terça-feira, 30 de abril de 2019

A reinvenção da roda

Voltando a coches, e à citação do Museu dos Coches (em resposta a pergunta de João Ribeiro):
"A invenção e uso das carruagens não é de muito antiga data na Europa. A primeira viatura desta espécie, que talvez apareceu em Paris, foi o carro que em 1457 ofereceu à rainha de França o embaixador de Ladislau V, rei de Boémia e Hungria - país que parece ter sido o berço daquela descoberta sumptuária."
Antes que me vá esquecendo, e apesar de ter referido algumas coisas nos comentários, não poderia deixar de aqui colocar algumas imagens significativas, que indicam precisamente o contrário.

É claro que a questão não é a existência de quadrigas, que estão extensivamente ilustradas em desenhos da Antiguidade, de egípcios a gregos e romanos. A única questão que se levanta, e de forma despropositadamente absurda, é sobre o uso antigo de carros com 4 rodas.

(i) Dinamarca - Trundholm (carro solar)
O primeiro exemplo que apresentamos é o de um objecto de bronze, bem conhecido, encontrado na Dinamarca (em 1902), representando o que é entendido como um "carro solar". A sua datação, estimada pelo museu nacional dinamarquês, é 1400 a.C.
 Carro solar de Trundholm (circa 1400 a.C.)

O curioso neste caso é que neste caso há mesmo 6 rodas, e não apenas 4.
Sendo um objecto simbólico, o cavalo aparece colocado em cima das rodas e não a puxá-las, mas a presença do cavalo indicia justamente o seu apropriado uso para a locomoção do carro.

(ii) Alemanha - Acholshausen (carro alegórico)
Um outro exemplo de representação de um carro alegórico de bronze, foi encontrado num túmulo de pedra na Alemanha, em Acholshausen, num excelente estado de conservação.

Estes dois exemplos, sendo da Idade do Bronze, não permitem concluir que os carros de quatro rodas fossem usados para fins práticos. Claro que aqui se poderia argumentar que se tratam apenas de objectos ornamentais, porque quando não se quer ver, basta fechar os olhos.

(iii) Suécia - Tossene (petróglifo)
Ainda no norte da Europa, há na Suécia, na municipalidade de Sotenäs (em Tossene), inscrições gravadas na rocha com desenhos rudimentares, mas ilustrativos. Estes desenhos estão datados como pertencentes à Idade do Bronze, e podemos supor anteriores a 500 a.C. Nesses petróglifos é mais comum a representação de barcos, mas encontra-se ainda uma inscrição que explicita bem um veículo de 4 rodas, um carro que seria puxado por animais, provavelmente cavalos.


(iv) Itália - Capo di Ponte (petróglifo)
O último exemplo que trazemos, é já em Itália, na região de Capo di Ponte, em Val Camonica, uma região conhecida por ter o maior conjunto de petróglifos conhecidos. Estas inscrições estão datadas desde o Neolítico até à Idade do Bronze.
Neste caso, no parque de Naquane, vemos uma carroça de 4 rodas puxada por dois animais, provavelmente dois cavalos.

Portanto aqui não restam muitas dúvidas que o uso de carroças vai a um tempo que pode ir da Idade do Bronze ao Neolítico (ou mesmo Mesolítico, circa 4000 a. C.).

Carro ou Quarro, Quadrigas
Ora o que se tornou depois popular na época greco-romana foi o uso de quadrigas.
Ou seja, deixaram-se de usar 4 rodas, passou a usar-se um carro com 2 rodas puxado por 4 cavalos.
O uso de 4 cavalos para puxar um carro parece exagerado, e se repararmos na inscrição egípcia que tem Ramsés II num carro de guerra, vemos que há apenas 2 cavalos que puxam o carro.
Ramsés é puxado por um carro com 2 cavalos na Batalha de Kadesh.

Um acontecimento dramático que marcou o fim da Idade do Bronze foi justamente a Guerra de Tróia e eventos seguintes (como a Batalha de Kadesh).

Na minha opinião, na origem da nossa palavra "carro" = "ca+ro", estão as sílabas "ca" e "ro", e isso pode não ser acidental, já que "ro" se associa bem a roda e "ca" a quatro. Ou seja, quando falávamos em carro isso significaria justamente uma identificação a quatro rodas.
Aliás podemos escrever quatorze ou catorze, e portanto a escrita "qua" muito se destinou a esconder a origem "ca", passando a pronunciar-se o "u", numa provável deturpação da palavra original.

Ora, nesta suposição, foi decidido manter o número 4 como número de cavalos a puxar a quadriga, por referência às quatro rodas, ao mesmo tempo que praticamente não restaram nenhumas representações artísticas de carroças com 4 rodas, vindas do tempo greco-romano. 
Isso não teria sido acidental, foi praticamente uma decisão de regime que se impôs a partir da Idade do Ferro, mesmo que se saiba que os romanos usaram o carpentum (conforme referimos), mas dessas carroças não restou nenhuma inscrição ou pintura.

Carroça no Duque de Berry
No bem conhecido livro de horas do Duque de Berry (c. 1412) vemos alguns carros usados pelos camponeses e de facto parece que em época medieval os carros de duas rodas eram os mais comuns. 
Porém, se repararmos no carro solar, que aparece no topo da imagem, a azul, o que vemos é uma divindade conduzindo uma clássica carroça de 4 rodas, puxada por cavalos alados.
  
Trés riches heures du duc de Berry - mês de Setembro. À direita, zoom onde se vê a "carroça solar".
......

Carroça de rainhas
Ainda mais explicitamente, num manuscrito do Séc. XIV (c. 1325-35) aparece uma carroça, carruagem ou caravana, razoavelmente longa, e onde se passearia a corte real, desfilando perante a população. O manuscrito é inglês, de East Anglia, denominado Lutrell Psalter.
Lutrell Psalter - manuscrito ilustrando uma carroça real. (East Anglia, c. 1325-35)

Há ainda outros exemplos, como na Cosmografia Scotti (que já foi aqui mencionada), onde se pode ver uma Balista montada sobre uma carroça, mas de um modo geral podem ser consideradas raras as ilustrações com carros de 4 rodas, na época medieval.

Reinvenção da Roda
É claro que podemos distinguir entre uma carroça e um coche, em termos do seu aspecto e do sistema de suspensão. Digamos que o carpentum romano seria uma carroça (carruagem ou caravana), enquanto que o coche apresentava uma suspensão da cabine, mais cómoda para os passageiros, especialmente em estradas ou caminhos em más condições.
Depois, a questão da definição particular, é apenas uma menção burocrática.

Interessa, isso sim, que o uso da roda para locomoção terá decaído significativamente com a degradação e completo abandono em que foram deixadas as vias romanas, após as invasões bárbaras, conforme mencionámos há bastante tempo. 
Sem essa infra-estrutura, a locomoção rodoviária, tornou-se mais problemática, e podemos quase falar numa reinvenção da roda, quando no Séc. XV voltamos a ter um uso descomprometido dos meios de locomoção.
Não foi apenas a navegação que sofreu um impulso com o início das explorações marítimas.
Também no solo, e para efeitos de maior progresso industrioso e comercial, passou a ser necessário ter as vias terrestres melhor cuidadas, e prontas para o transporte em carros e carroças.

Por isso, quando o Museu dos Coches insiste na absurda menção da sua inexistência antes do Séc. XV ou XVI, não está apenas a chamar a si o ridículo... está também a lembrar os tempos que fizeram a civilização humana ficar parada no tempo durante milhares de anos. Até que a roda fosse reinventada, usada sem quaisquer embaraços sociais ou religiosos, e não apenas como símbolo de tortura e morte.

01.05.2019

5 comentários:

  1. Boa noite caro Da Maia,

    Ainda bem que voltou a tocar neste assunto, tinha algo a acrescentar...

    Do Livro XI da Monarquia Lusitana, Cap XXII

    "... e os nossos perderam o animo, se el rei não baixara do CARRO MILITAR em que andava e, acudira animosamente a esta parte, pelejando a pé com tal esforço..."

    O que me espanta aqui não é o facto de D. Afonso Henriques que estava inibido de cavalgar, ter combatido através de carro/carroça/coche ou fosse lá o que fosse que tivesse rodas, mas sim o facto de um fulano do séc XVI/XVII ter a noção de "carro militar", como se fosse algo usual. Ou Fr. António Brandão remete as bigas/trigas/quadrigas para o séc XII num erro anacrónico de amador ou tinha o conhecimento de que na época medieval, se utilizavam carros para vários fins inclusive o militar. Por outro lado poderia usar o termo seu contemporâneo de "carro militar" remetendo-o para o século XII. Em qualquer um dos casos ficamos intrigados em como se sabe tão pouco sobre o uso de "carros militares" desde a antiguidade até ao seu tempo.

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Carro_de_guerra

    Ab.

    JR

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  2. Quatro rodas http://frawsy.eklablog.com/enigmes-archeologiques-le-jouet-dans-les-civilisations-anciennes-a114840516

    Cumprimentos
    José Manuel

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  3. Juntei os dois comentários num novo texto, porque me pareceu que havia material relevante novo, que não tinha sido directamente abordado nos textos anteriores.
    Obrigado a ambos, João e José Manuel.
    Abraços.

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  4. Boas!
    Há já algum tempo que sigo o Alvor-Silves, é um verdadeiro prazer ler as publicações e também os comentários, sempre tão pertinentes e indagadores.
    Como é a primeira vez que aqui escrevo dou-lhe desde já os meus parabéns e ânimo para continuar.
    Sobre esta publicação e sobre o "encobrimento" da roda, poderia pensar-se que está associado à queda do império romano! Como se diz na gíria, "todos os caminhos vão dar a Roma" e até que ponto não terá sido a rede viária do império um facilitador do avanço das invasões sobre a bacia do mediterrâneo!?
    Talvez o novo establishment pós império romano, considerasse a roda, ou a existência de uma rede viária um perigo contra o seu poder, limitando o seu uso ou decretando a sua proibição, caindo com o tempo no esquecimento salvo para a elite dominante!

    Cumprimentos
    NM

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    Respostas
    1. Caro NM,
      obrigado pelo comentário e palavras.
      É uma muito boa observação, porque sem dúvida que uma das armas da política medieval foi a fixação da população na sua aldeia, no feudo, onde não tinha nada e devia tudo ao seu senhor.
      Assim, a roda enquanto símbolo de mobilidade levantaria efectivamente problemas de controlo.

      A sua observação é tanto mais correcta, quanto o próprio uso do cavalo era restrito à nobreza ou fidalguia, e assim o nome "cavaleiro" passou a ser quase equivalente a ser nobre. Os camponeses usavam, na maioria das vezes, carros de bois ou burros.
      Para se ver o absurdo da situação, associar um cavaleiro à nobreza, seria como associar um motorista à elite de hoje.

      O tema merece sem dúvida que lhe seja dado um espaço de reflexão.
      Obrigado.

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