domingo, 9 de agosto de 2020

Navegações atlânticas medievais (3)

Este terceiro texto respeita ao papel dos Corte-Real na exploração da América.
Em 1932 o presidente da câmara de Lisboa, José Vicente de Freitas, fez inaugurar uma estátua na Avenida da Liberdade, com os seguintes dizeres, que se mantêm na calçada junto à estação de metro da Avenida, conforme já mencionámos antes:

João Vaz Corte Real – Descobridor da América – Descoberta da América 1472 
Gaspar Corte Real 1500 – Miguel Corte Real 1502 – Canadá – Terra Nova – Groenlândia 
Homenagem à América Setentrional – Câmara Municipal de Lisboa MCMXXXII

Estátua de João Vaz Corte Real e a inscrição "Descobridor da América"

A inscrição deverá ter causado algum escândalo, e pelo menos temos a reacção de Thomaz de Souza:
Será que o prefeito de Lisboa que assim procedeu, entende que, mesmo em se tratando de historia, "a alma do negocio é a propaganda"?! Deixemos porém em paz essa estravagancia do original lisboeta, e vejamos se João Vaz Corte Real é de fato um personagem de vulto na sempre empolgante historia do descobrimento do Novo Mundo. 
no 3º capítulo do seu livro "O Descobrimento do Brasil" (1946), de que já falámos.

Seja como for, o que é certo é que há 88 anos alguém perdeu o medo de afirmar uma convicção, presente na comunidade. Tem-se feito por esquecer este lapso que contornou os censores de serviço.
Este afirmação na calçada nada teria de extraordinário, se os nossos historiadores não estivessem reduzidos a uma burocracia acéfala, e defendessem a única tese que faz sentido defender:
- ou seja, que as navegações portuguesas exploraram a América antes de Colombo.

Nada tem a ver com nacionalismo, simplesmente não faz sentido outra coisa!
Os portugueses viajarem em caravelas até ao fim de África, não implicaria que tivessem o ânimo de navegar para Ocidente. Com efeito poderiam estar presos a uma navegação costeira, sem habilidade para navegar em alto mar, etc, etc.
Mas então como justificar que tivessem chegado à Madeira em 1418, e especialmente aos Açores em 1427, ou 1432, segundo o registo oficial? 
Foram viagens acidentais? É claro que não! 
Foram viagens atlânticas sistemáticas para Sul e para Ocidente.

As caravelas eram bastante manobráveis, e permitiam navegar à bolina, contra o vento.
Temos um espaço de 60 anos de navegações 1432-92, com inúmeros registos de explorações concedidas para "ilhas" ou "terra firme" a Ocidente. Temos o irmão de D. Afonso IV, o infante D. Fernando, que participou activamente nessas explorações a Ocidente. 
Ainda por cima, partindo dos Açores, estavam já com quase metade do caminho atlântico feito.
As viagens para os Açores eram sistemáticas, levaram a uma rápida colonização das ilhas, com várias viagens bem sucedidas, a cada novo ano. Não podia haver nenhum medo de fazer essas viagens, a quem se deslocava frequentemente de e para os Açores. 
Encontrar as minúsculas ilhas açorianas no meio do Oceano Atlântico seria muito mais difícil do que ir parar à América, continente que apareceria inevitavelmente a todos que fossem para Ocidente.

Aliás, argumenta-se depois que só Cook conseguiu encontrar o Havai, no meio do Pacífico, quando todos os anos os galeões de Manila atravessavam o Pacífico das Filipinas ao México. Se era tão fácil encontrar os Açores, também deveria ter sido encontrar o Havai. Mas os argumentos mudam, consoante a situação e o interesse.

João Vaz Corte Real terá feito a viagem em 1472, e contra isso levantam-se argumentos ridículos de dificuldade, impossibilidade, etc... Subitamente em 1500, sem que nada tivesse mudado, excepto na burocracia, Gaspar Corte Real vai fazer a mesma viagem que o pai, depois volta a repeti-la em 1501, e logo de seguida vai Miguel Corte Real em 1502, com três navios, regressando apenas dois.
No espaço de menos de 30 anos, sem que houvesse qualquer revolução nos ventos, nas correntes, etc, já não havia nada que impedisse aquelas viagens? 
Porquê? Porque estão burocraticamente registadas.

Mas não estão burocraticamente registadas as viagens a Ocidente dos portugueses?
Claro que sim! Por exemplo, o mapa de Zuane Pizzigano em 1424 revela não apenas as Antilhas, mas também um conjunto de ilhas Satanazes, que corresponderiam às ilhas da Terra Nova.
O nome "Antilhas" foi designação exclusiva portuguesa, que acabou por ficar no léxico.
 
Mapa de Pizzigano (1424) e interpretação das direcções das Antilhas e das Satanazes,
que efectivamente se vê que vão parar à zona das Antilhas (vermelho), e da Terra Nova (azul).

Há depois as diversas menções, dispersas, que levavam a uma efectiva conclusão de que havia navegações a ocorrerem para Ocidente, mas tudo é desconsiderado...

Bom, e efectivamente, os reis portugueses pouco fizeram pelo descobrimento da América, e fizeram muito mais pelo seu encobrimento, aos olhos dos outros reinos europeus. Sob essa perspectiva, Colombo, com a sua grande boca, foi efectivamente quem deu notícia da América, ou antes das Índias por caminho ocidental, de tal forma a sua ideia do globo estava errada.

Mas o problema não foi o encobrimento, o problema acumulado é a recusa em admitir esse mundo secreto de encobrimento, de que os portugueses fizeram parte, e chegar-se ao ponto de recusar o óbvio, o senso comum, com razões estapafúrdias que roçam o absurdo e o completo ridículo.

João Vaz Corte Real
A menção a uma viagem de João Vaz Corte Real e de Álvaro Martins Homem, aparece num trecho do 6º livro "Saudades da Terra" de Gaspar Frutuoso. Esse livro terá chegado incompleto, a versão a que tive acesso é a que está neste endereço (edição de 1998). O que o trecho diz é que antes de beneficiarem das capitanias na Terceira em 1474, estes navegadores vinham da Terra do Bacalhau:
(...) vieram ter a ela dois homens fidalgos, por nome, um deles, João Vaz Corte-Real, e outro, Álvaro Martins Homem, os quais vinham da Terra do Bacalhau, que por mandado de el-rei foram descobrir, e, informados como a ilha estava, se foram ao reino, onde o (sic) pediram de mercê por seus serviços à infanta Dona Breatis, mulher do infante Dom Fernando e mãe do duque Dom Diogo (...)
Frutuoso escreve isto um século depois, e portanto, será de questionar as suas fontes, mas sendo açoriano, estaria mais a par da história das ilhas. Há vários outros elementos a favor da tese Corte Real, que me parecem bem resumidos numa comunicação feita em 2014 à Sociedade de Geografia:


Os contra-argumentos de Thomaz Souza são da estirpe que já temos visto. 
Tenta dizer que Frutuoso não é credível porque confunde a figura do pai Vasqueanes, homem forte, com o filho João Vaz, e pela argumentação dos Mattos e Silva, poderá ter havido mais Vasqueanes e João na família. Argumenta o habitual, ou seja que os outros historiadores, como Galvão ou Goes, não fazem referência à viagem do pai João Vaz e só do filho Gaspar Corte Real, etc.
Faz ainda referência ao historiador dinamarquês Sophus Larsen, que argumentara que a expedição de João Vaz Corte Real tinha sido feita em conjunto com o rei da Dinamarca, dizendo que não se encontrava tal documentação de suporte, etc.

Depois, como aparecem em vários mapas uma angra ou baía, de nome João Vaz, no Labrador, muitas vezes denominada Terra dos Corte-Reais, tenta argumentar que o nome não é João Vaz, mas sim João Álvares, argumentando ser uma abreviatura:
devido aos traços por cima do nome. Coisa que parece ser da sua lavra, mal informada, já que a abreviatura para Álvares, era normalmente Alv~z, de onde surgiu a contracção Alves.

Isto é sempre bastante curioso, porque vão-se buscar vários mapas, mas esquecem-se sempre dos mapas do Livro de Marinharia de João de Lisboa

onde aparece Angra de João Vaz (@deJuáouáz), e não há aqui espaço a invenções de que seria João Álvares. Curiosamente no Livro de Marinharia não aparece o topónimo Terra dos Corte-Reais, mas quando colocado, seria redundante escreve mais do que João Vaz para se saber quem era.

Aquilo que nos parece claro é que os nomes portugueses não foram parar àquelas paragens apenas pela viagem dos filhos Gaspar e Miguel, e se poderia dizer-se que o nome do pai seria colocado como homenagem dada pelos filhos, os irmãos Matos e Silva são de opinião contrária, que seguimos. Essa tradição não existia, e não justificaria tantos outros nomes.
Aliás acerca dos nomes portugueses nestas paragens canadianas em 1504 e 1514, que incluem uma angra dos Gamas, mostrando que não seria só exploração de Corte-Reais, remetemos para:

Agora, parece claro que haverá sempre pessoas que, como nós, vão obstar à teoria oficial; e os que a sustêm, por dever, interesse ou devoção, acabam por ter que deixar o espaço para dúvida em si mesmos, ainda que pretendam inventar as mais mirabolantes desculpas... para inglês ver.
Por enquanto, pode-se ver a calçada, até que algum menino do regime decida levantar o chão...

5 comentários:

  1. "Temos um espaço de 60 anos de navegações 1432-92, com inúmeros registos de explorações concedidas para "ilhas" ou "terra firme" a Ocidente."

    Não me leva mal, caro Alvor Silves, mas parece-me que o mais importante que pode fazer no seu blogue é documentar detalhadamente isso mesmo, de maneira a não deixar qualquer réstia de dúvidas.
    Pode dizer que outros já o fizeram e que não importa.

    Não concordo que não importe. Não vejo que pode vir com algo que importe mais.
    É premente. Lanço-lhe o desafio.

    (Aquelas cartas de um Rei Português - D. João II - com um Italiano que vi aque neste blogue que falam da praia Oriental, onde estão? - por vezes tenho dificuldade em encontrar pérolas que já por aqui li.)


    "As viagens para os Açores eram sistemáticas, levaram a uma rápida colonização das ilhas, com várias viagens bem sucedidas, a cada novo ano."

    Porque diz isto? A via uma carreira de viagens anuais para os Açores? Ou Mensais?
    Pergunto porque não sei, acho possível e até provável, estou curioso e gostaria de saber...

    Hei de ler esse texto dos Matoso e Silva.

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Caro IRF,
      a obra que já tinha mencionado de Manuel Fernandes da Costa (1979):

      https://www.academia.edu/6945313/Biblioteca_Breve_AS_NAVEGAÇÕES_ATLÂNTICAS_NO_SÉCULO_XV

      num texto anterior:
      https://alvor-silves.blogspot.com/2020/07/fra-mauro-por-via-de-costa.html

      dá uma relação de algumas doações de Afonso V, a que se juntam outra já mencionadas, é dito assim:

      A 19 de Fevereiro de 1462 D. Afonso V doou a João Vogado duas ilhas «novamente achadas», com a condição dele as mandar povoar, pois não o eram, «… segundo acarta de marear, são chamadas uma ilha do Lovo a outra Caprária…»
      Mas em 29 de Outubro de 1462 o soberano doou a D.Fernando, herdeiro de D. Henrique, uma ilha que ele mandara descobrir por um Gonçalo Fernandes, mercador de Tavira, no regresso das pescarias do Rio do Ouro,«sendo no pego a oés-noroeste das ilhas da Madeira».
      Pelo documento depreende-se que D. Fernando ia mandar de novo descobri-la. Vicente Dias, de Tavira, ao regressar da Guiné à ilha Terceira, já passada a Madeira,que deixara a nascente, avistou também uma ilha. D. Afonso V, pela lei geral de 31 de Agosto de 1473, proibiu sob pesadas penas, que ninguém fosse às partes da Guiné sem licença e autoridade nossa «utilizando a expressão partes da Guiné em sentido amplo».


      A povoação dos Açores terá sido feita rapidamente, e daí apenas posso deduzir que pela constituição de povoações bem demarcadas, em registos do Séc. XV, isso corresponda a várias famílias por povoação. Não conheço estimativas do assunto, mas para haver uma disputa férrea entre Jacome de Bruge, João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem, isso representasse já uma população considerável na ilha Terceira, por exemplo. Mesmo que fossem só um milhar de pessoas, tal não seria feito sem algumas viagens anuais.

      Todas as suas questões são pertinentes e agradeço a observação de cuidado.

      Devido a essa sua questão fui procurar e dei com isto:

      https://ictaweb.uab.cat/noticies_news_detail.php?id=3319

      The Azores Islands were inhabited a century and a half before the Portuguese colonization, according to the fossil pollen found in a lake from São Miguel island

      ... ou seja, os registos de pólen estudados por espanhóis e portugueses em 2017, nomeadamente de centeio, mostraram que havia produção de centeio por volta de 1300, pouco depois da erupção registada em 1280:

      These settlements would have been established shortly after the last volcanic eruption, which occurred in the island around 1280. It is not known yet if humans inhabited the island before the eruption, an issue that should be verified in future studies.

      Soube de alguma coisa sobre esta publicação em Portugal?

      Está numa boa revista da área, e portanto, não é nada que se possa deitar no lixo:
      https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0277379116305753

      Mas foi, e vai continuar a ser... só que é preciso mais do que restrições coronavirus para ir parando os factos de emergirem.

      Cumprimentos.

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  2. "Soube de alguma coisa sobre esta publicação em Portugal?"

    Acho que sim.
    Acho que fizeram algum alarido nos telejornais.
    Não tenho como lhe mostrar mas lembro-me de qualquer coisa nesse sentido, mas também creio que seja só uma moda como as "antas" dos Açores que parecem ser construídas pelo Homem.

    Seriam Portugueses?
    Se não, o que seriam? Fica a pergunta no ar.

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Bom, isto só mostra que eu preciso de tirar férias... depois lembrei-me, que na altura fui avisado desse estudo, e está aqui reportado:

      https://alvor-silves.blogspot.com/2017/02/dos-comentarios-28-espera-espora-e-o.html

      Ao fim de quase 1100 postais (650 aqui, 450 no odemaia), já não tenho presente a totalidade do que escrevi, e preciso mesmo de repensar este espaço, antes que passe a repetir coisas antigas como novidade.

      Cumprimentos.

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  3. Estou perfeitamente convicto de que se chegou (Portugueses) ao continente Americano no inicio do século 14. Embora não existam registos directos (públicos pelo menos) existem pequenas pistas, uma dela prende-se com os açores e com o exilio dos templários franceses fugidos de frança, que não tenho duvidas rumaram de la Rochelle com destino a Portugal, alguns mudaram de nome e foram enviados para comendas da ordem, mas uma significativa maioria foi enviada para os já descobertos açores, existindo uma zona na ilha de São Miguel que aquando do envio de colonos após a descoberta oficial já teria uma comunidade gentes não portuguesas (segundo um manuscrito da época) uma analise de DNA poderia efectivamente provar esta questão e caso o fizesse seria certo que os templários Portugueses não teriam parado por Ali. Na costa da America e Canada há diversos registos/mitos de homens brancos terem Ali chegado incluindo Nova escocia, procurar overton stone.

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