terça-feira, 3 de setembro de 2019

Nuca Antara - Erédia (4)

Quando escrevi em 2011 que Richard Major tinha sido forçado a considerar que Erédia não tinha efectuado a viagem à Austrália, não supus que a origem disso estivesse no reconhecimento do próprio Erédia, de que não tinha feito a viagem, como acabei de expor no postal anterior.

Parece que Richard Major terá ficado bastante perturbado pelo assunto, perdendo toda a confiança nas palavras de Erédia, quando afinal até teria sido o próprio Erédia a reconhecer essa lacuna (ver: "Erédia - um português de Malaca" de João C. Reis)
De tal modo ficou Major abalado, e ressentido, com esta revelação, sentindo-se assim, redondamente enganado, e ignominiosamente humilhado, que, num penoso ungido, amesquinharia o português e as suas cartas, que o haviam induzido no execrável erro-passando a renegar o que antes dissera nos seus livros e proclamações de enaltecimento das glórias portuguesas.
"Vejo agora -- dizia -- que as supostas palavras portuguesas [dos mapas de Dieppe] são de facto palavras vlaamsch [dialeto francês medieval]. Rejeito, portanto, tudo quanto anterior-mente escrevi, e não acredito mais na descoberta da Austrália pelos portugueses."
Interessa agora o Cap. 6 do livro II, sob título "De Descobrimento a Caso", porque se Erédia não partiu em exploração, soube de quem tinha ido. Citando Erédia:
A caso se descobrirão alguas ilhas da India Meridional, como pollos mercadores da Macao da China, que tendo a carga de sandalo de Tymor, com temporal aportou aquelle junco em hua do sul, da forma de Tymor, e na ilha dezembarcarão para fazer aguada e lenha, por ter agoa de fontes e espesos arvoredos de cravo, e palmas sem encontrar nhua gente nem pisadas de pessoas salvo de veados e animaes. E esta ilha conforme as confrontações, deve ser aquella de Petan, de Marco Polo Veneto, ao parcel de Maletur.
Erédia procura em múltiplas situações identificar as terras australianas com descrições feitas por Marco Polo, e de certa forma remete até para o explorador veneziano essa descoberta... no sentido em que Marco Polo poderia ter sido o primeiro europeu da Idade Média a chegar àquelas paragens. Na concepção de Erédia, o descobridor era ele, porque tinha sido a si que o rei através dos vice-reis tinham dado o privilégio, o alvará da "descoberta".

Cidades de pedra despovoadas
Erédia continua:
Outra embarcação de Malaca com correntes desgarrada por lo boqueirão de Bale, entre a Java e Bima, passou ao sul, e descobrio as ilhas Lucatambini (Luca Tambini), povoada somente de molheres como Amazonas com arcos e frechas deffenderão a praya para nhua pessoa desembarcar em terra. E estas molheres devem ter os maridos em outra ilha apartada e os annaes e lontares da Java fazem mençao de Lucatambini.
E esta mesma embarcação mais a sul, descobrio outra ilha, cujo ambito rodeou por 8 dias de viagem sem enxergar nhua pessoa nas prayas, onde virão em algus portos sumptuosos edifficios de pedra e tijolos, de grandes cidades e fortalezas despovoadas; em que mostra haver na India Meridional aparato de urbanidade e sciencias liberaes e mecanicas.
Esta passagem é curiosa, porque Erédia explicita aqui a questão das Amazonas, que já estava mencionada no mapa anterior, conforme observámos. Mais, para além de referir que o continente australiano estava praticamente cheio de praias desertas, menciona aqui a questão dos sumptuosos edifícios de pedra e tijolos, em cidades despovoadas. Esta referência, retirando posteriores eventuais destruições por parte de holandeses e ingleses, lembrar ainda as ruínas de Nan Madol:
Nan Madol - ilha polinésia com uma cidade em ruínas desabitada, conforme as relatadas por Erédia. 

Ilha da Cera
Recuperando o assunto do naufrágio da nau São Paulo, Erédia continua:
E o piloto da nao S. Paulo que se perdeo em Samattra, com temporal que teve nos Romeros, em altura de 36 gr. austrais, correo a leste muytos dias ate encontrar mais ao sul a ilha da Sera, por muytos paos de sera que acharão na praya marcados com letras differentes de Arabia. E esta sera estava pera se embarcar em algua embarcação que se recolheo depreça pera outra ponta da ilha povoada: porque não pode ser aquela sera da praya de naufragios, porque pudera estar deretida e desfaita com calor do sol. Antes parece sera de tratto de algua terra firme do sul, de mercadores políticos.
Neste caso, Erédia dá a indicação de que a ilha de São Paulo (ou talvez a ilha Amsterdam) seria conhecida como Ilha da Cera (Erédia escreve "sera" em vez de "cera"), devido a paus de cera " com letras árabes" que aí tinham sido encontrados (talvez antes mesmo da viagem da São Paulo).
Usava esse apontamento como justificação para uma eventual proximidade de outros mercadores, originários de um continente a sul - a Índia Meridional, ou seja, a Austrália.

Papagaios.
Erédia acrescenta ainda:
E outra nao de Portugal em altura de 40 gr. austraes descobrio a terra de Papagaios com temporal, e correndo costa acharão muytos papagaios como de banda; e aquela terra parece continente e firme e a mesma de Lucach.
O nome "Terra de Papagaios" neste contexto não era aplicado ao Brasil, com é claro, e Erédia esclarece que eram semelhantes aos da Ilha de Banda, ou seja, eram mais pequenos, semelhantes aos piriquitos, e espécies similares, que como se sabe são típicos do continente australiano. Ou seja, mesmo que estivesse a tentar adivinhar... tinha acertado em cheio. Só faltaria mesmo falar em cangurus, mas os relatos que Erédia teve devem ter sido apenas de viagens costeiras.

Náufragos portugueses
Finalmente, e supreendentemente, Erédia diz o seguinte:
A nao de Olanda com temporal em altura de 41 gr. austraes, descobrio aquella terra firme do sul, onde achou muytos Portuguezes filhos e netos de outros, que com naufrágio derão a costa, e tem as mesmas armas e artelharia em seu poder, mas andão despidos e mal empanados, e vivem de suas lavouras e trabalho, no anno de 1606.
Isto significa que os próprios holandeses reportaram ter encontrado famílias de náufragos portugueses na Austrália, que basicamente sobreviviam, mal vestidos, mas ainda com armas e artilharia portuguesa em seu poder.
Não se percebe se estes portugueses foram deixados pelos holandeses, ou se regressaram com eles, mas tudo parece indicar que esses portugueses ficaram lá, talvez esperando o resgate dos compatriotas, que nunca terá acontecido, ou talvez formando um pequeno reino tribal independente, conforme parecem indicar os desenhos dos mapas de Dieppe (esquecendo aqui outras hipóteses ainda mais especulativas).

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