sexta-feira, 23 de abril de 2021

da Costa Gomes a Gomes da Costa

Há um chefe e um vice-chefe das forças armadas, e são ambos demitidos.
Passado um mês há um golpe militar, e o vice-chefe, sem saber como, passa a presidente, mas enquanto presidente, não consegue formar governo. Acaba por ficar isolado e cai passados 4 meses.
Com o vice-chefe fora de cena, o chefe assume o cargo presidencial.
Dão-se golpes, contra-golpes, etc... mas há um personagem que sai incólume - o chefe:

Francisco da Costa Gomes, a figura nos bastidores do 25 de Abril de 1974.

Costa Gomes estava ao serviço da NATO, e foi a NATO a força dissuasora no 25 de Abril.
A NATO esteve presente de 23 a 25 de Abril com uma armada capaz de arrasar Lisboa.

A hierarquia do MFA seria simples - Costa Gomes era a peça de ligação portuguesa à NATO, e manteve-se nos bastidores. Seria de si que partiam as direcções que coordenava com Vasco Gonçalves, para as reuniões do MFA, onde Otelo Saraiva de Carvalho assumiu protagonismo para os restantes envolvidos.
Houve mais, bastantes mais capitães, mas houve essencialmente um general que soube desviar de si as atenções, a ponto de nos relatórios da CIA se manifestarem dúvidas sobre se era figura apagada ou protagonista.
Para quem era um puto na altura, como eu, seria muito mais fácil associar protagonismo a Spínola do que a Costa Gomes. Para a generalidade dos portugueses, Costa Gomes seria a figura mais apagada daquele período conturbado, em que quase todos procuravam protagonismo.

No entanto, estes são os factos, que já aqui expusemos do Carnaval revolucionário:
  • Costa Gomes esteve sob Humberto Delgado no comando SACLANT da NATO em Norfolk.
  • Costa Gomes foi secretário de estado sob o general Botelho Moniz, então Ministro da Defesa.
  • Humberto Delgado e Botelho Moniz tentaram ambos derrubar Salazar.
  • Após o falhanço do golpe de Botelho Moniz, a embaixada americana sinalizou que melhor solução do que Botelho Moniz seria Costa Gomes.
  • Costa Gomes ficou chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas em 1973.
  • No final de 1973, Vasco Gonçalves começou as reuniões clandestinas do MFA.
  • No início de 1974, Costa Gomes incentiva Spínola a publicar o seu polémico livro.
  • Em 13 de Março, Costa Gomes e Spínola são ambos demitidos do EMGFA.
  • Em 16 de Março dá-se a primeira revolta, o golpe das Caldas.
  • A 23 de Abril, a força da NATO (STANAVFORLANT) está em Lisboa para o exercício:
      • Dawn Patrol (patrulha da madrugada)
  • A 25 de Abril, as chefias militares, até há um mês lideradas por Costa Gomes, não esboçam reacção à iniciativa de Salgueiro Maia. Não há aviões no ar (a NATO estava no Montijo), e o navio português da NATO (comandado pelo pai de Francisco Louçã), ao apontar os canhões para o Terreiro do Paço é bloqueado pela fragata canadiana.
  • Contra as tropas de Salgueiro Maia, restam poucas forças leais a Marcelo Caetano, que se rendem.
  • Quem o MFA vai chamar para a transição é Spínola e não Costa Gomes.
  • Spínola tenta fazer um governo militar, mas a maçonaria impõe Palma Carlos como primeiro-ministro. Ao fim de pouco mais que um mês, Palma Carlos demite-se.
É aqui que começa a aparecer o outro lado da revolução... Vasco Gonçalves aparece como exigência do MFA para ser primeiro-ministro.
Esta exigência parece-me ser claramente de Costa Gomes, provavelmente o líder desde o início desse MFA congeminado pela NATO. Spínola sente-se sem qualquer poder sobre os acontecimentos, em Setembro convoca "a maioria silenciosa" e dela vai receber silêncio...
  • Em Setembro, Costa Gomes passa a ser o segundo Presidente da República após o 25 de Abril, tal como Gomes da Costa foi o segundo Presidente da República após o 28 de Maio de 1926. Até esta troca de apelidos é sinal da troca de regime (Mendes Cabeçadas, esse ainda durou menos tempo que Spínola, e foi afastado passadas duas semanas, em 1926).
  • As figuras lançadas para a frente, Spínola e Mendes Cabeçadas, estavam desligadas dos bastidores das revoluções que iriam tomar a iniciativa seguinte.
Com Costa Gomes e Vasco Gonçalves começa a "transição para o socialismo". Essa experiência vai ser lançada em toda a sua plenitude em 1975 até ao 25 de Novembro. Conforme referi no ano passado, foi uma vacina de turismo revolucionário, que acabou definitivamente com os ideais anárquico-socialistas.

Afastados Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho, Costa Gomes manteve-se como presidente, como se nada se tivesse passado. De certa forma, naquele período conturbado tanto permaneceu como referência para a extrema-esquerda, como para o centro-direita. Mas a sua permanência estava aprazada, enquanto figura de transição, até à eleição de Ramalho Eanes em 1976.

O papel de heróis do 25 de Abril caiu por inteiro nos capitães, mas todos estes bastidores fazem crer que, à excepção de Otelo, tiveram pouco mais que uma intervenção comandada de fora.
A troika (conforme lhe chamaram os americanos) Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho, poderá ter tido uma ideia de aproveitar a revolução para tentar implantar um certo socialismo, algo anárquico, mas se essa ideia pode ter sido algo genuína em Otelo e Vasco Gonçalves, parece-me que serviu mais propósitos de vacinação pela parte de Costa Gomes e da NATO. 

Diz-se que Kissinger terá pensado numa invasão de Portugal, usando a Espanha, mas isso seria mais porque provavelmente não estaria completamente ao corrente da experiência científica que a CIA estava a fazer em termos de vacinação contra os ideais socialistas anárquicos. Os muitos grupos deslumbrados com a experiência revolucionária portuguesa, viram-na cair por si mesma, sem intervenção externa. Isto foi marcante no progressivo desaparecimento de muitos desses grupos na Europa.

O custo deste carnaval revolucionário foi depois passado em forma de cheque ao FMI, em duas tranches, a primeira logo em 1977, e a outra em 1983, para dar acesso à superliga da CEE (tal como o custo da entrada no "euro" começou a pagar-se em 2011). E, é claro, como todos sabem, aquela coisa a que chamam "vacinas", só a alguns parece ser obra de caridade das farmacêuticas.

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11 comentários:

  1. Também há a versão de 'estava tudo combinado', incluindo o próprio Marcelo Caetano que apenas exigiu da tropa vir sem balas e uma esquadra da NATO para o que der e vier.
    E realmente assim aconteceu sem um tirinho, a não ser da chaimite contra a frontaria da GNR no Carmo mas só para dar a ideia.
    Então aparece uma esquadra da NATO e ninguém do governo teve conhecimento da verdadeira razão de aparecerem no Tejo? Claro que todos sabiam e até meteram o pai do Louçã para disfarçar a coisa.
    Desculpe-me este meu ponto vista jocoso, mas passados quase 50 anos ainda há gente, principalmente alguns militares superiores, com aquela do 'palavra d'honra que é verdade', como eu descrevo, para se livrarem do grande baile que levaram e sem haver mortos e feridos.
    Cumprimentos

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    1. Sim, essa hipótese de um possível envolvimento de Marcelo Caetano foi ligeiramente abordada no postal:

      https://alvor-silves.blogspot.com/2020/04/marcelo-e-os-40-baroes.html

      onde escrevi:
      Marcelo Caetano, poderia ter promovido/aceitado um golpe de estado contra si mesmo?
      Não parece, mas parece claro que quem o apoiou não o deixou cair, e cuidou que fosse exilado em segurança no Brasil.


      A esquadra da NATO é mesmo o elefante na sala, que todos fazem gala em omitir desde sempre.
      Isso não impede os actos de heroísmo pessoais, e nesse aspecto Salgueiro Maia, enfrentou praticamente sozinho, as (poucas) forças que se opuseram:

      https://odemaia.blogspot.com/2021/04/maia.html

      Mas esse heroísmo pessoal, e a capacidade de liderar a revolta sem vítimas, é a peça separada, frontal e visível do 25 de Abril, em que ele foi protagonista maior.

      Isso em nada altera, aumenta ou diminiu, a circunstância envolvente nos bastidores.

      Por exemplo, que o próprio Kaulza de Arriaga considerou um golpe da ala extrema-direita contra Marcelo, em Dezembro de 1973.
      Também as forças opositoras consideravam a hipótese de uma revolta contra a direcção mais moderada de Marcelo. Aliás Marcelo chegou a apresentar a demissão, que não foi aceite por Américo Tomás.
      Como por magia, essa linha de direita, esteve inoperacional em Abril.

      Cumprimentos.

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    2. "Por exemplo, que o próprio Kaulza de Arriaga considerou um golpe da ala extrema-direita contra Marcelo, em Dezembro de 1973.
      Também as forças opositoras consideravam a hipótese de uma revolta contra a direcção mais moderada de Marcelo. Aliás Marcelo chegou a apresentar a demissão, que não foi aceite por Américo Tomás.
      Como por magia, essa linha de direita, esteve inoperacional em Abril."

      Não resisto.
      Se quiser desenvolver, gostaria muito de o ler...

      Cumprimentos,
      IRF

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  2. "para tentar implantar um certo socialismo, algo anárquico, mas se essa ideia pode ter sido algo genuína em Otelo e Vasco Gonçalves, parece-me que serviu mais propósitos de vacinação pela parte de Costa Gomes e da NATO."

    Excelente.
    Concordo plenamente consigo.
    E estar-lhe-ei eternamente grato por me ter mostrado o que se passou realmente no 25 de Abril.
    Por acaso conheço alguns Historiadores reputadíssimos da nossa praça a quem alimentei "bocadinhos desta verdade".
    Primeiro, reagiram com desprezo (2) à "minha" ideia de que Costa Gomes foi o cabeça do 25 de Abril, mas depois de revisitarem os acontecimentos, embora não me tendo dado razão, ambos cederam que "se calhar há aí qualquer coisa de verdade".

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Obrigado.
      Creio que Rui Ramos também terá a ideia de que Costa Gomes, no contexto dos generais, desempenhou um papel importante nos bastidores, e isso tende a acontecer com quem fez e irá fazer biografias de Costa Gomes.
      Mas a perspectiva é diferente, é no sentido de que Costa Gomes teria sido contactado pelo MFA depois do golpe falhado das Caldas. De alguma forma querem ignorar a coincidência da chegada da frota da NATO, e do seu papel no golpe. Quem tornou isso claro foi Carlos Sebastião e Silva em 2016.

      A forma como Costa Gomes foi visto no pós-25A, como uma "rolha" que impediu um progressismo "mais vigoroso", a sua aparência indecisa e algo hesitante, deixando que os acontecimentos se fossem desenrolando, mas sempre evitando a violência e a guerra civil, torna difícil suspeitar, para quem passou por aquele período, que Costa Gomes fosse o maior protagonista.

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    2. Caríssimo, pode explicar mais concrectamente ao que se refere quando menciona Carlos Sebastião e Silva e Rui Ramos?

      A minha pesquisa rápida no Google não encontrou nada relativo à matéria.
      Sebastião e Silva é um escritor, certo?

      Cumprimentos,
      IRF

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    3. É o José Manuel Oliveira que neste postal invoca o Rui Ramos:

      https://alvor-silves.blogspot.com/2019/04/dos-comentarios-49-25-de-abril-sem.html

      ««
      Deixo aqui um ensaio de Rui Ramos, a lerem no Observador:

      https://observador.pt/especiais/os-generais-de-abril/

      “Sem os generais, a revolução nunca provavelmente teria acontecido, como aliás um desses generais, Costa Gomes, fez questão de notar anos depois: no dia 25 de Abril de 1974, as tropas mobilizadas para a revolução – 150 oficiais e 2000 soldados, a maior parte instruendos das “escolas práticas”, sem qualquer experiência de combate — nunca, em circunstâncias normais, teriam sido suficientes para derrubar um regime que, nesse ano, mantinha mais de 150 000 homens em armas”
      »»

      Ou seja, o próprio Costa Gomes (talvez já farto de considerarem só os capitães no 25-A), fez notar aos mais distraídos, que 2% das tropas não conseguiriam nada, se os outros 98% não tivessem assobiado para o lado.

      Quanto a Carlos Sebastião e Silva, no seu facebook deixou a informação, acerca da participação da NATO - eu não sabia de nada disso, até ver as suas páginas, indicadas pela Maria da Fonte.

      Isso está descrito no 1º postal (que cito acima):

      https://odemaia.blogspot.com/2016/04/mary-poppins-e-o-25-de-abril.html

      Ou seja, não foi propriamente uma conclusão a que chegaria sozinho, sem ter aquelas indicações de Maria da Fonte e José Manuel Oliveira, que remeteram a informações vindas de Carlos Sebastião e Silva e a Rui Ramos.
      Provavelmente eles próprios também as obtiveram de outro lado, no caso de Rui Ramos, parece ser claro que terá vindo do próprio Costa Gomes.

      A única coisa que fiz foi somar as parcelas...

      Cumprimentos.

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    4. Ok.
      Infelizmente não li o artigo de Rui Ramos no Observador, que está por trás da pay wall.

      Cumprimentos,
      IRF

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    5. A única parte relevante para o efeito, creio ser a que foi citada.

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  3. Acabei agora de ver o seu post "Maia" no outro blog.
    Tirando a propaganda ridícula da SIC, está tudo muito bom. Muito obrigado por este tesourinho. Nunca o tinha visto e não sabia da sua existência.

    Não me parece que Salgueiro Maia entre em contradição com aquilo que "descobrimos" aqui.
    Aliás, quando diz que os Generais Spínola e Costa Gomes serviriam como uma "fachada" para ter o poder... não me parece que tenham sido os tais Generais a fachada... ou se o foram foram marionetas da NATO.

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Sim, os cortes da entrevista que a SIC fez pelo meio,
      https://odemaia.blogspot.com/2021/04/maia.html

      não enquadraram nada do que Salgueiro Maia estava a dizer, e servem o despiste.

      Não digo que Costa Gomes tenha sido marioneta da NATO, mas era suficientemente cauteloso, para nunca ter feito nada que pudesse ter hostilizado a posição dos EUA contra Portugal.
      Pareceu assim, e houve sectores dos EUA que o entenderam assim, mas creio que Costa Gomes sabia o que estava a fazer, dentro dos limites impostos pelos diversos lados.

      Conforme Maia esclareceu a formação política dos militares à época do 25A era nula, ou melhor só conheciam a política da hierarquia militar. Os milicianos estavam mais ligados aos sectores do PCP e depois ainda entraram em ideais mais aventureiros à esquerda.

      Ora, é aqui que a posição de Costa Gomes é ambígua... saindo pelo lado vencedor no 11 de Março e no 25 de Novembro.

      Cumprimentos, e obrigado.

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