No número 24 da Rua das Farinhas em Lisboa, mais precisamente no bairro da Mouraria, está uma antiga casa com uma laje, onde está um corvo representando São Vicente, estando escrito:
"ƧAM VECẼTE"
De quando será este apontamento singular?
Bom há registos fotográficos de 1900 que mostram o local e podemos ver que em comparação com os dias de hoje, as modificações foram praticamente só de pintura e restauro.
Repare-se que as pedras, varandas e janelas são exactamente as mesmas. O ferro das varandas deve estar ali há séculos e não apenas há um... há muitos! Na imagem de 1900 o corvo mal se vê, só se nota o relevo, pois foi pintado por cima. As pessoas, mesmo algumas sendo crianças, parecem demasiado pequenas.
Transcrevo a citação do blog Lisboa de Antigamente, que remete para o livro "Legendas de Lisboa" (pág. 80-81) de Norberto de Araújo:
Conserva o sítio de S. Cristóvão, no meio do seu encanto de pitoresco alfacinha, uma pedra esculpida que representa um corvo da nau da heráldica olisiponense. Tem este corvo movimento, pisar lesto e olho alerta; sobre a sua silhueta fina lê-se ƧAM VECẼTE.
Neste muito alfacinha bairro de S. Cristóvão, vizinho da Madalena e da Mouraria, no sopé dos muros do Castelo, com os seus becos das Flores, os seus largos da Achada, de cazitas de andar de ressalto e janelas ogivais, e dos Trigueiros, fantasia do acaso urbanista, com a Rua das Fontaínhas e o Largo da Rosa — a pedra do corvo de S. Vicente do prédio de empena de bico, n.°22[n.º 24] da Rua das das Farinhas, é uma preciosidade de pitoresco.
Nada em Lisboa assim. Deve ter sido o prédio foreiro aos cónegos regrantes de Santo Agostinho. O foro passou; o corvo não.
Há imagens que mostram o corvo pintado de preto, e o prédio pode ter pago foro aos cónegos pretos ou crúzios, mas isso leva-nos justamente a um tempo remoto, seguinte à conquista de Lisboa.
Também a forma da escrita aponta para séculos XIII-XIV, mas a pedra pode ter sido feita bem antes e depois colocada ali, decorativamente, tirada de um outro lugar.
A questão principal que aqui gostaria de levantar é que me parece que estes prédios, tal como uma boa parte dos prédios antigos de Lisboa, podem ter mais de 500 anos, e ao contrário do que é costume invocar, não caiu tudo com o abalo do Marquês... nem a casa onde este nasceu.
Por exemplo, as casas do Bairro Alto têm quase todas uma mesma tipologia, e citamos Joaquim Moreira de Mendonça que na sua obra após o Terramoto de 1755, refere-se ao maremoto que ocorreu em 1531, levando à construção do Bairro Alto:
As razões para esta suspeita são simples...
Após o início da expansão marítima no Séc.XV, Lisboa teve um crescimento enorme, havendo um acréscimo significativo de zonas residenciais, que se processou desordenadamente como era habitual. O primeiro bairro com planificação moderna, quadriculada, foi justamente o Bairro Alto, após o devastador sismo de 1531. Acontece que uma boa parte dos imóveis não eram da nobreza, eram simplesmente de habitação vulgar, por exemplo de marinheiros, mercadores ou mestres de artes. Eram propriedade privada, e não era fácil ao Estado arrasar com toda a propriedade privada alheia... para esse efeito convinha a uma reestruturação e planeamento a existência de sismos, incêndios, etc. Por isso, foi sendo natural que as casas, não caindo, fossem simplesmente restauradas, no mesmo processo que vemos a imagem da Rua das Farinhas ser hoje praticamente igual à Rua das Farinhas há 120 anos. Até que chegassem grandes empresas, capazes de comprar lotes e fazer novos empreendimentos, como só aconteceu no final do Séc.XX, as habitações iam durando até desmoronar pelo envelhecimento da estrutura. E é claro, as zonas mais atractivas para a especulação imobiliária não eram as pequenas ruelas dos bairros típicos, que se foram mantendo, desde há séculos.
Olhando para as ruas e casas de Óbidos, assumidamente uma vila que foi mantendo o seu aspecto medieval, vemos o mesmo tipo de construção com janelas e portas rodeadas por lajes de pedra, com varandas de ferro, o mesmo aspecto medieval que foi herdado também em Lisboa. É claro que, do ponto de vista do agente imobiliário, poderá haver alguma hesitação em dizer que uma casa tem 500 ou 600 anos, mas do ponto de vista histórico e de legado patrimonial será algo bem diferente.
Também a forma da escrita aponta para séculos XIII-XIV, mas a pedra pode ter sido feita bem antes e depois colocada ali, decorativamente, tirada de um outro lugar.
A questão principal que aqui gostaria de levantar é que me parece que estes prédios, tal como uma boa parte dos prédios antigos de Lisboa, podem ter mais de 500 anos, e ao contrário do que é costume invocar, não caiu tudo com o abalo do Marquês... nem a casa onde este nasceu.
Por exemplo, as casas do Bairro Alto têm quase todas uma mesma tipologia, e citamos Joaquim Moreira de Mendonça que na sua obra após o Terramoto de 1755, refere-se ao maremoto que ocorreu em 1531, levando à construção do Bairro Alto:
Tenho certeza por documentos autênticos que ainda depois daquele ano se erigiram todas as ruas do Bairro Alto, que ficam para fora das Portas de Santa Catarina e Postigo de S. Roque (...) "História Universal dos Terramotos" - J. J. Moreira de Mendonça (1758). .Um aspecto típico dessas casas antigas é que as portas e janelas estão rodeadas por lajes de pedra simples, num formato rectangular, como vemos no nº 24 da Rua das Farinhas.
As razões para esta suspeita são simples...
Após o início da expansão marítima no Séc.XV, Lisboa teve um crescimento enorme, havendo um acréscimo significativo de zonas residenciais, que se processou desordenadamente como era habitual. O primeiro bairro com planificação moderna, quadriculada, foi justamente o Bairro Alto, após o devastador sismo de 1531. Acontece que uma boa parte dos imóveis não eram da nobreza, eram simplesmente de habitação vulgar, por exemplo de marinheiros, mercadores ou mestres de artes. Eram propriedade privada, e não era fácil ao Estado arrasar com toda a propriedade privada alheia... para esse efeito convinha a uma reestruturação e planeamento a existência de sismos, incêndios, etc. Por isso, foi sendo natural que as casas, não caindo, fossem simplesmente restauradas, no mesmo processo que vemos a imagem da Rua das Farinhas ser hoje praticamente igual à Rua das Farinhas há 120 anos. Até que chegassem grandes empresas, capazes de comprar lotes e fazer novos empreendimentos, como só aconteceu no final do Séc.XX, as habitações iam durando até desmoronar pelo envelhecimento da estrutura. E é claro, as zonas mais atractivas para a especulação imobiliária não eram as pequenas ruelas dos bairros típicos, que se foram mantendo, desde há séculos.
Olhando para as ruas e casas de Óbidos, assumidamente uma vila que foi mantendo o seu aspecto medieval, vemos o mesmo tipo de construção com janelas e portas rodeadas por lajes de pedra, com varandas de ferro, o mesmo aspecto medieval que foi herdado também em Lisboa. É claro que, do ponto de vista do agente imobiliário, poderá haver alguma hesitação em dizer que uma casa tem 500 ou 600 anos, mas do ponto de vista histórico e de legado patrimonial será algo bem diferente.
Caro Alvor,
ResponderEliminarMais uma que também tem piada.
ƧAM VECẼTE
Ora o "Ƨ" levou-me a fazer um pequeno ensaio, pelo facto do "S" estar ao contrário e a localização ser na "mouraria", ou próximo dela, tentei ler o texto da direita para a esquerda.
Teriamos assim: ETECEVMAS ou em Grego έτεκεβμας cujo significado é "retiro".
Juntando a figura ao "retiro" teriamos RETIRO DO "CORVO".
Quem seria este "corvo", "grego", do "retiro" da casa nº 24?
Cumprimentos,
Djorge
Anexo aqui:
Eliminar"Cultura e língua grega em Portugal e outras regiões da península entre os séculos XV e XVIII (seis momentos para a compreensão e estudo da sua dinâmica)"
Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-13362009000200008
Que demonstra não ser descartável "pensar" em "grego" no Portugal quinhentista.
Cumprimentos,
Djorge
De facto, é uma observação interessante.
EliminarMas apenas o S aparece virado como Ƨ, não temos o mesmo com o E, ou seja, não aparece Ǝ. Mas, é muito interessante ter feito essa observação original. Fui também ver o que dava em grego:
- "έτεκεν μας", e apareceu-me "ela tem-nos"...
- já se for "ετέκεν μας", aparece "nosso" (o sinal tem bastante influência).
Sim, o grego era uma língua importante no mundo medieval, e aliás o curioso é que em Constantinopla, sede do Império Romano oriental, a língua oficial era o grego, e praticamente ninguém falava latim.
Abraço.
Exatamente.
ResponderEliminarA "lenda" de SAMVECETE, teria essa leitura, no entanto, o que acho subtil é que se fosse, eu a dar uma "dica" da leitura, seria essa.
A primeira letra, aquela que lidera, ordena e classifica.
É importante relembrar também a importância do termo "Corvo" ou da figura do "Corvo", pois o símbolo da capital ostenta 2 e não 1 corvo.
Ainda assim, seguindo o meu raciocínio, sendo o "Corvo" um simbolo na mitologia grega para o "mensageiro" de Apolo.
Poderemos, então, ligar "Apolo" a alguma figura da época que usasse de um mensageiro (talvez mensageira derivado de [ela tem-nos / nosso(a)]) Grego(a) em Lisboa?
Externo ou interno?
Abraço,
Djorge
Não é fácil encontrar muitas inscrições medievais, mas por exemplo, esta do Chafariz do Andaluz, em Lisboa:
Eliminarhttps://paixaoporlisboa.blogs.sapo.pt/chafariz-do-andaluz-44066
https://fotos.web.sapo.io/i/G7213472a/19683873_SdBeN.jpeg
https://pt.wikipedia.org/wiki/Largo_de_Andaluz
refere a construção do chafariz por D. Afonso IV em 1335/36 o que na Era Hispânica eram mais 39 anos, ou seja, 1374. Lê-se qualquer coisa da forma:
+E:M:CCC:LXX:IIII:O:CO
CELhO:dA CIDADE:DE
LISBÕA:MÃDOU:FAZ:ES
TA:FÕTE:U SUIÇO:D:d~S
E:D:NOSO:SENh:REY:DÕ
...
Conforme se pode ver a acentuação "~" era feita na forma "─◠─".
Isso é típico deste período medieval.
Quanto à sua observação, conforme já disse, tem de facto uma lógica, e agora que adicionou essa ligação a Apolo, releva o interesse, mas parece-e um grande salto ao ponto de remeter à lenda de Ulisses.
De qualquer forma, gosto bastante dessas especulações quando se lhes procura dar um sentido. Obrigado por partilhar.
Abraço.
Boa tarde a ambos,
ResponderEliminarCaro DJorge muito bom, tem sempre uma maneira "fora da caixa" de ver a coisa! Muito bom, explore essa capacidade. Até me chega a fazer lembrar alguém... Eheheh
Abraço aos dois,
JR
Olá João.
EliminarÉ mesmo isso, uma visão fora da caixa, agora que nos querem cada vez mais empacotar em ideias politicamente correctas, é sempre agradável... é quase como respirar ar fresco.
Espero que vá arranjando tempo para aqui deixar também os seus comentários.
Abraço.