sábado, 15 de agosto de 2020

Flor do Mar & Gangnido

Aquando da comemoração do descobrimento da América, em 1892, a casa real compilou alguns documentos constantes da Torre do Tombo:

Alguns documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo 
ácerca das navegações e conquistas portuguezas publicadas por ordem do governo 
de Sua Magestade Fidelissima ao celebrar-se a commemoração 
quadricentenaria do Descobrimento da America 
Academia Real das Sciencias de Lisboa. Imprensa Nacional, 1892.

Nesse conjunto está uma carta de Afonso de Albuquerque, de 1 de Abril de 1512, que tem uma pequena "surpresa", pelo aqui fica o extracto constante:



Que transcrevo (a parte a negrito é o que destaco):
Nesta primeira via vos vai uma carta grande, em que vos dou razão de tudo o que fiz desde a partida das naus de Duarte de Lemos e Gonçalo de Siqueira até minha tornada de Malaca a Cochim; foi começada em Malaca e acabada em Cochim, e perdoe-me Vossa Alteza, se na mesma carta e modo de escrever dela me achardes nestes dois lugares de que a carta faz menção que vos eu escrevo, pelo grande trabalho que é escrever a Vossa Alteza largamente, quem todo o dia e toda a noite tem que entender em outras cousas: mando-vos, senhor, também um padrão da ilha de Goa, de Diu e da ilha do canal de Cambaya, que vos prometem para a fortaleza e segurança de vossa feitoria; também vos vai um pedaço de padrão que se tirou de uma grande carta de um piloto de Jaoa, a qual tinha o cabo de Boa Esperança, Portugal e a terra do Brasil, o mar Roxo e o mar da Pérsia, as ilhas do Cravo, a navegação dos chins e gores, com suas linhas e caminhos direitos por onde as naus iam, e o sertão, quais reinos confinavam uns e os outros: parece-me, senhor, que foi a melhor coisa que eu nunca vi, e vossa Alteza houvera de folgar muito de a ver; tinha os nomes por letra jaoa, e eu trazia jao que sabia ler e escrever; mando esse pedaço a Vossa Alteza, que Francisco Rodriguez emprantou sobre a outra, de onde Vossa Alteza poderá ver verdadeiramente os chins de onde vêm e os gores, e as vossas naus o caminho que hão de fazer para as ilhas do Cravo, e as minas do ouro onde são, e a ilha de Jaoa e de Banda, de noz moscada e maças, e a terra del rey de Sião, e assim o cabo da terra da navegação dos chins, e assim para onde volve, e como de ali adiante não navegam: a carta principal se perdeu em Frol de la Mar: com o piloto e com Pero de Alpoim pratiquei o sentir desta carta, para lá saberem dar razão a Vossa Alteza; tende este pedaço de padrão por coisa muito certa e muito sabida, porque é a mesma navegação, por onde eles vão e vêm: mingua-lhe o arquipélago das ilhas que se chamam Çelate, que jazem entre Jaoa e Malaca. 
Portanto, Afonso de Albuquerque ficou espantado com uma grande carta de um piloto de Java, que tinha marcado o Cabo da Boa Esperança, Portugal e o Brasil... A carta perdeu-se no naufrágio do navio Frol de la Mar, onde seguia Afonso de Albuquerque, mas ele conseguiu ainda recuperar o conteúdo com Pero de Alpoim, que assim enviava a D. Manuel.

Não é propriamente daquelas coisas que seja divulgada entre nós, mas não está escondida.
Num artigo de 1996, de Benjamin Olshin:

este comentou o assunto de novo, não revelando muito mais, mas esclarecendo acerca da opinião de Armando Cortesão sobre o assunto. Armando Cortesão não considerou estranho que o Brasil constasse da carta do piloto javanês, porque já eram passados mais de 10 anos sobre as primeiras cartas portuguesas do Brasil, a que os javaneses poderiam ter tido acesso!

Tal como Olshin, isso parece-me improvável, porque Afonso de Albuquerque saberia distinguir uma cópia, e além disso, não se tratava propriamente de um documento estatal escondido, seria tão só uma carta do piloto de um junco de Java, que acabava de constatar que o domínio do Estreito de Malaca tinha passado para mãos diferentes.

O problema não é apenas o original se ter perdido no naufrágio do navio "Flor do Mar", o problema recorrente é o mapa que Afonso de Albuquerque enviou não estar junto da carta, e como é habitual, "perdeu-se".

Já aqui falámos de mapas chineses, que nos pareceram simples adaptação de mapas europeus, mas convém também mencionar um mapa coreano (os referidos gores podem ter sido coreanos ou japoneses) chamado Gangnido:
Gangnido - um mapa de 1402 feito pelos coreanos Yi Hoe and Kwon Kun, encontrado no Japão. 
Há também um muito semelhante mapa da dinastia Ming, Da Ming Hunyi Tu, datado de 1389.

... que se especula ter aí representada a África e a Europa:

Isto serve também de referência ao leitor relativamente ao alcance de especulações ditas sérias... quando se tem em vista um certo resultado.

De qualquer forma, eu não colocaria de lado esta possibilidade, até porque neste caso nem sequer está o Brasil, conforme Afonso de Albuquerque revelava acerca do mapa javanês.
Poderá ter sido um mapa deste tipo, com o tamanho dos continentes distorcido, tendo em atenção o foco local da navegação. Esse grau de distorção, mas a percepção de que corresponderia a uma ideia correcta da disposição do mundo nos seus contornos, poderá ter sido isso que causou admiração ao grande vice-rei, que era igualmente grande ao reconhecer mérito alheio.

Portanto, a ideia pequenina, que segue a par da grandeza da história ocidental, de que o assunto de navegações era coisa complicada e só ao alcance do europeu civilizado, deve ser colocada no seu contexto. Mesmo que Armando Cortesão esteja correcto, e o mapa do javaneses tenha sido adaptado de mapas portugueses surrupiados, isto significaria apenas que em Java sabiam fazer o mesmo que em Itália, em França, na Holanda, na Alemanha, etc. 

António de Abreu, na viagem de 1512, recorreu a pilotos javaneses para saber o caminho para as ilhas Molucas, e como estes optaram por enganá-lo, levando-o a outras ilhas, ele simplesmente optou por mandá-los borda fora, quando se apercebeu disso. 
Outros tempos, e um outro tipo de tratamento para a falsidade propositada.

4 comentários:

  1. Portanto, parece-me que "Jaoa" há de ser Java, a principal ilha Indonésia.
    Com que então foi enviado ao Rei de Portugal uma carta Javanesa (ou de Malaios, ou lá de quem fosso do arquipélago Malaio) com as rotas as ilhas, etc. chegando até a documentar as navegações Chinesas.
    É muito bom que isto esteja documentado.
    Mas lá está, já se sabia, pois quando Portugal rebentou com a principal potência da região, o Sultanato de Malaca, este tipo de conhecimento teria obrigatóriamente de vir parar ao colo dos Portugueses.

    É de salientar que os Árabes / Muçulmanos, tendo contacto com toda a gente, quer a Oeste que a Leste, deveriam ter tido todos os meios para elaborar um mapa bastante bom de todas as Costas da Eurásia incluíndo o Norte e Leste de África.

    Agora, fantástico, fantástico era encontrar essa carta uma vez que teria incluído Portugal e o Brasil... creio que não poderia ser uma carta autóctone Javanesa ou dos Malaios, mas que tivesse obrigatóriamente de passar pelos mouros, à altura, creio que os Turcos.
    E isto é tanto mais assim como tanto os Turcos como os Marroquinos à altura contavam com um brutal número de Judeus oriundos principalmente da Península Ibérica, alguns dos quais deveriam ter conhecimentos de cartografia e das nossas navegações.

    Então, o mapa mundo Javanês do século XVI existe mesmo? Quero vê-lo!
    Mas a existir, creio que só podia ser de origem Muçulmana, principalmente Turca.

    Interessantíssimo, caríssimo, interessantíssimo...
    Cumprimentos,
    IRF

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    Respostas
    1. Sim, o nome Jaoa deve ter sido escrito Jaua, e da confusão (propositada) entre o U e V que vinha do tempo dos romanos, o "u" foi lido como "v" e passou a Java.
      Este é apenas um dos aspectos da teoria da conspiração, em que insisto, e que já vem do tempo dos gregos... ou seja, a mistura de letras.

      Estou agora de férias, mas tenho aí escrito um pequeno apontamento sobre essa mudança de letras... que segundo consta começou depois da Guerra de Tróia!
      Uma das coisas mais caricatas e absurdas é ter sempre uma confusão para escrever Ke ou Ki, chegando a usar-se Que ou Qui (qual o interesse em pôr um "u"?). Mas mesmo com o K que serviria para evitar o Ce, Ci, que se lê como Se, Si, não foi suficiente. Os ingleses escrevem kinetic mas lêem como cinetic, etc.

      Os mapas que os turcos tiveram parecem ser ao nível dos conhecidos por Piri Reis.
      Quando Albuquerque chega ao Oriente, ainda eram os Mamelucos a controlarem o Egipto, o xá Ismael a controlar a Pérsia, e dos turcos antevinha-se o aparecimento, mas se Afonso de Albuquerque tem tido autorização, teria conseguido apanhar Jerusalém sem defrontar os turcos. Estes só chegam a Jerusalém em 1516.

      Quanto ao mapa javanês, deve existir, mas está proibido aos nossos olhos...

      Cumprimentos.

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    2. Link sobre a mudança de letras:

      https://alvor-silves.blogspot.com/2011/07/o-espirito-da-letra.html

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    3. Ok, registado.

      Cumprimentos,
      IRF

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