sábado, 15 de dezembro de 2012

Arquitecturas (4)

Tinha arrumado o tópico "Arquitecturas", mas na sequência das pertinentes questões levantadas no comentário do Sid, acrescento mais algumas considerações.

Gillray: Britannia entre a Rocha Democrática e o Remoínho do Poder Absoluto.

O raciocínio humano entricheira-se entre Scila e Caribdis... de um lado forma conceitos que emergem da previsibilidade, por outro lado tende a submergir o que é previsível.
Num universo caótico não seria possível formar conceitos, edificar noções estáveis, e num universo demasiado previsível os conceitos mais complexos seriam desnecessários, a ponto de nem serem cogitados. Este ajustamento é mais do que uma simples "coincidência"...
Para dar um exemplo simples, basta pensar na condução... se a resposta do veículo fosse imprevisível face aos movimentos do volante, ninguém saberia conduzir (nem haveria nada para "saber"...), e por outro lado, após sabermos conduzir, o processo torna-se tão automático que fica submerso, relegado em gestos instintivos - o assunto já não merece reflexão.

Em sociedades de fácil sobrevivência, ao género de "paraísos tropicais", onde a fruta está à distância do braço, o engenho humano fica como acessório de vivência. Mas essa vivência pode transformar-se em problema de sobrevivência pelo engenho complexificador de relações sociais. Quando o mundo ficou sob domínio humano, os humanos passaram a temer o seu maior predador - os "outros".
Os "nossos" maiores inimigos são sempre os "outros"... nos "nossos" confiamos, dos "outros" desconfiamos. É claro que o engenho social conseguiu complexificar ainda mais, e a noção de "traição" deixa o indivíduo essencialmente isolado, face à imprevisibilidade de "todos os outros".
Pode caricaturar-se a situação: - na "lotaria dos animais" o Homem ganhou o paraíso, sem ler o aviso - "a incapacidade de partilha transforma paraísos em infernos".

Creio que já não há ministérios "da guerra", só "da defesa"... legitimando-se agora as guerras como "formas preventivas de defesa". E sempre assim foi... mesmo os mais empenhados conquistadores, em última análise procuravam eliminar ou neutralizar "inimigos", fosse por motivos externos ou internos. O medo dos "outros" é também "o medo dos outros", e auto-alimenta-se.

A "ascendência primata" do Homem parece ter relegado o Homem a um papel menos especial na "criação", libertando-se da visão antropocêntrica religiosa. Porém, não é apenas isso... ao contrário do que parece, legitima uma visão bem mais elitista. Afinal, se a diferença entre um homem e um outro primata for apenas resultado de uma evolução animal, também se pode pretender que a Eugenia possa levar a uma variação de raça, e até de espécie, ao ponto de se gerarem "super-homens". A visão do homem-macaco serve muito mais para justificar o tratamento animal que é dado a certos homens, do que para dar um tratamento humano aos animais... 
Há quem tenha cultivado a pureza na descendência, e não foram apenas os aristocratas de ascendência bárbara-goda, nem os nazis pela ideia de "raça ariana". Aproveito para agradecer aqui a oferta de um livro sobre "jewish eugenics", que me chegou há uns tempos pelo correio, sem que eu tenha percebido como obtiveram o meu endereço, ou qual foi o interesse em que o recebesse.

A falta de verdade, a necessidade de ludibriar, de esconder segredos, tudo isso resulta de uma falta de confiança, de fé nos "outros". Todas as quebras legitimarão ainda maiores desconfianças, e o cumprimento exemplar nunca afastará essa noção, escondida nos mais íntimos medos. Um sintoma típico da necessidade de confiança, sentida por algumas pessoas, acaba por se manifestar em animais de estimação, companheiros de onde não esperam especiais surpresas.
A confiança, a fé, sendo afastada dos outros, seus semelhantes, foi também relegada para um conceito externo, divino. As provações, os infortúnios, seriam compensados numa balança de justiça, repositora da verdade, para além da morte. Com alguma tentativa científica de desmistificação religiosa, e com uma expansão do pragmatismo moderno, a confiança humana passou depois a ter à "cabeça" - o capital. As instituições, os estados, vão perdendo a confiança depositada pelos cidadãos, e progressivamente aceita-se a "pena capital", como último depósito de garantias humanas.

Ao indivíduo que incorporou respostas a alguns porquês na sua infância, a ciência actual surge como estéril a esse tipo de perguntas. Formada pelo pragmatismo experimental, a ciência é essencialmente descritiva, e a sua máxima justificativa é a constatação ou "o acaso". À queda da pedra, acrescenta uma relação de aceleração, uma noção de gravidade, mas está longe de justificar, ou sequer de perguntar, por que razão tal força existe. Existe "porque sim", responde-se, como responde qualquer criança incomodada com uma pergunta. E nem é preciso ir à Física, cheia de "buracos negros", mesmo a Matemática pode estudar os números primos, estabelecer teoremas, mas não explica a razão da imprevisibilidade dessa sequência gerada afinal pela simples aritmética da multiplicação. Aliás, ainda é um problema em aberto saber se há uma infinidade de "primos gémeos"... o problema pode ser colocado a uma criança, mas a sua prova resiste há séculos, ou talvez há milénios, já que Euclides apresentou a prova da infinidade dos primos (simples) há mais de 2200 anos, e esses assuntos tinham a atenção dos gregos.

Acontece que, também por experiência, as coisas têm habitualmente algum nexo de causa, que nos permite uma compreensão do mundo que nos rodeia. É claro que este tipo de arquitectura faz suspeitar de um "desenho inteligente", a compasso da noção de um arquitecto divino. Ora, isso não acrescenta informação, apenas transfere o problema, porque essa mesma noção levanta outros problemas lógicos. Há uma outra resposta, que é parecida com o "porque sim", mas tem implícita uma informação muito maior - "é assim, porque não poderia ser doutra forma". E para se perceber um pouco dessa informação subjacente, volto à imagem de Scila e Caribdis... se não houvesse nenhum nexo, nada seria inteligível, e se o nexo fosse facilmente prescrutável, não seria necessária nenhuma inteligência complexa, porque a complexidade nem sequer existiria. Isto é mais ou menos óbvio, muita gente intui este "ter que ser assim", e ainda que seja entendido não é assumido, nem é reconfortante.
Há uma pretensão subjacente de compreensão absoluta, esquecendo a questão do aprofundamento no remoinho de Caribdis - caso tudo fosse explicado, entendido e corrigido, o que nos motivaria para o dia seguinte?

Também por constatação - algo muito científico - verificamos que as coisas ocorreram de uma maneira e não de outra. Isso levou à noção de determinismo, associada indelevelmente à noção de "destino". Talvez por receio de conotação religiosa, e para evitar a desresponsabilização humana, essa noção caiu em desuso no início do Séc. XX. A modelação humana iria ganhar supremacia face ao desenrolar do universo... ridículo, mas tido como "científico". As coisas eram colocadas desta forma: "a moeda tanto pode cair em cara ou coroa", uma constatação de modelação da possibilidade que escondia a impossibilidade de se saber se iria ser uma coisa ou outra. Não é errado pensar em probabilidades, mas é de um absurdo e arrogância considerar que a nossa incompreensão é que modela o universo. E, no entanto, hoje quase ninguém se atreve a dizer o contrário. Porque dizer o contrário é também assumir a impossibilidade do livre-arbítrio, e há que responsabilizar escolhas...
A noção de decisão surge da modelação interna que fazemos do que nos rodeia. O nosso modelo é obviamente impreciso, e por isso não conseguimos antecipar o resultado. Aliás se isso fosse possível, significaria que nos identificaríamos com o universo, e não haveria surpresas, nem tão pouco razão de ser. Ora, como a nossa modelação é imprecisa, pensamos em cenários, em diferentes possibilidades, e daí surge o conceito de que temos escolhas, e de que uma acção diferente levaria a outro resultado. Temos as mãos atadas ao volante, e seguimos o destino nos carris, sem distinguir se é o volante que vira por acção das nossas mãos, ou se são as nossas mãos que viram por acção do volante que segue os carris... e pensamos que poderíamos ter virado atrás noutra direcção, ou que teremos poder de decisão na próxima curva. Aí não seremos enganados, já vemos os carris, e viramos noutra direcção... seguindo os carris, porque os que víamos eram afinal parte do cenário onde contemplamos as diversas possibilidades.

O aumento da nossa compreensão não reduz necessariamente a nossa incompreensão, porque novos problemas se colocam. A melhor compreensão permite apenas que estejamos "mais sintonizados" com o que nos rodeia. A fabricação de logros, enganos, armadilhas, não é nenhuma evolução especial, e pode ser encontrada como forma de sobrevivência ou defesa em muitos animais, não é propriamente uma invenção da inteligência humana... e se há novidade é em ser usado contra a própria espécie. Aliás, se há espécie empenhada em eliminar os seus próprios elementos, é a humana...
O jogo entre a percepção interna e a realidade externa foi estabelecido há muito na "natureza", e tem um sucesso limitado. Em última análise, serve para caçar alguns, durante algum tempo, até que se torne quase irrelevante pela sua previsibilidade, dada a melhoria de percepção dos sobreviventes, ou pela competição interna que anula os predadores.
No jogo entre a fabricação de realidades e a percepção desse fabrico, uns procuram distorcer a percepção, e os outros apuram a compreensão e identificação das distorções. Uns afastam-se da realidade procurando criar um mundo à sua medida, os outros vão, por força das circunstâncias, apurar a sua percepção para a distinção entre realidade e fabricações.

No limite, uns pretendem uma manipulação artística do universo, transformando-o num teatro dos seus modelos, e para isso vão parasitando tudo, inclusivé as descobertas alheias, dos que abnegadamente vão aumentando a percepção científica. A essoutros, resta a convicção profunda, ou fé, de que o universo não se poderá reduzir a uma manipulação teatral. Uns acreditam que o fabrico de uns tantos artífices terá engenho suficiente para submeter tudo e todos, outros acharão que essa pretensão megalómana é "ligeiramente" excessiva... dado o universo em questão. 

Porém, convirá perceber que se devemos diminuir o drama das hostilidades, algumas dificuldades, adversidades, não podem deixar de existir, sob pena de estagnação... afinal, "viver feliz para sempre" é apenas uma frase aplicável a vegetais, desprovidos de sistema nervoso.

The Cure - "Where the birds always sing" (*) 

5 comentários:

  1. (*) The Cure: Where the birds always sing (Bloodflowers, 2000)

    The world is neither fair nor unfair
    The idea is just a way for us to understand
    But the world is neither fair nor unfair
    So one survives
    The others die
    And you always want a reason why

    But the world is neither just nor unjust
    It's just us trying to feel that there's some sense in it
    No, the world is neither just nor unjust
    And though going young
    So much undone
    Is a tragedy for everyone

    It doesn't speak a plan or any secret thing
    No unseen sign or untold truth in anything...
    But living on in others, in memories and dreams
    Is not enough
    You want everything
    Another world where the sun always shines
    And the birds always sing
    Always sing...

    The world is neither fair nor unfair
    The idea is just a way for us to understand
    No the world is neither fair nor unfair
    So some survive
    And others die
    And you always want a reason why

    But the world is neither just nor unjust
    It's just us trying to feel that there's some sense in it
    No, the world is neither just nor unjust
    And though going young
    So much undone
    Is a tragedy for everyone

    It doesn't mean there has to be a way of things
    No special sense that hidden hands are pulling strings
    But living on in others, in memories and dreams
    Is not enough
    And it never is
    You always want so much more than this...

    An endless sense of soul and an eternity of love
    A sweet mother down below and a just father above
    For living on in others, in memories and dreams
    Is not enough
    You want everything
    Another world
    Where the birds always sing
    Another world
    Where the sun always shines
    Another world
    Where nothing ever dies...

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    1. A ideia de Deus é concebida à luz desse paradigma; o de querermos ter um desígnio superior. O não aceitarmos a verdade, o momento, a simplicidade das coisas (quando é precisamente no mais simples que se encontra a verdadeira beleza), é algo muito intríseco na nossa mente. Afinal porquê aceitar submeter-me uma verdade ou condição quando não me sinto bem com ela? Quero a minha vontade, quero a minha liberdade, mas depois quero manter tudo o que consegui alcançar, e depois quero justifica-la a mim mesmo bem como justificar ao mundo a razão do meu ser,e logo ali mais à frente surge a ideia de Deus, e depois é torna-se simples: é a vontade de Deus.(final)

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  2. Esta bem colocado, mas à um pequeno pormenor a considerar: "se há espécie empenhada em eliminar os seus próprios elementos, é a humana..."
    Pegando nesta verdade sou logo atirado para o oposto daquilo que é lógico, pois hoje depois de centenas de Guerras, doenças e imprevistos, já somos mais de 7 biliões, e continuamos a proliferar.
    «A comunicação» Somos tantos em rede que até já vamos vislumbrando tensões que vão para além das da raça, hoje já há quem desconfie do nosso planeta. Não tem 10 anos, desconfiava-se do ozono, agora é do calendário dos Maias, daqui a uns tempos vão desconfiar do sol ou até, sabe-se lá, vão desconfiar da Galáxia e depois vem o Star Trek e etc. Se assim for, creio que é sinal que não nos aniquilámos nem fomos aniquilados. Mal ou bem, cá ou lá, vamos andando.
    Segunda hipótese, é a bicharada, por distracção, virar o dente uns aos outros e fazer controle demográfico à dentada - matando-se uns aos outros.
    Sou crente de que toda a acção tem uma consequência e por sua vez, toda a consequência é uma acção. Somos energia em constante vibrar, uma parte de um todo que pulsa e, tal como todo que é, ou como parte que seja, o seu pulsar anda entre um estado de equilíbrio para um de desequilíbrio para depois a partir deste, retomar o de equilíbrio - num o ciclo. A este fenómeno o Homem chamou energia. Mas como isto não tem piada nenhuma...

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    1. De acordo. O mais engraçado é que os 7 biliões resultaram de grande controlo populacional, especialmente na Idade Média, senão seríamos muito mais, há muito mais tempo... Houve processos que estiveram em acção para retardar a explosão demográfica.
      É muito provável que tenha havido uma catástrofe diluviana, senão várias... e também é muito provável que tenham sido provocadas "inteligentemente".
      Quem herda o controlo irá manter esse controlo com o pretexto de que "sem ordem resulta o caos".
      Quando deixa de ser possível assegurar a ordem, mergulha-se tudo de novo em época de trevas, de retrocesso, onde o controlo é facilitado pela regressão tecnológica da população.
      Aconteceu assim com a entrada na Idade Média, e isso parece-me manifestação dessa lógica submersa, que é: "acaba tudo o que tiver que acabar, para que não acabe tudo!". Digamos que poderá haver uns "Guardiões da Origem"...

      Também estou de acordo com a ligação entre tudo, mas acho que a noção de causa e consequência resultam mais de uma forma que temos de compreender o que se passa. Devido a essa grande ligação, tudo é causa, e tudo é consequência. Particularizamos mais um aspecto do que outro, para facilitar a nossa compreensão, que é limitada, e não poderia abarcar tudo. Não acho que haja nenhum ciclo, mas pelo entendimento de semelhanças, podemos entender algumas repetições "grosso modo". A palavra "energia" é meio mística, apareceu depois como um conceito preciso em Física, mas continua a ser usada de forma muito ambígua, em vários contextos.
      O ponto principal é que se constata uma conservação de massa e energia, e isso é algo que faz suspeitar essa noção de que tudo se transforma. Porém, eu tenho razões objectivas para achar que não há nenhuma conservação geral, pelo contrário, há uma enorme expansão geral, e qualquer compreensão fica obrigatoriamente aquém do desenvolvimento da estrutura.
      Já sabia que teria que escrever um Arquitecturas 5...
      Obrigado pelo feedback, é sempre muito útil discutir a sério estes temas, sem preconceitos.


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