quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Baixos e altos de Lixboa (2) - a ilha de Martim Vaz

Estou a pegar de novo nos mapas de João de Lisboa com a devida calma, e como não estou com muito tempo, escolhi um mapa de análise mais simples. Mesmo assim tem um problema claro com a indicação da Ilha de Martim Vaz.

Trata-se do mapa de parte de África, que já era apresentada por Pedro Reinel em 1485, e trinta anos depois, não haveria propriamente nenhuma novidade especial.
Porém, para além do contorno de África estar consideravelmente bom - sobrepus com o mapa da Google deslocado, para melhor comparação - haveria 3 ilhas que não constavam e que aqui estão presentes. 
Essas ilhas são:
  • Ilha da Ascensão (acemçam) - que está identificada com uma bolinha azul, correspondendo a uma localização praticamente exacta dessa ilha (actualmente sob ocupação britânica).
  • Ilha de Santa Helena (I.desamtailena) - que está identificada com uma bolinha verde, correspondendo a uma localização também praticamente exacta da ilha (igualmente britânica, ficou famosa por ser a última prisão de Napoleão).
  • Ilha de Martim Vaz (I.demarti~vaz) - aqui surge o problema... não existe qualquer ilha naquelas redondezas. Existe uma ilha Martim Vaz identificada, mas está muito mais próxima da costa do Brasil do que de África. Aliás, a ilha de Martim Vaz é brasileira, fazendo um arquipélago com Trindade.
A ilha de Martim Vaz no mapa de João de Lisboa (a amarelo) 
e a ilha de Martim Vaz brasileira (a vermelho).

Portanto, o que se está aqui a passar?
Claro que na técnica do "despachar, para não atrapalhar" é natural que isto seja visto como mais um erro de cartografia, e o trabalho dos nossos grandes historiadores está feito. 

Porém, convém notar que neste mapa de João de Lisboa esse seria o único erro!...
... e logo um erro tão grosseiro, que se torna incompreensível/inadmissível!

Uma hipótese natural, no sentido em que já a usei mais vezes... é que a costa africana tenha servido a certa altura para descrever a costa sul americana!
Isto seria uma hipótese perfeitamente plausível de trabalho, se os pilotos soubessem que quando estavam noutras paragens, deveriam virar o mapa e olhar apenas para certas marcações.
Admitindo que Martim Vaz representava a ilha brasileira, então neste exemplo, se estivessem perto da costa do Brasil, deveriam virar o mapa, e olhar apenas para as marcações a azul.

Para explicar isto melhor vou pegar no mapa de Piri Reis, que apesar de ser muito semelhante ao Atlas Miller de Pedro Reinel, tem um contorno incompreensível na América do Sul. Ao invés de continuar o continente para sul, vira para Oriente, não correspondendo a nada que se encontre na América do Sul. Neste ponto é diferente do Atlas Miller que ao menos tem uma abertura... que corresponderia depois ao Estreito de Magalhães. É mais ou menos claro que o mapa de Piri Reis foi copiado de um mapa português, do tipo Atlas Miller, existente anteriormente.

Ora, acontece que se pegarmos nos pontos assinalados pela "rosa-dos-ventos" e rodarmos aí, podemos colar ao contorno africano, ficando com um bom mapa de África, até aos limites definidos:

Portanto, um contorno que era incompreensível no local onde coloquei pontos de interrogação (??) passa a fazer sentido no local onde coloquei as exclamações (!!).
No mapa de Piri Reis não dá muito perfeito, até porque a embocadura do Rio da Prata tem dois rios (ao contrário do que está no Atlas Miller), mas isso iria corresponder no contorno africano ao Rio do Congo.

Isto mais uma vez vai no sentido de que Diogo Cão ao explorar supostamente o Rio do Congo, estaria muito provavelmente nas paragens do Rio da Prata, no sentido de encontrar a passagem pelo Estreito de Magalhães - ver esse paralelismo no mapa aqui. E da mesma forma, as menções de Magalhães a um mapa de Behaim, que acompanhou Diogo Cão, deixam o Estreito mais "largo".

Bom, então qual poderia ser a estratégia?
Voltamos a pegar num mapa de 1544 de Batista Agnese, de que falámos a propósito dos mares vermelhos, enquanto ponto de proibição de navegação, mas também enquanto semelhança na representação do Mar Vermelho com o Golfo da Califórnia:

O paralelismo poderia ocorrer da seguinte forma. Para além da semelhança de latitudes e posição do Golfo do México e da costa ocidental africana, deve-se ter continuado a reparar na semelhança entre a costa da América do Sul e a costa africana ao sul. Até aqui nada de novo, e passar o Cabo da Boa Esperança, seria assim o mesmo do que passar o Estreito de Magalhães ou o Cabo Horn.
Além disso, em termos de grandes ilhas, já referi uma possível relação de paralelismo entre Madagáscar e a Austrália, também escondida entre os nomes S. Lourenço, Java grande ou Taprobana.

Porém, a semelhança pode ainda ter sido levada mais longe, continuando pelos continentes. Assim, ao subir pela costa americana o primeiro golfo que aparece é o da Califórnia, pintado como mar vermelho. Da mesma forma, ao subir pela costa africana o primeiro golfo que aparecia era o Mar Vermelho. Depois ainda por esse lado chegava-se à Índia, enquanto pelo lado americano chegávamos aos índios... Finalmente, continuando por qualquer um dos lados, apareceria a China.

No entanto, estas pistas para um paralelismo alargado, são ainda demasiado escassas para se considerarem mais do que especulação.

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NOTA: Convém ainda notar que ao lado das Ilhas de Martim Vaz e da Trindade, apareceu também uma ilha com o nome "Ascenção", ou seja com o mesmo nome do que a ilha no meio do Atlântico. Isso figura ainda num mapa de 1794

A Revista Trimestral do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, Tomo XL (parte segunda), 1877, nas suas páginas 272-276 trata desse assunto, esclarecendo o caso como uma "confusão" com nomes diferentes para a mesma ilha - que seria a Trindade.

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