domingo, 12 de abril de 2020

dos Comentários (62) - descobrimentos terrestres portugueses

Acerca das viagens portuguesas por terra foi-lhes dado muito menos âmbito e protagonismo do que as realizadas por mar. Exceptuam-se as feitas por Pêro da Covilhã e Afonso Paiva, para eventual preparação da viagem de Vasco da Gama, e depois as viagens de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que simplesmente repetiram uma viagem promovida 75 anos antes por Saldanha da Gama, e realizada vezes sem conta por portugueses, antes da mania colonialista europeia do Séc. XIX, com os pseudo-exploradores de farnel inglês, Livingston ou Stanley.

João Ribeiro, num recente comentário, falou do padre jesuíta António de Andrade, que foi o primeiro europeu a viajar até ao Tibete:
Padre António de Andrade (esq.) e Frei Bento de Góis (dir.) - exploradores do Tibete e China

O assunto já tinha aparecido nos comentários, (p.ex. José Manuel Oliveira falou dele aqui), mas como o assunto dos "Descobrimentos terrestres portugueses" não existe, nem enquanto nome, decidi ir buscar a resposta a quem melhor a saberia dar - o Cardeal Saraiva, que fala de um problema que não era apenas do seu tempo e anteriores, é ainda do nosso tempo... e futuros?!

Citando o livro 
Francisco de São Luiz Saraiva (Cardeal Saraiva)

na página 170 (e seguintes), na "Memória sobre as viagens dos Portuguezes à Índia por terra e ao interior de África", diz de uma forma tocante:

Limitar-nos-emos pois, por agora, a dar uma breve ideia das principais viagens de que temos achado memória nos nossos escritores, e isto bastará para satisfazer ao intento que levamos em coligir estas noticias, que é mostrar que não somos nós os Portugueses tão incuriosos, ou tão ineptos, como nos querem fazer os estrangeiros.


SÉCULO XVI


1515 — Tendo o grande Albuquerque posto à obediência de Portugal a rica cidade de Ormuz, e recebido nela com grande solenidade a embaixada do Schach Ismael Rei da Pérsia, despachou com o mesmo carácter da Embaixador a corte de Hispahan a Fernão Gomes de Lemos, senhor da Trofa, o qual tendo concluído a sua missão, se achava já de volta em Cochim no mês de Janeiro do 1517 e daí escreveu a El-Rei D Manuel, mandando-lhe um Livro, em que dava conta da sua embaixada, e do caminho que fizera, coma consta da própria carta por ele dirigida a El-Rei com a data de 4 de Janeiro de 1517, que se conserva no Arquivo da Torre do Tombo, no Corpo Chronol. part. 1. maço 21. num. 4. (Vej. Goes, Chron. de El-Rei D. Manuel part. 4. cap. 9 e 11 ). Do livro porém, que continha a relação da embaixada e caminho não sabemos que exista.


1520 — Neste ano, entrando na Abissínia D. Rodrigo de Lima Embaixador de El-Rei D. Manuel àquele império, entrou com ele, entre outros Portugueses, o P. Francisco Álvares, natural de Coimbra, que de Portugal havia saído como capelão da embaixada de Duarte Galvão. Este eclesiástico residiu na Abissínia cousa de 6 anos até 1526, e escreveu «Verdadeira informação das terras do Preste-João» obra rara, que se imprimiu em Lisboa no ano de 1540 em fol., e que foi traduzida em várias línguas, e inserida por Ramuzio na sua Colecção, em Veneza 1550 com a titulo «Viagem á Ethyopia por Francisco Alvares, &c.»
Pelo mesmo tempo viajava por diversos países da Ásia o Capitão Gregório de Quadra, de que acima fizemos menção.


1522 — A este ano se deve referir o princípio das viagens de António Tenreiro, segundo o que ele mesmo escreve na sua bem conhecida Relação, ou Itinerário. Saiu ele de Ormuz em companhia de Baltazar Pessoa, que de mandado do Governador da Índia D. Duarte de Menezes ia por Embaixador à Persia. Esteve Tenreiro na Pérsia, d'onde passou a Arménia, veio à Síria, ao Cairo, a Alexandria , e daí à Ilha de Chipre. De Chipre voltou ao continente, e logo a Ormuz por terra, e ficando aí cinco ou seis anos (como ele mesmo refere no cap. 58) tornou a sair para vir por terra a Portugal, com recados a El-Rei sobre a armada do Turco, sendo Governador da Índia Lopo Vaz de Sampaio, e capitão de Ormuz Cristovão de Mendonça(1). Saiu de Ormuz pelos fins de Setembro de 1528, e chegou a Portugal em Maio do ano seguinte. É mui curioso o seu Itinerário, que se imprimiu em 1560, e depois por várias vezes, sendo a última em 1829, junto com a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. (Vej. Castanheda liv. 7. cap. 71., Andrade, Chron. de D. João III. part. 2. cap. 49., e os Annaes da Marinha Portugueza publicados no ano de 1839. pag. 394.)
_____ (1) De memórias contemporâneas consta que Tenreiro, chegando da Índia, esteve a ponto de ser assassinado por um F. Mello, de Castelo de Vide, por ter trazido cartas a El-Rei contra seu pai. — Tenreiro teve uma pensão de 30$000 réis mensais.
A morte do Conde Almirante Vice-Rei da Índia veio anunciada a El-Rei D. João III. por um expresso enviado da Índia por terra de mandado de D. Henrique de Menezes , como refere Quintella, Annaes da Marinha Portugueza ao ano de 1526.

1537 — São mui conhecidas de nacionais e estrangeiros as viagens, ou (como ele mesmo lhe chama) as peregrinações de Fernão Mendes Pinto, começadas em 1537 e continuadas por 21 anos até 1558, com tanta e tão miúda e variada relação de casos e sucessos; com tão curiosas descrições de lugares e regiões; de povos, e costumes; e com tantas e tão importantes noticias úteis à navegação e ao comércio, que mereceria uma particular e extensa menção, se a própria historia d'estas viagens não tivesse sido muitas vezes impressa, e recentemente em 1829 na língua portuguesa, em que foi escrita; e se não se achasse há muito tempo traduzida em algumas línguas estrangeiras, e publicada nas Colecções de Viagens. A multiplicidade e singularidade das aventuras, que este escritor refere, a estranheza dos povos e nações que viu e dos teus ritos, costumes, crenças, opiniões e linguagens, os incómodos e riscos que correu, e de que escapou, são e salvo, fizeram com que alguns leitores e escritores desconfiassem da veracidade, das suas relações. Hoje porém está mais desvanecida esta desconfiança, e as indagações dos mais ousados viajantes modernos têm verificado muitos dos factos, que ao princípio pareciam mais estranhos e duvidosos.


1540 — Veio da Índia por terra Antonio de Sousa, mandado por D. Estevão da Gama. [Couto, Dec. 5. liv. 7. cap. 1.)


1548 — Neste ano passou à Índia Fr. Gaspar da Cruz, religioso dominicano, natural de Évora. O zêlo da religião o levou à China, e foi o primeiro, ou um dos primeiros missionários portugueses, que entraram naquele império. Temos dele uma Relação da China, e de suas particularidades, que se imprimiu em Évora no ano de 1570, e segunda vez em Lisboa em 1829 com as Peregrinações de Fernão Mendes Pinto, de que acabamos de fazer memoria.

No Códice 840 da Biblioteca Pública Portuense conserva-se o «Itinerário da Ilha de Ormuz até Tripoli de Berberia, e d'ahi até a Rochella de França», de Martim Afonso.
Este viajante era médico: partiu de Ormuz a 25 de Junho de 1505 e veio a Portugal através da Persia e Ásia Menor com cartas importantes. Sua derrota foi de muito circuito por causa da guerra que havia entre os Turcos o Persas, a qual o obrigou a deixar o curso regular das caravanas, sem que nunca fosse conhecido, nem dele se desconfiasse. Descreve largamente os lugares por onde passou, com bom conhecimento da Geografia. Fala de Riscóo, Jarde, Benvit, Adistan, Mahabad, Chaltabad, Caixam, Com, Siiva, Caslui, Soltania, Meaná, Turquina, Condi, Tabris, Sufian, Van, Vastan , Sory , Taduan , Orfá , Halep, &c.
  • ...? Na Historia da Índia no governo do Vice-Rei D. Luiz de Atayde, escrita por António Pinto Pereira, pelos anos de 1570, e impressa em 1616, no liv. 2. cap. 13. faz o escritor menção de um Isaque do Cairo, Judeu, que da Índia tinha vindo duas vezes por terra a Portugal. Nada mais sabemos destas viagens, nem temos achado noticia da sua verdadeira data, que sem duvida pertence ao século 16° (1).
_____ (1) Estando EI.Rei D. João III. em Almeirim em Janeiro de 1541 , veio da Índia por terra um Judeu, trazendo recado a El Rei, como o Vice-Rei D. Garcia de Noronha falecera em véspera de Pascoela no ano anterior de 1540, sucedendo-lhe D. Estevão da Gama que ia na segunda sucessão, por ter já vindo para o reino Martim Afonso de Sousa, que era o nomeado na primeira, &c (Relações de Pero de Alcaçova Carneiro — manuscritas).

  • ...? O mesmo diremos de outra viagem, de que nos dá noticia o P. Fernão Guerreiro na sua Relação Annal &c. liv. 1. cap. 1. pag. 3., dizendo, que um André Pereira, indo de Portugal à Índia par terra, e passando por aquela parte da Caldeia, que corre de Babilónia para o estreito de Baçorá, onde o Eufrates e o Tigres entram no Mar da Pérsia, aí tratara com os cristãos daquelas partes, e ainda depois voltara a elas para acompanhar um bispo que eles queriam mandar ao Papa, e a El-Rei de Portugal.
1593. — Neste ano passou a Índia o dominicano Fr. Manuel dos Santos, o qual voltando a Portugal por terra, escreveu a sua viagem com o titulo de Curioso Itinerario &c., manuscripto, de que faz menção a Biblioteca Historica Portugueza, pag. 33. da 2ª edição.


SÉCULO XVII


O século 17° não é menos notável que o precedente na historia das nossas viagens. Logo no ano do 1602 ocorre a importante, e, para aquele tempo, difícil viagem do Jesuíta Português Bento de Goes.
Era este religioso varão natural de Vila Franca na Ilha de S. Miguel; e como tivesse conhecimento das línguas orientais, e especialmente da Persiana, pretendeu, e conseguiu de seus superiores, ser mandado ao descobrimento do Gran-Catayo, país que então desafiava a curiosidade dos Europeus. 
Partiu com efeito da corte do Mogol, em cujas províncias tinha pregado o evangelho, e viajou mais de três anos pelos sertões da Ásia, indo sempre pelo norte do império do Mogol, desde o país dos Usbeks para o oriente até à China, e vindo a conhecer em resultado da sua trabalhosa, e dilatada viagem, que o chamado Gran-Catayo era o próprio império da China, e não um país diverso, como mui geralmente se acreditava. 
Na China faleceu Goes em 1607. Vem a sua viagem inserta na Relação do P. Trigaut, e fazem dela menção frequente os escritores Portugueses.

No mesmo ano de 1602 fazia a sua viagem à Persia o douto augustiniano Fr. António de Gouveia, que depois de ter acompanhado às serras do Malabar o Arcebispo D. Fr. Aleixo, foi mandado àquele império como Embaixador do Governador da Índia Ayres de Saldanha. 
Ali adquiria a estimação do Sha-Abbas, que o enviou em companhia de um Embaixador seu, que mandava a Roma, e a Corte de Espanha. Voltou a Persia, e daí à Europa, atravessando os temerosos e arriscados desertos da Arabia. Chegado que foi a Alepo, embarcou para Marselha, e sendo tomado por corsários, ou piratas argelinos, esteve cativo em poder daqueles bárbaros. 
Destas viagens e trabalhos fala ele mesmo na Relação da Jornada do Arcebispo D. Fr. Aleixo de Menezes ás serras do Malabar, impressa em Coimbra em 1606 em fol., aonde também se lêem curiosas e importantes notícias sobre os povos que habitam aquelas serras, e sobre os seus costumes, e ritos religiosos, &c.

Em 1606 e 1607 temos noticia da viagem de Nicolau d'Orta, natural de Santo Antonio do Tojal, que saiu de Goa com destino de vir a Portugal, por terra. Nos princípios de Agosto de 1600 estava na fortaleza de Comorom d'onde passou a Lara, Xiras, Iiomus, Bagadet, Ana, Taibe e Alepo, aonde entrou a 16 de Janeiro de 1607. 
Daí vindo por Alexandreta, chegou por mar a Marselha, e logo a Madrid, donde El-Rei D. Felipe o tornou a mandar à Índia. Escreveu o seu Itinerário, do qual existe na Biblioteca Pública de Lisboa um exemplar incompleto. (Vej. Barbosa Machado, Bibliolh. Lusit.)

Por esses mesmos tempos viajava por terra para a Europa Fr. Gaspar de S. Bernardino missionário na Índia, o qual naufragando na Ilha de S. Lourenço, passou a Mombaça, cabo de Rosalgáte, e Ormuz; donde resolvendo continuar sua viagem por terra, visitou a Persia, Caldeia, e Síria até Chipre. Daí foi ver os Lugares Santos, e voltando a Chipre, Candia, Zante, Cephalonia, e Corfu, se recolheu por último a Espanha e logo a Portugal. Escreveu o seu Itinerário, cuja primeira parte se imprimiu em Lisboa — 1611 em 4.°

Temos notícia que neste mesmo ano de 1611 veio da Índia a Portugal por terra D. Álvaro da Costa, de cuja pessoa e viagem não alcançámos individual informação(1).
_____ (1) O Códice 482 da Biblioteca Pública Portuense é copia da viagem de D. Álvaro da Costa, com este título «Tratado da viagem que fez da Índia oriental à Europa nos anos de 1610 e 1611 por via da Persia e da Turquia... com relação... da Terra Santa... e geral descripção da Índia oriental, e navegação dos Portuguezes», Vol I. 26.
Os anos de 1621 e 1626 são notáveis na história da Geografia, e das Viagens portuguesas, pelas duas que fez o P. António de Andrade Jesuíta, ao descobrimento do Tibet, estabelecendo ali missão cristã, e católica. 
Na segunda destas viagens (ano de 1626) em que foi acompanhado do P. Gonçalo de Souza, e cuja Relação se imprimiu em Lisboa em 1628 fala ele expressamente da cidade de Caparangua, aonde residia o Rei de Tibet, e aonde estes padres tinham chegado em menos de dois meses e meio, partindo de Agra (no Dehli) o passando por Sirinagar. Fala igualmente do país de Ursangue ou Ussang, do qual diz que dista 40 jornadas de Caparangua, e 20 da China. &c. 
(Devem ver-se as próprias Relações, e a Nouvelle Relacion de la Chine do P. Magalhães, traduzida em francês, e impressa em 1690, de que mais adiante falaremos.)

Pertence ao mesmo ano de 1621- a viagem, e residência na Abissínia do P. Jeronymo Lobo Jesuíta Português. Foi ele mandado às missões da Índia, para onde partiu, e chegou a Goa em 1622: e vindo no dito ano de 1624 a Moçambique, daí entrou no país dos Galas, penetrando até à Abissínia aonde viveu muitos anos não sem grandes trabalhos e perseguições. 
A série das suas posteriores aventuras, os naufrágios que fez, os grandes incómodos que sofreu, em fim a sua vida até ao ano de 1658 em que ficou em Portugal, são coisas dignas de curiosa reflexão. Escreveu o seu Itinerário, que tem merecido a atenção dos sábios, e eruditos, principalmente na parte
que diz respeito às cousas da Abissínia, e que se acha traduzido em inglês, em francês duas vezes, e em italiano.

Em 1635 foi mandado à missão do Tibet o P. João Cabral, outro Jesuíta Português, natural de Celorico da Beira, o qual fez caminho por Bengala, evitando a difícil passagem da serra, por onde o P. Andrade tinha entrado na Tartária. Escreveu também a Relação copiosa dos trabalhos que padeceu na missão do Tibet. Obra, que segundo Barbosa Machado foi mandada a Roma no referido ano de 1635.

É digno de mui particular comemoração nesta nossa breve memória o P. Gabriel de Magalhães, também Jesuíta Português, que depois de estar por alguns anos nas missões do Japão, passou à China, e a correu quase toda desde o ano de 1640 até 1618 em que se estabeleceu em Pequim, residindo aí por quase 29 anos até o seu falecimento, e deixando-nos uma Relação da China das mais exactas que se haviam escrito até ao seu tempo. Esta Relação fui traduzida em francês, com notas, e explicações, e impressa em 1690 em 4º.

Alguns anos antes destes, em que vamos, missionou na Abissínia o P. Manuel de Almeida Jesuíta Português. Das cartas, que ele anualmente escrevia ao seu Geral, impressas em Roma, em italiano, no ano de 1629, e de outras memórias de muitos Jesuítas, é que o P. Telles compilou a Historia Geral da Ethiopia alta ou Preste-João, impressa em Coimbra em 1660 em folh. aonde se vê o largo conhecimento que os Portugueses tinham daquele império por eles tão frequentemente praticado.

Em 1663, o P. Manuel Godinho, natural da Vila de Montalvão, e religioso da Companhia, (depois secularizado Prior de S. Nicolau de Lisboa, e por último de Loures) tendo sido mandado às missões da Índia; veio por terra a Portugal de mandado do Vice-Rei António de Mello de Castro, e segundo parece com alguma secreta e importante comissão. Escreveu «Relação do novo caminho que fez por terra e mar vindo da Índia para Portugal no ano de 1663», impressa em Lisboa em 1665 4.º 
Obra curiosa, que merece ser lida dos eruditos.
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O Cardeal Saraiva termina aqui a sua memória instrutiva. Não irá assistir, para sorte sua, ao embaraço de ter que redescobrir a África interior, por Capelo e Ivens, mas todo o seu discurso é o de quem antevia que essa situação, de rejeição estrangeira, se proporcionaria numa Europa colonial, despudoradamente repetindo como novidade o que os portugueses tinham feito há vários séculos. Esse é um assunto que ele retomará noutros textos.
A nova história maçónica, iria escrever-se com pseudo-heróis de outras paragens, sepultando no esquecimento o protagonismo português. Pior não foi o esquecimento alheio, pior foi convencer os próprios nacionais a embarcar nessa missão de celebrar intrujices, premiando sabujices.

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