sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Coreomania, epidemia dançarina

Coreomania, ou epidemia dançarina, foi um distúrbio mental ou físico que ocorreu na Idade Média, com casos reportados do Séc. VII ao XVII. Uma das histórias mais bem conhecidas passou-se em 1518 em Estrasburgo, quando uma mulher de nome Troffea começou a dançar sem parar, sem razão aparente.
Esta dança errática, mas não caótica, foi contaminando jovens, e muitos outros, até se estimarem centenas de pessoas dançando sem parar, nas ruas de Estrasburgo... até que foram hospitalizados, contando-se também que alguns teriam morrido por exaustão.


Pieter Brueghel (filho) reportou o fenómeno da coreomania.

Um tema que me pareceu importante rever, dadas as circunstâncias de paranóia impostas top-down, seria o de perceber como reagia a população em tempos de pandemia, nomeadamente, aquando da peste negra. 
Este caso da Frau Troffea, e da multidão dançarina que arrastou em Estrasburgo, não ocorre numa altura de peste, mas sim numa altura de fome... onde se suspeita que podem ter existido casos de intoxicação de ergotismo (que esteve na origem da síntese do LSD em 1943), causado pelo esporão-do-centeio, um fungo parasita do cereal. Isso causava alucinações, mas era especialmente notado pelas convulsões e gangrena associadas.

No entanto, a presença desta Coreomania tem um importante registo após a Peste Negra, em 1374, na Alemanha e Países Baixos - ver The Epidemics of the Middle Ages de J. F. C. Hecker, especialmente o capítulo "Dancing Mania in Germany and the Netherlands". 

Teve ocorrências anteriores, nomeadamente em 1237, envolvendo uma centena de crianças, que seguiram dançando sob a música, de Erfurt a Arnstadt, até caírem por exaustão... algo que poderá estar na origem da lenda do Flautista de Hamelin, que depois de encantar os ratos (responsáveis pela peste), e não se ver recompensado, encantou as crianças de Hamelin. 
Em 1278, em Utrecht, numa ponte, também cerca de duzentas pessoas dançando erraticamente em cima da ponte teriam levado ao colapso da estrutura, e ao seu afogamento.

Para além da possível relação com intoxicação pelo fungo, há quem suspeite de estímulo coordenado, ou resposta emocional imposta pelas dificuldades na Idade Média. Ou seja, não é muito claro qual será a resposta de uma população quando é encostada a um certo limite psicológico, e se nalguns casos poderá dever-se a eventual intoxicação, a adesão contaminante poderia ser um fenómeno social de libertação, exteriorizado da opressão para a dança. Em resposta a um comentário de João Ribeiro, brinquei que os "viras" poderiam ser uma alusão ao latim  "virus", dado que essa palavra latina declina em "viro", referente a veneno ou cheiro putrefacto. A coreografia da dança invocando trocas de par, mãos levantadas, e muito rodopio político, não deixa de poder ter outras leituras.

Peste negra e os judeus
No entanto, a resposta da população ao problema viral, causado pela Peste Negra, não deixou de ter outras componentes, mais ou menos expectáveis - os judeus!

No referido livro de Hecker, sobre a Peste Negra, há um capítulo sobre "Moral effects", e os efeitos morais, para além de um notado isolamento das pessoas, acompanhada por alguma solidariedade cristã, peregrinações de uns certos "Flagelantes" e da "Irmandade da Cruz", teve também os judeus como alvo, suspeitos de envenenarem os poços, e trazerem o mal. Fala em 12 mil judeus mortos em Mainz (Mayence), pois estes teriam inicialmente conseguido resistir, o que levou depois ao seu extermínio por acção dos cristãos com os "Flagelantes".
A wikipedia resume assim o início dos massacres contra os judeus:

"The first massacres directly related to the plague took place in April 1348 in Toulon, Provence where the Jewish quarter was sacked, and forty Jews were murdered in their homes; the next occurred in Barcelona. In 1349, massacres and persecution spread across Europe, including the Erfurt massacre, the Basel massacre, massacres in Aragon, and Flanders. 2000 Jews were burnt alive on 14 February 1349 in the "Valentine's Day" Strasbourg massacre, where the plague had not yet affected the city."

Portanto, uma das coisas em que convém haver algum cuidado, é numa certa percepção conspirativa de que os judeus são agentes financeiros, que lucram por trás de qualquer desgraça, e a Covid-19 não será excepção. Daí até serem apontados como suspeitos do costume... é apenas um passo, onde é fácil ver para onde os podem querer empurrar, certas tendências conspirativas de extrema direita.

São tempos de crendice, de muito rodopio, onde aqueles que parecem querer defender os nossos pontos de vista, são depois usados e manipulados no sentido oposto. E nesse vira dançarino, onde os governos optam pelas soluções de navegação à vista, sempre invocando cautela face à ignorância, mas recorrendo à mesma ciência ignorante, é aí que poderemos assistir a mais uma daquelas tragédias históricas, vivida nesta situação como testemunhas presenciais.

É daquelas situações em que muitos governantes gostariam de se poder desculpar com a resistência da população, mas ao invés disso, são pressionados a fazer pior, porque as populações amocham, e vão aceitando praticamente tudo... e não tendo desculpa para travar, só lhes resta passar por cima (para evitarem eles próprios serem cilindrados).

2 comentários:

  1. Realmente, todas as danças minhotas são rodopiantes e de braços no ar. Certas há, como a espectacular "Gota de Dem", Dem (Serra d'Arga)-Viana do Castelo, dançada por dois pares é de tal forma cansativa para os homens, que num escrito sobre folclore Pedro Homem de Melo aconselha a ser dançada por homens de vinte poucos anos.
    Cumpts.
    Valdemar Silva

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    1. Boa referência, incluo um link ilustrativo da "Gota" do Dem:

      https://www.youtube.com/watch?v=1pK30rYUtvw

      Repare-se na diversas fases:

      (i) Distância social : 1 metro
      (isso era em Março, agora terá que ser recriada a maior distância)

      (ii) Ora vira de frente (podem contagiar-se à vontade no Verão, para turismo ver);

      (iii) Ora vira de costas (quando se impõe o recolher obrigatório);

      (iv) A rodar e mudança de par sempre à distância (problema dos e das amantes - uma tragédia amorosa, que dará para mil e um romances);

      (v) Os homens (mais obedientes), exageram no rodopio, para mostrar serviço, e como é hábito, há uma maior sensatez das mulheres (mais desconfiadas) que se mexem menos.

      Pois lá está, é dança aplicada aos jovens... os grandes propagadores do "vira".

      Claro que tudo isto será fortuito... ou não!
      Mas as mãozinhas no ar, indicam uma certa higiene no trato, moral ou físico.

      O que é certo é que a peste negra, bem como outras pragas, infligiram certamente fortes comportamentos morais, que não estão de outra forma manifestados nas tradições populares.

      Cumprimentos.

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