segunda-feira, 27 de maio de 2019

Outros Quinhentos (3) 500 de Terra e 50 de Lua


Paisagem no Estreito de Magalhães (Google Maps)

A hipótese que faz mais sentido, daquilo que conheço, relativamente à circumnavegação do globo, é a seguinte...

Entre 1482-88, o rei D. João II enviou diversas armadas para contornar o continente americano, que como é óbvio, era conhecido de quem fizesse navegações sistemáticas no Atlântico. 
O Infante D. Henrique sabia do assunto, mas ignorou-o, porque era tudo menos "navegador". A sua política era militar, tal como a da Ordem de Cristo, ou seja, a da herança templária, visando contornar a África e invadir a península arábica, chegando a Jerusalém. Essa política veio a ser concretizada por Afonso de Albuquerque que chegou a conquistar o Mar Vermelho até ao Suez. 
Ao contrário, o Infante D. Pedro, esse sim um viajante e explorador, seria a de navegar a América, ao ponto de tentar encontrar uma passagem no continente americano para chegar à Ásia.
Essas explorações continuaram no reinado de D. Afonso V, patrocinando a empresa privada de Fernão Gomes, mas deverá ter sido apenas no reinado do seu filho, D. João II, que foi descoberta a passagem. 

Como marco importante na tentativa de cruzar o continente americano, o ponto mais importante pelo Infante D. Henrique terá sido a descoberta do Rio Sagres - agora chamado Rio Chagres, no Panamá.
Aliás, à mesma latitude do rio Chagres 9º30' N encontramos o Cabo Sagres... em Conacri, Guiné.
Foi aí que terminou declarada a exploração do Infante D. Henrique. Foi também o Rio Chagres que acabou por servir para fazer o Canal do Panamá, porque com efeito esse era o ponto mais prático de passagem. Assim, a descoberta do Oceano Pacífico terá ocorrido uns 50 anos antes de Balboa.

Para efeitos de encontrar uma passagem a norte ou a sul, D. João II enviou sucessivamente armadas para latitudes árticas e antárticas, e nesse processo terá descoberto praticamente todo o globo. Não deu conhecimento disso, porque lhe interessava uma passagem mais rápida do que aquela que obteria circum-navegando a África. Ora, isso veio a revelar-se impraticável.

Nas expedições em que Diogo Cão andou supostamente "no rio Congo", o objectivo seria o de encontrar o Estreito de Magalhães. É provável que na primeira viagem de 1482 tenha apenas conseguido contornar o continente americano pelo Cabo Horn, e que só na segunda viagem de 1484-86 tenha encontrado a passagem pelo estreito. O Estreito de Magalhães terá sido descoberto pelo piloto João Afonso do Estreito, ou pelo menos assim o sugere o seu apelido... 
No entanto, a expedição seria comandada por Diogo Cão, e teve Martin Behaim como "companhia", que nessa altura terá feito o mapa da região. 
Depois, com base nos mapas de Behaim, João Afonso do Estreito terá proposto em 1487 navegar a Ocidente, em conjunto com o flamengo Fernando Dulmo, mas a expedição não terá tido retorno. Seria só em 1488 que Bartolomeu Dias, passando pelo cabo Horn, dito das "tormentas", teria feito a circumnavegação, regressando pelo cabo da Boa Esperança vindo por paragens australianas.

Essa teria sido a boa esperança que o rei viu - um caminho ocidental, contornando a América do Sul, ao invés de contornar a África, evitando entrar em conflito com os muçulmanos no Oceano Índico.
Entre 1488 e 1492, creio que D. João II se convenceu que haveria a passagem noroeste, que pouparia imenso tempo, evitando ir ao hemisfério sul. Para esse efeito contava com a experiência dos Corte Real na exploração da América do Norte, e também dos Gama. 
No entanto, a dificuldade dos gelos árticos em latitudes além do círculo polar não permitiriam uma passagem exequível para a carga. Os riscos seriam demasiados, mesmo que tal passagem fosse encontrada - e se tal foi conseguido, foi provavelmente depois, já no reinado de D. Manuel ou mesmo de D. João III.

A razão para isto ser mais certo do que mera especulação é a descrição que Pigafetta faz, quando Magalhães redescobre esse estreito:
E se non era el capitano generale non trovavamo questo stretto, perchè tutti pensavamo e dicevamo come era serrato tutto intorno: ma il capitano generale, che sapeva de dover fare la sua navigazione per uno stretto molto ascoso, come vide ne la tesoreria del re di Portugal in una carta fatta per quello eccellentissimo uomo Martin di Boemia, mandò due navi, Santo Antonio e la Concezione, che così le chiamavano, a vedere che era nel capo della baia. Relazione del primo viaggio intorno al mondo por Antonio Pigafetta.
[E se não fosse o capitão não teríamos encontrado este estreito, porque todos pensávamos e dizíamos o quanto era apertado: mas o capitão, sabia que tinha que navegar por uma passagem muito estreita, como vira no tesouraria do rei de Portugal num mapa feito pelo excelente homem Martim da Boémia, e enviou dois navios, Santo Antonio e Conceição, assim se chamavam, para ver o que estava ao cabo da baía.]
Pigafetta junta um mapa, que podemos comparar com o mapa que João de Lisboa tem:



A diferença entre o mapa de Pigafetta e o mapa de João de Lisboa, é a diferença entre um amador e um profissional. A diferença de tempo entre os dois mapas é pequena, sendo mais provável que o mapa de João de Lisboa seja mesmo anterior à viagem de Fernão de Magalhães. 
A referência ao nome "magalhães", como foi sugerido pelo David Jorge, pode referir-se à presença de pinguins que hoje são conhecidos por esse nome. Numa inclusão posterior, a tinta vermelha pode ler-se "estreito de fernão de magalhãis", mas a tinta preta e em destaque vemos apenas "estreito dos magalhãis", no plural.
De resto, para além das designações concordantes entre os dois mapas, o mapa de João de Lisboa tem muito mais informação e nomes em português que indiciam a sua nomeação anterior.
Em particular, note-se na ilha fictícia chamada "dos castelhanos", designação similar à existente ao largo de Madagáscar (ver postal anterior).

Coincidentemente, também em 1519 é dada autorização a Cortéz para desembarcar no México, e assim arrasar o império Azteca.
Passam 25 anos do Tratado de Tordesilhas, e a época de transição das descobertas de Portugal para a posse definitiva de Espanha, seria trabalhada entre D. Manuel e Carlos V.

Não foi à toa que uma grande parte da tripulação que Magalhães levou consigo era portuguesa.
Os portugueses simplesmente não queriam que acontecesse de novo o episódio de Colombo. Não queriam que a descoberta da passagem sul ficasse associada aos espanhóis, quando tanto sacrifício teria sido feito para conseguir aquela proeza. É nesse contexto que múltiplos portugueses se associam à expedição de Magalhães, incluindo João de Lisboa, que poderá ser João de Carvalho. 

A viagem teria assim uma particularidade de rebelião quase permanente, já que os castelhanos não entendiam e aceitavam mal o comando português. Uma parte da expedição regressa a Espanha sem sequer passar o Estreito. A restante prossegue, e após a morte de Magalhães será mesmo João de Carvalho a tentar tomar o controlo da expedição, mas os espanhóis já não o autorizam, e ficará Elcano a terminar a volta, já na parte conhecida da Ásia, onde a presença portuguesa estava estabelecida.

4 comentários:

  1. Mais antigo mapa de Portugal
    Cabeço de Vide, descoberta dos fragmentos do mapa que compõem uma carta portulano do séc. XV

    https://arquivos.rtp.pt/conteudos/mais-antigo-mapa-de-portugal/?fbclid=IwAR0A7SVm0FYFh0Zfi4kX5RNo3mfbMAbZy81072Gfk0DJtwZd0LKQ7b2odns

    Cumprimentos
    José Manuel

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    1. É realmente notável que tenham usado o portulano como capa de um livro de registos... e assim dá para perceber o cuidado que houve a preservar o legado histórico. E até pode ter sido cuidado, porque doutra maneira teria sido destruído, como aconteceu com todos os mapas que nos faltam.

      Afinal, é de crer que todos os navios, ou mesmo todos os pilotos, tivessem as suas cartas de navegação. Não eram propriamente coisas que desconsiderassem, porque isso era crucial para a sua actividade. Deveriam haver muito mais registos, em propriedade privada, guardados de pais para filhos. Talvez houvesse alguns que resistissem, perdidos em sótãos de registos, arquivos, sacristias, etc... mas com um tratamento como este, em 1747, e depois com a pilhagem feita aos mosteiros, em 1836, é natural que pouca coisa resistisse.
      Neste caso, o mapa que aparece está cortado e só se vê o Mediterrâneo, nem sequer se consegue perceber se mostraria as ilhas ocidentais. Essa parte pode ter servido outra encadernação, ou não. É um bocado triste, mas pelo menos este não foi queimado. Bom, não sei - isto era uma reportagem de 1990, quando ainda se usava bigode, entretanto não se sabe no que isto deu - se encontraram mais alguma coisa ou não.
      Obrigado, José Manuel.

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  2. "Centenario do descobrimento da America; Memorias da Commissão Portugueza"

    "a descoberta de um continente novo succedia no momento o
    mais opportuno para realisar-se a verdadeira transição para a edade mo-
    derna. A descoberta da America é a coroação de todos os esforços accu-
    mulados para a deslocação da GiviUsação occidental das orlas do Medi-
    terrâneo para a vastidão do Atlântico. Coube a Christovam Colombo, pela
    sua perseverança através de todos os preconceitos religiosos e scientifi-
    cos e de todo o empirismo boçal dos governos, o rematar esta epopèa de
    esforços, em que o génio italiano, fecundado pelas descobertas marítimas
    dos portuguezes, e coadjuvado pelo espirito de aventura e audácia hes-
    panhola, se tornou perante a historia uma das mais bellas manifestações"

    (...) E emquanto Colombo se achava no mar, em 1492, na
    rota do desconhecido, em Neurcmberg, um geographo que andara ao ser-
    viço de Portugal durante muitos annos, e era casado nos Açores, Martim
    de Bcliaim, construía um globo de mais de meio metro de diâmetro, em
    pergaminho, e sobre elle distribuia as partes da Terra conhecidas, aju-
    dandú-se das noticias dos navegadores portuguezes, e completando as fa-
    lhas com as noticias de viajantes como Marco Polo e Mandevile, e escri-
    ptores da antiguidade. Onde Colombo imaginava ir encontrar o Gathay
    e Cipango, Martim de Behaim fazia pintar Sam Borondon e a Antilia, que
    equiparara ás Sete Cidades. No globo de Behaim não estão indicadas as
    costas do Brazil, nem o Estreito que se denominou de Magalhães, nem
    ilha ou costa alguma da America. Evidentemente pela data da construc-
    ção do globo e pelas suas representações pode-se concluir que a obra
    de Behaim não influiu na empreza de Colombo. Para Hassel as duas ilhas
    da Antilia ou Sete Cidades e S. Brendan representam as duas partes do
    continente americano, e estavam separadas por um estreito que no sé-
    culo XVI se procurava em Veragua e Panamá. No globo de Marlim de
    Behaim as duas ilhas têm as seguintes inscripções, que bem exprimem
    as illus(5es menlaes provocadas por desencontradas tradições: »///;« An-
    tilia chamada Sctle Cidades: No anno de 734 depois do nascimento de
    nosso senhor Jesus Christo, em que toda a Hespanha se sujeitou aos pa-
    gãos que vieram de Africa, a dita ilha chamada Sette Cidades foi habi-
    tada por um Arcebispo do Porto em Portugal, e mais seis Bispos, com
    um numero de christãos, homens e mulheres que haviam passado fugindo
    da Hespanha com os seus gados e bens"

    https://archive.org/stream/centenariododesc00acad/centenariododesc00acad_djvu.txt
    https://archive.org/details/centenariododesc00acad/page/n114

    Boa noite,

    gostaria de ler a sua análise deste assunto, este Martin Behaim casado e vivido nos Açores antes da “descoberta” da América intriga-me… "a descoberta de um continente novo succedia no momento o mais opportuno para realisar-se a verdadeira transição para a edade moderna” e já diziam isto antes de mim, o momento oportuno, pois esteve encoberto, o continente,

    sobre fragmentos de portulanos estive com um pdf dum estudo que diz serem muitos os bocados soltos de pergaminhos medievais de todo o tipo de assuntos em vários países europeus, que até os importavam de França para encadernarem livros!? mas já lhe perdi o rasto, diz que em Portugal ao contrário doutros países já se encontram digitalizados e catalogados essas peças soltas, nesse estudo português menciona o fragmento de Cabeço de Vide, estou com pouca paciência para escrever mas contínuo fiel leitor do caro Alvor Da Maia.

    Cumprimentos
    José Manuel

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    1. Obrigado pelo comentário, José Manuel.
      A história de Martin Behaim, também dito Martinho da Boémia, creio que é semelhante à de outros estrangeiros que participaram na empresa dos descobrimentos.
      Creio que D. João II estava interessado em ter ajuda dos príncipes europeus nas descobertas, porque rapidamente percebeu que um eventual projecto de domínio dos mares e terras não seria alcançável apenas por Portugal - que no máximo conseguiria o domínio dos mares, mas nunca das terras. Conseguiu o interesse de Espanha usando Cristóvão Colombo, e provavelmente tentou o interesse do Império Sacro-Germânico usando o próprio Behaim.
      Acho que por esse tempo, e até ao Tratado de Tordesilhas, simplesmente ninguém estava interessado na exploração marítima, da mesma forma que ninguém estava já interessado em retomar a ideia das Cruzadas e partir para a reconquista de Jerusalém. Isso era um projecto que tinha falhado, e de certa forma a sociedade do Séc. XV estava resignada a viver na Europa. A abertura para os descobrimentos só começa muito depois, já no reinado de D. Manuel, com o interesse de Carlos V.

      Subitamente em 1519, Carlos V vai autorizar duas expedições que estavam em banho maria - a circum-navegação de Magalhães, e ida de Cortés ao México. Por estranho que pareça, apesar de Balboa ter feito uma pequena incursão para molhar os pés no Pacífico... o desembarque para contacto com os Aztecas, e depois com os Incas, esteve a marinar durante mais de 25 anos.
      Parece-me muito difícil que Aztecas, Maias e Incas, durante esses 25 anos não lhes tivesse chegado informação da presença da frota espanhola nas ilhas das Caraíbas. Se não deram a isso mais destaque do que teriam dado antes, é porque já teriam conhecimento de que outras armadas (portuguesas) tinham andado por ali a rondar, mas sem causar perigo aos seus domínios.
      Abraço.

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