sábado, 30 de abril de 2016

dos Comentários (20) - milho e milhão

Através de email chegou-nos gentilmente o seguinte comentário (de Moura Sherazade):
Encontro no texto - Sobre um conjunto de silos em Beja-, disponível online, o seguinte: 
«Os solos de boa qualidade proporcionaram ao Alentejo a possibilidade de produção de vários tipos de cereal, existindo desde os textos das Inquirições gerais de 1220, 1258 e 1284, nos contratos de aforamento de terras de D. Afonso III, de D. Dinis e das instituições religiosas referências ao trigo, à cevada, ao centeio e ao milho que eram a moeda de troca por excelência.»
Esta referência sobre milho em época medieval vem num artigo
... e o texto continua acrescentando - «O termo Pão era a forma mais corrente de designar aqueles cereais, sendo o trigo o mais utilizado em todos os períodos (Goes, 1998)».

O assunto do "problema do milho" foi abordado pelo José Manuel em 2009:
Cultura de milho na Suméria (de um vídeo de Gunnar Thompson)
... onde se apresenta uma série de vídeos de Gunnar Thompson - que argumentava sobre referências ao milho nas civilizações egípcias, sumérias e babilónias, colocando isso como prova de que haveria viagens à América em tempos antigos.

Ora, ainda acerca disso também escrevi algo, com base em traduções inglesas de textos romanos, que usavam a palavra "corn"... e que davam a Turdetania (Andaluzia) como exportadora deste cereal.

Só que o assunto das referências antigas ao "milho" foi convenientemente blindado com uma armadilha institucionalizada. Por exemplo, ainda que hoje em inglês "corn" designe essencialmente milho, é suposto que antes do Séc. XIX tenha servido indistintamente para outros cereais. Por isso, vi-me obrigado depois a fazer uma correcção ao texto... Será o mesmo do que se institucionalizar que antigas menções a «ouro» diziam respeito a qualquer metal brilhante, e a partir do momento em que se institucionalizam significados diferentes para as mesmas palavras, bloqueiam-se leituras modernas de textos antigos.

Pinho Leal no final do Séc. XIX já apanhou essa fase de «revolução cultural» da maçaroca maçónica, e assim diz-nos o seguinte:
MAÇAROCA — (milho de maçaroca) - portuguez antigo - milho grosso ou milhão. Julga-se geralmente que o milho grosso não foi conhecido em Portugal senão depois do descobrimento de Guiné, por Diogo da Azambuja, em 1482. Os portuguezes o trouxeram para o reino, e diz se que foi aqui cultivado pela 1ª vez nos campos de Coimbra, d'onde se propagou por todo o reino. (Vide Milhom.) 
Antes de comentar esta referência, que é significativa, vejamos o que nos diz sobre «milhom»
MILHOM — portuguez antigo - milho miúdo. Em um testamento de S. Simão da Junqueira, feito em 1289, se diz :- It. a Stevão Joannes, de Perafita, ou aos seos heréés (herdeiros) hum quarteiro de milhom.
Em todos os documentos antigos, onde se fala de milhom, deve sempre entender-se milho miúdo; porque não havia outro.
O que hoje chamamos simplesmente milho, milho grosso, milho maiz, milhão, e milho de maçaroca, só foi conhecido em Portugal, no século XVII, trazendo-o da Índia, Paulo de Braga. Consta que ao principio era proibido semeá-lo, e só alguns cultivavam poucos pés, nas suas hortas e jardins.
É tradição que a primeira cultura em grande, deste cereal, foi no campo de Coimbra.
Ainda no principio d'este século, pouco milho grosso se cultivava na Extremadura, Alemtejo e Algarve; hoje constitui a principal cultura de todas as províncias de Portugal e ilhas, e é o pão da maior parte dos nossos lavradores e de muitas famílias, sobre tudo, de Coimbra para o norte. 
Qual o problema?
O problema é que o uso antigo da palavra «milho» era inconveniente, e na realidade existe também uma outra espécie diferente o «sorgo», cujo aspecto poderia servir a confusão:
O sorgo tem semelhanças com o milho Zea mays...
Há um estudo que me parece que tenta clarificar isto - O Zea mays e a expansão portuguesa (de Joaquim Lino da Silva, 1998), referindo «Cadornega, em Angola, usa milho-zaburro como sinónimo de sorgo, e com justificação», ou ainda mencionando João de Barros «[Barros] diz que o comum mantimento daqueles povos é o milho de maçaroca, a que chamamos zaburro, donde se infere que o milho zaburro vem a ser o mesmo que o Milho grande [...]», acrescentando «Nós estávamos, na realidade enganados, o milho zaburro de Guiné, e das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé não era um Sorghum; mas ainda mantemos que Jeffreys [não é só este autor] está igualmente errado, quando identifica zaburro com Zea Mays. Há outra variedade de milho, diferente dos dois.»

Portanto, vemos que se trata de terreno muito pantanoso... bem armadilhado com incertezas, e daí ter feito uma certa retirada estratégica no texto "Milho a Milhas", porque não vale a pena discorrer por caminhos pantanosos, quando temos centenas doutros bem seguros.

Pinho Leal dará como possível introdução do «milho normal» em Coimbra no Séc. XVII, e encontrámos uma ordenação feita em Lisboa, em 8 de Setembro de 1606 (Emmanuelis Alvarez Pegas - Commentaria ad ordinationes Regni Portugalliae, pág. 613) que se refere a danos nos diques (marachões), referindo este tipo de culturas em várias ocasiões «hum alqueyre de milho nas eyras, o qual o dito Provedor o fará receber, & arrecadar de cada pessoa, ou pessoas, que a isso estiverem obrigadas (...)», ou ainda «vendendo-se o dito milho, o dinheyro delle se meterá em hum cofre, como abayxo irá declarado (...)».

Trata-se de uma situação semelhante à das laranjas... que se atribui também a chegada apenas em tempo dos descobrimentos, apesar de termos o nome "Portugal" associado a laranjas em diversos países, nomeadamente na Grécia (Πορτοκάλι - Portokáli) e em países muçulmanos.

Há povoações com o nome "Milheiral", etc... mas como vimos é sempre fácil argumentar que se tratava do sorgo, do milho-zaburro, ou outra espécie que não entre em conflito com a chegada à América, e assim ainda que mesmo João de Barros refira o consumo de milho por outros povos, pode remeter-se a maçaroca ao sorgo, e esse caminho estará institucionalmente minado... como Pinho Leal assinalou - até chegou a haver ordem de proibição de cultivo.
O que é mais interessante é Pinho Leal remeter a origem do "milho grande" a Diogo de Azambuja, o homem que ergueu o Castelo da Mina... que na nossa opinião, e antiga fundamentação, não seria o Forte da Mina existente em África, mas sim uma construção paralela feita próximo de Istmina, na Colômbia, para negociar com os Incas, e da qual restou a imagem de castelo português existente no Mapa de João de Lisboa, em território Inca. Portanto, essa referência ao milho poderia remeter aos Incas... mas tratando-se da maçaroca usada na Guiné, também pode remeter a outra interpretação, e por isso não vale a pena alimentar uma discussão desse tipo, tendo os Mapas de João de Lisboa como prova indelével de tudo o que afirmamos.

O que nos parece claro é que depois foi outra a maçaroca, foi outro o milhão... ou seja, foi a maçaroca dos milhões que comandou os contos da história. Ora, como um conto valia um milhão, houve facilmente quem trocasse a História por contos de milhões, mas também aprendemos que o primeiro milho é dos pardais, e convirá que estes não abusem da paciência do milhafre...

10 comentários:

  1. Olá boa noite,

    Algo parecido com o milho precolombino é o pau Brasil, o estudo dos pigmentos de certos pergaminhos poderia provar que os portugueses ou outros já de lá traziam este colorante antes da descoberta da América, mas como duma ilha do Indico também vinham pelas suas naus o equivalente duma árvore parecida fica tudo numa história de malaguetas da Ásia a encobrir a América!

    Mais importante é o que a selva americana tem para revelar, mas parecem não estar muito interessados:

    http://observador.pt/2016/05/09/adolescente-canadiano-descobre-cidade-dos-maias-desconhecida/

    Cpts.

    José Manuel

    P.S.
    Um comentário no "O 25 de Abril e a NATO" desapareceu... era um pouco inconveniente, ou burro...

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  2. Olá José Manuel.
    Pois, eu nem notei que tinha havido um comentário ao postal "25 Abril & NATO"... não faço ideia do que se passou, mas os utilizadores inscritos podem remover os seus comentários - ainda que fique nesse caso "comentário removido pelo autor". Não aparecendo nem sequer isso, parece-me bastante mais estranho. Mas enfim, também não é novidade ocorrerem coisas estranhas... noutro dia notei que ambos os blogs estavam bloqueados quando tentei entrar por IP's "não usuais" - mas isso não ocorria para outros blogs do Blogger, nem para outros blogs do Sapo.

    Quanto à confusão da América com a África & Ásia, é conforme diz e sabemos, e como a Duquesa de Medina-Sidónia também o dizia. Tivémos a Pimenta-da-Guiné, a Pimenta-Malagueta (da América) e a Pimenta-Preta (da Índia), mas as coisas ficaram de tal forma misturadas, que nós éramos supostos ir à procura da Pimenta da Índia, mas os indianos é que ficaram viciados na (Pimenta-)Malagueta americana!
    Como é facilmente suspeitável, "malagueta" deveria ser o nome da americana, mas a "Costa da Malagueta" passou por ter ficado na África, e de facto os africanos também passaram a consumidores da pimenta americana.
    E se não bastasse à confusão, o que nem é picante - o Pimento ou Pimentão, ficou com um nome "apropriado" ao contrário... um espectáculo!

    Abraço,
    da Maia

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  3. Bom dia caro Da Maia,

    Sabe se pelo séc XIV em Portugal já se usava a pimenta? Achei curioso quando li uma frase de um livro (Crónica de 1419) que estou a ler que indica que sim. Sempre associei a pimenta aos descobrimentos. Achei ainda mais curioso o conhecimento ou melhor, o uso da palavra "cancro" para designar uma doença que poderia realmente ser um cancro. Sempre achei esta palavra relativamente recente.

    Cumpts,

    JR

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    1. A pimenta creio que fazia parte do comércio da rota da seda, que incluiria diversas especiarias. Os gregos e romanos tinham uma palavra para pimenta - "peperi" e "piper" (wikipedia), o que significa o seu uso/conhecimento.

      Quanto à palavra "cancro", parece que os gregos já relacionavam o bicho com a doença, sob o nome "carcino" (de onde vem carcinoma), o termo "cancer" em latim creio que também servia os dois aspectos.

      Abç

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  4. Caros,

    Já que falam em trocas trans-oceanicas, qui fica um relato que falta confirmar se é verdadeiro ou "heresay":
    «In 1685, Thomas Gale (famed anti-papist and coiner of the term neoplatonism), at a meeting of the relatively newly formed Royal Society, noted that Aristotle once mentioned that “sugar or honey of maple” was capable of “curing mad persons and making sober persons mad"...»

    Link: http://hilobrow.com/2012/06/30/de-condimentis-13-maple-syrup/

    De relembrar que embora tenha havido no passado, diversas tentativas de explorar o charope de acer na europa, não hexistem casos de sucesso relatados, sendo que o acer Norueguês é o mais próximo que temos na Europa, embora não produza açucar um teor de liquido suficientemente açucarado para se produzir "sugar" ou "honey of maple".
    A origem continua a ser um monopólio da costa atlântica norte americana.

    Cumprimentos,
    Djorge

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    1. Não conheço essa valência do xarope de ácer... mas parece-me curto o relato de terceira pessoa sobre o que disse Aristóteles. Ao menos, conviria tentar perceber se isso se pode ler dali, ou se resulta ainda de tradução ou transcrição enviesada.
      Complicado...
      Abraço.

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    2. Caro,

      A personagem enquadra-se no contexto de estudos Gregos, uma vez que o título que deteve, Regius Professor of Greek Cambridge University entre 1666 - 1672, atestaria algum conhecimento sobre a grécia antiga a Thomas Gale. É-lhe atribuida a autoria dos seguintes livros:
      (ed.): Opuscula mythologica physica et ethica. Graece et latine. Seriem eorum sistit pagina praefationem proxime sequens (Amsterdam: H. Wetstein 1675, auch 1688)
      (ed.): Historiae poeticae Scriptores antiqui (Paris: Muguet-Scott 1675)
      (ed.): Iamblichi Liber de mysteriis Aegyptiorum (1678)
      (ed.): Ψαλτηριον. Psalterium. Juxta exemplar Alexandrinum editio nova, Græce & Latine (Oxford: Sheldon 1678)
      (ed.): Rerum Anglicarum Scriptorum Veterum Tom. ... (Oxford: Sheldon 1684)
      (ed.): Historiae Anglicanae Scriptores Quinque (Oxford: Sheldon, 1687) (Rerum Anglicarum scriptores veteres, 2)
      (ed.): Historiae Britannicae, Saxonicae, Anglo-Danicae Scriptores XV (Oxford: Sheldon, 1691) (Rerum Anglicarum scriptores veteres, 3)
      (ed.): Antonini Iter Britanniarum

      De facto concordo que seria melhor tentar perceber onde o autor do texto no site Hilobrow.com foi buscar a fonte.

      Sobre a valência do xarope de ácer:
      É de conhecimento lato que a árvore apenas se "dá" na "mata atlântica" da America do Norte.
      Isto levanta algumas questões dificieis de encaixar na cronologia histórica tal como a conhecemos. O "isto" refere-se, claro, se o Aristotle realmente escreveu o que quer que seja sobre acer ou maple.

      Cumprimentos,
      Djorge

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    3. Creio que não me expliquei bem...
      Em diversos documentos do Séc. XIX aparecia uma referência a "corn", o que é hoje associado a milho, mas que terá um significado mais lato, como a nossa palavra "grão", e isso levou-me a uma confusão.

      O que é complicado de inferir é se os significados dessas palavras gregas, conforme Thomas Gale as teria lido, se tinham mantido, ou não.
      Sem acesso ao original, ou a outras traduções do original, que remetam a árvore para o ácer, não sei se podemos avançar muito.
      Além disso, há até confusão entre a folha do ácer e do plátano... por exemplo, é habitual julgar que a folha da bandeira do Canadá é do plátano, mas é do ácer (que também se diz "bordo")!
      O facto de se ter escolhido o ácer como símbolo canadiano é bom sinal - ou seja, poderá ter sido justamente para estabelecer uma ponte antiga.

      Por isso eu ter dito que é complicado... e ainda mais fica se não houver outra coisa mais sólida do que a afirmação num site sobre o xarope de ácer.
      Vou ver se encontro mais qualquer coisa sobre isso...

      Abraço.

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    4. Sim concordo, também embarquei nessa viagem de procurar os documentos que servem de base para o autor desse texto.

      Lendo um pouco mais nesse site, em:
      http://hilobrow.com/2011/01/19/de-condimentis-8-food-history/

      Há um pedaço de texto muito interessante, onde o autor liga a inexperiência do mundo não-americano, aquando da experimentação culinária com o corn (milho).

      "Of particular interest is Benzoni’s description of the method that the native people used for making corn tortillas. He describes their soaking it in cold water overnight, which seems innocuous enough — except it turns out they were soaking the corn in water with lye in it (as they had been doing for some 3,000 years). Lye kills the seed’s germ and makes it easier to store — and, importantly, lye makes the niacin in corn usable by humans. Without lye, a corn-based diet is likely to end in pellagra, a horrible, disfiguring disease that would affect hundreds of thousands of corn-eating newbies in France, Italy, Egypt, Spain, the American South and elsewhere.
      The natives’ corn-soaking process, called nixtamalization (from an Aztec word for the product of this process), wasn’t “discovered” until the twentieth century. It’s the process used to make hominy, tamales and tortilla flour, arepas and pupusas, among other delights. As with mole, the secret origin of corn was forgotten, or obscured."

      Abraço,
      Djorge

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    5. Parece ser boa ideia explorar pelo lado da cozinha, mas o problema é que também sabemos pouco sobre a verdadeira origem dos alimentos.
      Por exemplo, neste post temos a confusão natural entre "milhom" e "milho", ou ainda com o "sorgo", coisa em que nem os especialistas se entendem.

      Mas de facto, uma boa parte dos ingredientes que usamos hoje parece ter origem espalhada pelo mundo, e assim poderá ser proveitoso investir na procura de incongruências por esse lado.
      De qualquer forma, como refiro neste post, com as duas citações de Pinho Leal sobre a "Maçaroca" e o "Milhom", é um terreno pantanoso, porque mesmo que encontre um texto a falar disso, vão dizer que quem escreveu queria referir outra coisa qualquer.

      Abraço.

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