      De qualquer forma, ainda que não se fizessem escravos, o que me parece difícil de garantir, e apenas se importassem escravos, isto em nada diminui a falha de humanidade, especialmente quando depois os filhos de escravos continuavam a ser escravos!

      Também os europeus, especialmente os latinos, gostam tanto dos vizinhos, que estariam prontos a vendê-los a troco de umas missangas, que hoje em dia aparecem na forma de carros, peças de roupa cara, jóias, etc.

      Mas sim, a ideia de garantir direitos humanos, essa é principalmente uma conquista da civilização ocidental, muito em concreto dos maçons, e também de muitos jesuítas... e isso também deve ser dito.

      Cumprimentos.

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  4. "Mas sim, a ideia de garantir direitos humanos, essa é principalmente uma conquista da civilização ocidental, muito em concreto dos maçons, e também de muitos jesuítas... e isso também deve ser dito."

    Discordo.
    A ideia dos Direitos Humanos Franco-Revolucionário e maçónica é tudo treta...
    Parece-me que a verdadeira semente dos Direitos Humanos deriva do Direito Natural dos Romanos:

    https://en.wikipedia.org/wiki/Jus_gentium#Roman_law

    Tudo resto são apenas acrescentos. E bastante vácuos, na minha opinião.
    Mais, a ideia Franco-Maçónico-Revolucionária do "todos têm direito a x" sem garantir instituições que lhes possam de facto prover as necessidades parecem-me demagogia da mais barata que há.
    Este tipo de direitos "positivos" contrastam com o verdadeiro direito "natural" que se baseia em direitos "negativos" que seria do tipo "x tem o direito a que não lhe façam x e quem lhe fizer x será punido".
    Só a partir daí é que se cria uma sociedade decente e estável.
    É só olhar para os resultados (imediatos e a curto e médio prazo) das Revoluções maçónicas em França e nos Estados Unidos...

    Cumprimentos,
    IRF

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