segunda-feira, 25 de julho de 2011

O espírito da letra

Este é um daqueles textos que já deveria ter sido escrito há mais tempo... e diz respeito à ortografia.
Antigamente, escrever-se-ia orthographia pela derivação do grego ορθογραφία.
Duarte Nunes de Leão, no Séc. XVI, é muito claro relativamente a este assunto - diz que não deveríamos perder a raiz histórica das palavras, e assim foi convenção europeia que o θ tinha como correspondente o th, e que o φ tinha correspondente no ph. 
Essa ligação histórica perdeu-se no português e castelhano no Séc. XX, já depois de se ter perdido no italiano, mas manteve-se no norte da Europa. O sul terá sido conduzido a uma via fonética...
A ligação fonética até nos poderia levar ainda a tempos mais remotos, mas na prática o que faz é conduzir-nos a uma baralhação de curto prazo, e acentuada perda de memória. 

Aliás, a sociedade está a ser induzida num processo de progressivo Alzheimer, em que só importa o que ocorre no dia de hoje, e que amanhã será esquecido, renascendo sempre infantilmente.
Isso será especialmente notado por quem se dedicar a inspeccionar o sótão da nossa História...

Até aqui... nada de muito novo, e por isso vamos buscar um livro de Plínio ao sótão.
No Livro VII, Cap. 57, Plínio tem um interessante texto sobre as diversas invenções humanas.
Vale a pena ler todas, mas vamos aqui falar da "invenção das letras".
Plínio considera serem de origem Assíria, o que mostra a sua sensatez, mas depois dá outras versões:
- no Egipto, inventadas por Mercúrio!
- pelos Sírios... digamos Fenícios, e que Cadmus teria levado 16 letras para Grécia.

Surge depois o ponto notável, ao estabelecer que outras letras estavam ligadas à Guerra de Tróia:
 θ ξ φ χ      - teriam sido inventadas por Palomedes (que enviou Ulisses a Tróia, e foi traído por ele);
 ζ  η  ψ ω    - teriam sido inventadas pelo poeta Simonides (à época das Termópilas).

Refere ainda que Aristóteles colocava como 18 e não apenas 16 letras originais, a saber:
α β γ δ ε ζ ι κ λ μ ν ο π ρ ς τ υ φ
a que correspondem
A B G D E Z I C L M N O P R S T U F
e em termos de sons, faltam apenas aqui o J e o V, que os gregos não usaram. Jasão era escrito Iasonas, por exemplo, enquanto que o V parece ter sido mesmo ausente.
A substituição dos B pelos V não é só pronúncia do Norte, é também sintoma grego... aliás convém referir que essa é uma relação que pode sustentar a suposta presença grega no Minho.

Estas 18 letras parecem mais plausíveis, pois o ζ e o φ seriam precisos para sons comuns como Z e F.
Já as restantes letras inventadas pelos gregos vieram acrescentar confusão...
- O θ pouco substitui o T, que passou a Th nas transcrições.
- O ξ poderia ser escrito Cs... a menos que tivesse sido pretendido fazer o som Ch. Isto é importante, porque a maioria das línguas europeias usa o som, mas não tem uma só letra para ele. Nós não dizemos "Alecsandre", dizemos "Alechandre"... Um substituto próximo seria o J para "Alejandre" (é isso que os espanhóis fazem, mas fazendo-o R), mas essa letra também não constava no grego.
- Quanto ao χ não fazia falta dado haver o κ ou o ς. O mesmo se passando com os  η, ψ, ω cujo som estava no E, PS, O... a menos que se pretendesse distinguir Ê e É ou Ô e Ó, mas devemos ter em atenção que os gregos usavam acentos.

Poderíamos continuar o relato de Plínio, para a surpreendente revelação de que os Babilónios/Caldeus, teriam registos das estrelas durante centenas de milhares de anos... mas vamos focar-nos na questão das letras.

Uma das letras que os gregos não tinham era o Y.
Já aqui falámos na confusão entre Lusitânia e Lysitânia, e relação com a Lídia ou a Lícia...
Convém perceber melhor porquê. É que o Y (ipsilon) foi usado como substituto do upsilon acentuado ύ e por isso, quando se escreve Cyprus, os gregos escrevem Κύπρος.
Certo!... Mas, e se por acaso se perder o acento na transcrição?
Bom, nesse caso passamos a Κυπρος, Cuprus, que já nada tem a ver com Chipre, tem a ver com Cobre, Cuprum, cujo símbolo químico é aliás Cu...
Acidental, dir-se-à habitualmente e repetidamente... tantos são os acidentes e as coincidências. Porém, voltamos a Plínio, que nos esclarece que a exploração do Cobre teria tido a sua origem onde? No Chipre, pois claro!

Será caso único? Claro que não é, é aliás muito frequente.
Estamos habituados a ouvir falar das Guerras Púnicas... e o que é que Púnico tem a ver com Cartago ou com os fenícios? A própria wikipedia explica:
O adjectivo "púnico" deriva do nome dado aos cartagineses pelos romanos 
(Punici) (de Poenici, ou seja, de ascendência fenícia)
Poenici... porque faltou o H, e deveria ser Phoenici.
Cai uma letra nas transcrições, a moda pega rapidamente, e a palavra passa a ser usada.
Tivesse a coisa sido necessária e os púnicos nada teriam a ver com os fenícios, sem que houvesse suspeita... de tal forma a fonética tinha sido corrompida.

Por isso, quando vamos buscar textos gregos e vemos Lysitanos, devemos lembrar que a diferença para com Lusitanos é só num acento: Λύσιτανῶν ou Λυσιτανῶν e graficamente, se quisermos admitir corrupção em textos antigos é fácil que Lusia: Λυσια, tenha passado para Lydia: Λύδια.
É por isso que é mais importante manter algum espírito e questionar a letra... os relatos de ouro nos rios vinha dos rios lusitanos, enquanto que o rio Pactolo do Rei Creso (ou Midas) só lendariamente foi associado a ouro.
Curiosamente, os franceses mantêm uma pronúncia ambígua no U fazendo soar um I, talvez justamente como resto desta ligação Upsilon-Ypsilon.

Lembrei-me disto, a propósito de uma interessante conversa com Calisto sobre os cavalos lusitanos. Dizia Calisto:
Os cavaleiros ibéricos evoluíam nos campos de batalha de uma forma característica. Tirando enorme partido da obediência e agilidade das suas montadas, movimentavam-se com rápidas transições e bruscas mudanças de direcção, o que dificultava em muito as manobras dos seus inimigos. Esta equitação peculiar, foi dada a conhecer ao mundo pelos Cynetes, quando esta tribo do sudoeste da Península combateu na Grécia contra os Atenienses, auxiliando a vitória dos Espartanos na guerra do Peloponeso (séc. IV a.C.). Tal facto justifica a origem do termo “gineta”, ainda hoje utilizado para classificar esta forma de montar.
Para além do interesse próprio do texto, que espero que o Calisto complete, a referência a Cynetes levou-me imediatamente à variação do Y em U, com a possibilidade de ser Cunetes, e assim referir-se aos Cúnios (ou Cónios). Isto tem algum relevo no sentido da discussão anterior, já que os lusitanos das montanhas, que combatiam a pé e em emboscada, não seriam esses típicos cavaleiros. Houve uma perda do legado dos Cúnios (passando tudo a Lusitano), cujas razões já aqui tentámos explicar...
A transformação do C em G, essa já é mais recente, mas também muito conhecida, por isso o Cynete passou a Ginete... mas de "ginetes" até à ligação com os cónios é que fica a grande distância da suposição de alteração.

Não se trata aqui de encontrar relações soltas... essas podem ser casuais, e haverá certamente muitas que nos levam em erro. Interessa mostrar os casos claros, e alertar para estas diferentes alterações.
A reconstrução tem que ser feita mais pelo espírito da consistência do que pela letra exacta.
Importaria não perder o rasto, já que ele fica mais ténue, a cada mudança ortográfica... perde-se a memória, e perde-se a identidade. Por vezes, surgem surpresas, pelo efeito oposto, como é o caso de Egito e Egitânia... mas dificilmente terá sido essa a intenção, pelo contrário! Temos que contar com os ingleses e franceses para manter a etimologia...

Curiosamente, e a propósito de Egipto, na menção grega de Estrabo tanto aparece Αἰγύπτῳ (Aegypto) como Αἰγυπτῳ (Aegupto)... e se os ingleses têm o Y correctamente, há muito que perderam o AE que era usado pelos romanos neste caso (e também em Etiópia). E se o som PT se mantinha à época romana, a haver alguma conexão em Egitânia, ela perder-se-à nas areias do tempo...

Terminamos apenas com um interessante pormenor, a propósito da relação entre C e G... a cidade de Málaga era denominada Malaca pelos romanos. Aqui não é preciso explicar sobre que outra Malaca falamos... interessa notar que estas alterações produzem um quase total despiste. Nem sequer podemos associar o G ao C... ambas foram terceiras letras de alfabeto, porque o G acabou por ser usado para se substituir a outras letras, ganhando um significado especial até como símbolo maçónico.
Da mesma forma, o H encontrado em textos gregos, como por exemplo em Ἡρακλῆς (Herácles: Hércules) será apenas a forma maiúscula do η (eta), pelo que Eracles seria apropriado... e é por essa razão que não nos importamos de tirar o H a hebreus, ficando Ebreus. Mas, o importante, é que essa razão não basta, é apenas mais um elemento para o acumular de razões... a letra conta, mas apenas como mais um elemento na consistência que pode dar corpo ao espírito de pesquisa.

Sem comentários:

Enviar um comentário