Fruto da evolução dos tempos, parece-nos ser transmitida a mensagem de que antes de Alexandre Herculano mais nenhuns historiadores teriam existido em Portugal...
Está longe de ser assim! A sugestão de leitura no comentário ["Calisto": 28 de Abril 2010], leva-nos a Damião de Lemos Faria e Castro, e à sua História apresentada à Rainha D. Maria I.
Alexandre Herculano, apenas menciona a Monarquia Lusitana de Frei Bernardo Brito como um "livro altamente ridículo", e apesar de reconhecer que é baseado em fontes muito antigas, Herculano parece estar provido do alto de uma cátedra revisionista, suprimindo sem qualquer referência essa "parte mitológica". Até aqui estaria no seu direito de historiador, seleccionando as fontes que considerava credíveis. Parece-nos no entanto, destrutivo e não inocente, a completa supressão desses mitos, quando decide publicar as suas "Lendas e Narrativas". Para Herculano e seguidores, Portugal parecia não ter direito a história anterior à formação da nacionalidade com o Condado Portucalense. Seria o equivalente a suprimir à História Inglesa os míticos Rei Artur, Lancelot, Merlin ou Parseval. Um Herculano inglês teria suprimido Avalon e Excalibur... Por culpa dessas cátedras patrocinadas, fomos reduzidos na capacidade de sonhar, sendo-nos apenas autorizado um pastor Viriato, terror dos romanos, e o eterno Desejado!
A abordagem de Damião Castro, algumas décadas antes é diferente, e ainda assim tem que ser enquadrada numa corrente de influência iluminista francesa crescente, e ao mesmo tempo no contexto da sua ligação aos jesuítas, que recobravam influência junto à filha de D. José, após a perseguição movida pelo Marquês de Pombal.
Castro critica ferozmente a parte mitológica da História nacional, recorrendo-se habitualmente às opiniões lapidares de historiadores franceses, mas não deixa de mencionar detalhadamente essa mitologia, sendo por isso uma fonte muito interessante.
Breve menção à História de Damião Castro
Castro divide a História em três tempos:
- Identifica o Tempo Escuro ao da criação de Adão, dizendo o seguinte:
"Ponto luminoso marcado pela Escritura Santa em que só brilha a luz da verdade na História Sagrada, quando toda a Política, e Profana estava envolvida no Caos tenebroso da maior escuridade". Faz terminar este Tempo no Dilúvio, que diz de Ogiges, lendário Rei de Tebas, dizendo tratar-se de "22 séculos de sombras impenetráveis e trevas imensas". - Identifica depois o Tempo Fabuloso começando do Dilúvio, até à primeira Olimpíada no ano 776 antes da Era Vulgar (com a duracao de aproximadamente um milénio). Justifica a designação, pela "confusão , e miscelânea de verdades e mentiras com que os Poetas organizaram os seus escritos".
- O Tempo Histórico seria começado depois dessa 1ª Olimpíada, a partir da qual, considerava haver relatos fidedignos, ou conforme diz "das Olimpíadas em diante principiou a brilhar na História a verdade dos sucessos sem as tisnas da escuridade, sem as manchas da fábula".
É mesmo mais cáustico dizendo que a "luz histórica" nos permitia agora ver os pais das patranhas referindo-se a fontes antigas: Aunio, Filo, Beroso, Manethon e Metastene.
Por outro lado, é interessante notar a sequência pela qual ele diz que poderia ir buscar fontes fidedignas (através do contacto entre gerações):
- da sua geração até D. Pedro II, dessa geração até D. Filipe IV, depois até ao Cardeal D. Henrique... saltando depois até D. Afonso Henriques.
As escolhas Pedro II, Filipe IV, Cardeal D. Henrique, seriam as piores possíveis que eu nomearia para fontes sem pressões circunstânciais... dificilmente pode ser escolha acidental de reis. Mais, diz irá faz aquela História para evitar uma certa humilhação de se traduzir outras histórias...
Damião Castro alinha no jogo, mas não o esconde, e por isso acabará por ser necessário mais tarde um Alexandre Herculano.
Renega começar no Tempo Fabuloso o princípio da História Antiga de Portugal, como teriam feito "Frei Bernardo de Brito, Manoel de Faria e Sousa, Padres João de Mariana, José Moret, o Arcebispo D. Rodrigo Ximenes, Gabriel de Henão, e quase todos os Historiadores das Hespanhas". Esta informação não serve para refutar "quase todos os historiadores" anteriores, é um elemento importante para identificar documentação que seria menosprezada ou perdida.
Muito mais do que uma mensagem de superioridade face aos precedentes, parece-nos ser uma tentativa de passar informação, tanto mais que aproveita o Prefácio para fazer aquilo que diz que não irá fazer...
Alguns raciocínios são elucidativos:
(i) Para justificar que seria inverosímel que Tubal e o sobrinho Tarsis tivessem migrado para as Hespanhas, diz que o horror às águas após o Dilúvio os desmotivaria para tal viagem.
(ii) Chamando "sectários" a Florião do Campo, Garibay, Beuter e Vazeo, que "beberam na fonte impura de Beroso", diz-nos que quer esses, quer "o novo engenho vasto" de D. José Pellicer não teriam conseguido tirar dos "cofres da sua erudição" motivos que tornassem a história susceptível a "engenhos menos vulgares" de Diaristas de Sotelo, que teriam conseguido derrotar uma opinião favorável a Tubal e Tarsis. A escolha de adjectivos para os vencedores e para o vencido será elucidativa do partido que é seu, mas que não pode tomar.
(iii) Escarnece assim da ideia de uma República de Setúbal formada por esses netos de Noé, do nome do filho Hibero (de onde viria o nome Ibéria), de Tago (de onde viria o nome Tejo), de Beto (de onde viria o nome Bética), de Hispalis e Hespero (de onde viria o nome Hespanha e Hespérides), e também dos mitos associados de Osíris, Hércules, dos filhos de Gerião, Baco, de Luso (de onde viria o nome Lusitânia).
Acaba por parar, dizendo que foi um autor estrangeiro, Quien de la Neufville, que lhe fez ver tudo isso necessitaria de indagação crítica, judiciosa e severa. E é genial dizendo que o eminente autor francês resolve a questão em dois parágrafos, resumidamente porque: Tubal nunca veio à Espanha; que os seus descendentes iberos são os vindos da Ibéria na Geórgia; que eram uns "brutos, incapazes de religião e política"; que sempre foram os mesmos até que estrangeiros, como egípcios, gregos, cartagineses, e gauleses, "adoçassem o seu ar bárbaro e a dureza dos seus costumes". Dificilmente não se ficaria convencido com tal profundidade e elogio nos argumentos dos historiadores franceses...
(iv) Mais à frente, aludindo a que a marinha Grega seria "das mais fracas", e "não poderiam ter passado o Mediterrâneo", cita outro francês, Bochart. Este teria argumentado a origem fenícia de diversos locais, evitando associações com nomes gregos, já que nunca poderiam ter chegado a terras portuguesas. Por exemplo, Minho viria do fenício Manin (quiçá querendo evitar talvez a associação de Minho ao grego Minos), Tejo de Dagi, Lisboa de Alis-ubbo, etc... ao ponto de Damião Castro dizer que fez um tal "dilúvio de conjecturas" que ninguém tomaria Bochart "como fiador" nesta última. Mas é moderado, dizendo apenas que, devido ao grande número, "se algumas coisas acertou, noutras podia errar".
Se há algo que se nota imediatamente é este cuidado em seguir, e não hostilizar demasiadamente as "opiniões dos estrangeiros". Porém o trabalho de Damião Castro acabará esquecido, face à versão mais politicamente correcta que Alexandre Herculano tomará em mãos, evitando talvez estes conflitos pouco sustentáveis com um passado remoto.
Sem entrar já nos detalhes do livro de Damião Castro,
História Geral de Portugal e suas Conquistas
que pode ser consultado aqui:
não deixamos de notar como interessante a referência às Torres Altas(**) de Tróia (no Prefácio, página XXXI), bem como uma referência à chegada da Armada de Ulisses no Tejo, a fundação da cidade Ulyssipo que o Rei Gorgoris teria consentido, cedendo a Ulisses a mão da sua filha Calipso. Asclepíades teria assegurado que aí Ulisses fundara um Templo de Minerva, onde teria ainda visto (no seu tempo, séc. II-BCE) destroços dos seus navios.
(**) Comparar com as Torres de Shetland (ver 2ª notícia Abril/2010 no blog Portugalliae). Essas torres são de origem desconhecida, segundo a reportagem da BBC, estando subjacente um comércio marítimo na Idade do Bronze que talvez envolvesse um antigo comércio marítimo na Europa Ocidental.
Olá, Gostei de ler o artigo, e faço a minha crítica:
ResponderEliminarDamião Castro parecesse seguir Jacques Le Quien de La Neufville (01.05.1647 Paris > Lisboa 20.05.1728)
que se tornou "historiador" pela vontade do historiógrafo dum Rei francês; Paul Pellisson-Fontanier (Béziers 30.10.1624 > Paris 07 .02.1693), que incumbiu Jacques Le Quien de La Neufville de escrever uma história de Portugal em francês, que não concluiu, que sorte !
Se são bem Quein de la Neusville e Jacques Le Quien de La Neufville (01.05.1647 Paris > Lisboa 20.05.1728) as mesmas pessoas.
Se aos olhos dos franceses tudo o que era português seria de Lendas, por razões obscuras e não tanto porque é o seguimento do que fizeram com as ordens religiosas vindas de França, Damião Castro depois de iluminado diz;
a "luz histórica" nos permitia agora ver os pais das patranhas / faz aquela História para evitar uma certa humilhação de se traduzir outras histórias... / dizendo que foi um autor estrangeiro, Quein de la Neusville, que lhe fez ver (..);
O "pobre" Jacques Le Quien de La Neufville foi obrigado a aprender português e espanhol para escrever esta história encomendada… e os "iluminados" dos portugueses vão atrás de tudo o que venha pintado e com cheiros de caracoletas e cochas de rã, é assim, não compreendo a fascinação que têm os árabes e os portugueses pela francófonia!
Eu recuso-me a ler integralmente Herculanos, Damioes e outros da mesma linha iluminada napoleónica, como não acredito em "historiadores" tipo Camões nem outras megalomanias do Estado Novo, para complicar a desordem há os que são da língua Centum e os da Satem, veja-se o exemplo dos Tokhariens ( http://fr.wikipedia.org/wiki/Langues_tokhariennes provavelmente relacionados com as Múmias da bacia de Tarim) que não conseguiam pronunciar correntemente nome de Bouddha diziam Poutta.
Como é que querem que se compreendam as tais Lendas proscritas, dificilmente, mas as mensagens continuam a ser transmitidas noutras formas como neste magnifico desenho animado que lhe recomendo de ver em DVD;
Tenkû no shiro Rapyuta (em japonês: 天空の城ラピュタ), também conhecido como Laputa: Castle in the Sky é um filme de animação japonês realizado por Hayao Miyazaki em 1986.
Mas não me acredito que encontre este DVD em Portugal, país onde as Lendas estão ainda proscritas por decreto Napoleónico.
Cumprimentos,
José Manuel CH-GE
Caro José Manuel
ResponderEliminarobrigado pelas informações e pela correcção: sim, só pode ser "Quien de la Neufville" (o "Quein" é erro de Damião e o "Neusville" é meu, na confusão do F com o S antigo), já corrigi!
Eu acho que não é só uma "paixão" pelas "caracoletas e cochas de rã" (boa imagem ;-) )...
Acho que a certa altura foi uma paixão mortal para subsistência da corte nacional, e depois transformou-se num modo de vida lisboeta...
Associar Bouddha a Poutta, dá uma dimensão nova à expressão "filho de Buda". Obrigado por esse momento... ainda que sério, é preciso rir de vez em quando, e neste caso ri mesmo!
Sabe, parece que havia um código entre os membros da carbonária, que fazia esbater essas diferenças entre consoantes, para além dos conhecidos C e G, T e D, ou B e V.
Encontrei um link para o trailer do filme que menciona:
http://www.youtube.com/watch?v=fuKh-IeRfpI
Mais uma vez obrigado!
Cumprimentos.