sábado, 10 de maio de 2014

Guerra das Laranjas e Marotos

Este apontamento resulta de várias coisas.
Primeiro, porque fui ver a razão pela qual a corte portuguesa de D. João VI teria tido que vender o diamante "Espelho de Portugal", uma valiosa pedra referida pelo José Manuel e Maria da Fonte, em comentários anteriores. 
Por esse lado, chega-se imediatamente à Guerra das Laranjas, e à perda de Olivença para os espanhóis. 
Porém, não sou daqueles que se satisfaça com um nome desses, quando a estorieta remete para um ramo de laranjeira numa carta que Godoy envia para a rainha espanhola.

Ora, quando se começa a ler outras coisas, começam a aparecer outros personagens, outras estórias, outras ligações... e rapidamente fico com uma dezena de tópicos em aberto. 
Um desses tópicos foi o dos Marotos...
Começa com um relato no jornal Ecco, que compara Maroto a Dumouriez.
Trata-se do espanhol Rafael Maroto
Ser comparado ao "traidor" Ch. Dumouriez não era nada de elogioso, já que apesar de se apresentar como defensor da França Monárquica, exerceu funções importantes na França Revolucionária, mas em segredo colocava-se ao serviço da Inglaterra, onde se acabou por exilar.
Tal como o maneta general Loison ficou entre nós com a expressão associada de "ir para o Maneta", fui ver até que ponto ia a marotice de Maroto.

Maroto aparece discretamente na invasão de Godoy, da Guerra das Laranjas, mas o seu relevo será no movimento carlista, um movimento semelhante ao miguelismo em Portugal. As guerras entre liberais e absolutistas ocorreram praticamente ao mesmo tempo em Portugal e Espanha, porque, como se sabe, estas coisas aos pares compram-se mais barato. 
Vejamos as diferenças... 
- Em Portugal, a guerra civil seria entre o tio absolutista e a sobrinha liberal.
- Em Espanha, a guerra civil seria entre o tio absolutista e a sobrinha liberal.
Pois, não é por aqui que vemos as diferenças. Ah! Os nomes fazem toda a diferença:
- Em Portugal era entre Miguel e Maria filha de Pedro.
- Em Espanha era entre Carlos e Isabel filha de Fernando.
Quantas vezes houve guerras entre tios pretendentes e sobrinhas legítimas? 
Que me lembre, bem conhecidas, foram apenas estas.

Claro que estou a forçar a situação - retirando as semelhanças, as coisas ficam diferentes. Não é sempre assim?
Bom, mas uma das diferenças é que as guerras carlistas se prolongaram - houve 3 guerras. 
A segunda guerra carlista começa em 1846, com novos confrontos entre absolutistas e liberais.
Ora, em 1846, em Portugal, dava-se a revolta da Maria da Fonte, que levou a novos confrontos entre absolutistas e liberais. 
Aos pares é mais barato... mas não há duas sem três. 
E houve uma terceira guerra carlista, em 1872, mas como não há regra sem excepção, a tentativa de revolta de Saldanha tinha ocorrido em 1870.

Esta ligação ibérica não era inocente porque havia mesmo a Quádrupla Aliança, com o direito da Inglaterra e França intervirem em Espanha e Portugal. A ligação era forçada pelo exterior... porém o detalhe de ter coincidido entre tios e sobrinhas já é algo menos fácil de entender. O facto da França, completamente derrotada com Napoleão, ser depois uma útil aliada dos ingleses, sem dívidas de guerra (ao contrário dos estados ibéricos, vencedores), também é algo muito engraçado.
Também não deixa de ser engraçado que, após Waterloo, os estados ibéricos tinham sido forçados a independências das suas colónias americanas. Umas mais naturais que as outras... e como Waterloo foi relembrado em 1974, acabavam-se de seguida as colónias portuguesas em África.
Acabaram-se todas as colónias europeias na América? Quase todas... o Canadá era inglês, com tolerância à francesa Québéc. As restantes colónias, africanas e asiáticas, acabariam só depois da 2ª Guerra, e realmente Portugal em 1974 teimava ainda em não perceber isso. 
Todas? Bom, nem por isso, não é? Franceses e ingleses entenderam-se em Waterloo. Os argentinos perceberam isso nas Malvinas. Havia ainda um amor explosivo nos atóis polinésios. Amor à distância, de difícil separação. E depois do amor?

Voltamos aos Marotos.
Bascos e Catalães apareceram no conflito espanhol, do lado carlista, e Maroto jogou um papel ambíguo, dizendo-se carlista, mas sendo mais hábil a executar os seus rivais generais carlistas do que os inimigos generais liberais. Essa era a razão da tal comparação com Demeuriez, era visto como um traidor infiltrado.
Mereceria isso apenas o epíteto de "maroto"?
Pois, não me convenceu...
Procurei um pouco mais, e encontrei uma referência mais antiga, do Séc. XVI, a uns versos de Maroto, que aparentemente eram algo marotos, satirizando impropriamente passagens bíblicas. 
Quem era este Maroto? 
Era apenas Maroto na transcrição ibérica, o seu nome era Clément Marot, e ainda que seja hoje bem menos conhecido que Rabelais, os seus versos eram muito populares, dado esse carácter profano e humorado.

                    (...) não se ouvia tratar de outro, senão das novelas e contos de "Rabeles", escritos em derisão da honestidade das freiras, e da vida dos religiosos, e em desprezo da Igreja, das suas cerimónias, e das mais coisas sagradas; nem se cantava pelos campos senão os versos de Maroto, plenos também de impiedade, e desvergonha: e assim não foi muito difícil abrir as portas da heresia. Porque estes autores foram imitados por outros (...)


Passamos finalmente à Guerra das Laranjas.
Se Rafael Maroto militava nas tropas espanholas que entraram em Olivença, o personagem principal dessa história parece ser Manuel Godoy.
O ministro espanhol Manuel Godoy, vencedor da Guerra das Laranjas, 
olha a amassada bandeira portuguesa.

Parece ser... porque o nome "Guerra das Laranjas", associado à missiva de Godoy para a "amada rainha", mãe de Carlota Joaquina, parece nem ter sido muito comum no Séc. XIX.

O Ramo dos "Laranjas" tem outro significado.
Qual?... Quando temos uma caricatura de Gillray, as coisas ficam mais simples:

O cupido holandês, repousado nas fatigas de plantação dos ramos, é Willem V, da Casa Oranje-Nassau.
A plantação de muitas laranjinhas similares, vemos passar também por diversos ventres campesinos. 
Bom, mas o principal problema de Willem V foi a França de Napoleão e em 1795 acabou por fugir para Inglaterra. 
A execução de Luís XVI levou a uma declaração de guerra das monarquias europeias contra a França.
Portugal, apesar de não ter exército apto, desde a política do Marquês de Pombal, juntou-se à declaração de guerra, e com a Espanha participou na tentativa de invasão do Rossilhão, a Catalunha francesa.
Só que os tempos eram outros, e os amigos precisavam de pensar em si e em dinheiro.
Como a campanha do Rossilhão não resultou, os espanhóis de Manuel de Godoy, ministro de Fernando VII,  ficam aliados dos franceses, num tratado assinado em Aranjuez em 1801.
O sucesso militar de Napoleão veio na medida das confusões, querendo arrumar os imóveis da Europa noutra disposição. Havia distribuição de reinos, não só pelos familiares, e em particular na Itália que tinha invadido inventou o Reino da Etrúria... para lembrar os Etruscos.
Isso não diria respeito a Portugal, mas pelo Tratado de Fontainbleau, fez nova arrumação e decidiu passar o Rei da Etrúria, um Carlos Bourbon, para Entre-Douro-e-Minho, depois denominada (ao estilo da águia romana afrancesada) Lusitânia Setentrional. 
Bom, estes eram os planos que Napoleão tinha acordado com Godoy, que ficaria com o Principado dos Algarves:
 De acordo com o plano napoleónico a Lusitânia Setentrional - do Porto ao Minho, 
ficaria com as cores do Rei da Etrúria (curiosamente, o azul e branco listado do FCP).

O falhanço das invasões napoleónicas em Portugal, não concretizou nada disto, ideias que parecem ridículas, mas a dezena de anos de hegemonia francesa na Europa durou o suficiente para ser levada muito a sério. Quando a família real migrou para o Brasil em 1808, o Marquês de Abrantes ainda foi prestar vassalagem a Napoleão, tendo ficado retido com o filho em França até final do conflito. O Marquês de Abrantes passou a ser Junot, o general invasor.

A Guerra das Laranjas passa-se antes, em 1801.
Willem V está exilado na Inglaterra e procura recuperar a Holanda dominada já pelos franceses.
Há uma tentativa de reconquista do território em 1799, uma invasão Anglo-Russa comandada pelo Duque de York, no quadro da Segunda Coligação, onde a Espanha aparecia agora aliada da França.  
Com a mudança espanhola, Portugal ficava encurralado, e recusando a captura dos navios ingleses, ficava pronto a uma invasão conjunta de Espanha e França, comandada pelo próprio Manuel Godoy. 
Essa exigência naval era resultado da ameaça inglesa, após a investida na Holanda. A esquadra espanhola tinha sido destruída antes, em 1797, numa das várias Batalhas no Cabo de S. Vicente, depois a esquadra francesa será derrotada em 1805, em Trafalgar.
Por isso o problema não resultou das laranjas de Godoy, mas mais de Orange, de Willem V de Orange.

Bom, o resto é história, a que não tenho muito a acrescentar... Até que a Inglaterra decida intervir, Portugal dada a sua fragilidade militar herdada do Marquês de Pombal, vê-se forçado a aceitar a perda de Olivença, a perda de parte da Guiana, e de muito dinheiro e joias - inclusivé o tal "Espelho de Portugal", para assinar uma paz com os espanhóis. 
Há certamente muitíssimos mais detalhes, que me escapam, nem me interessam, num período complexo. 
Porém convinha aqui esclarecer este detalhe, mais porque se reporta a um período que antecede as invasões napoleónicas, e que é normalmente ignorado. O "espelho de Portugal", tivesse o que tivesse, foi apenas uma jóia perdida, entre tantos outros despojos, nomeadamente milhares e milhares de vidas que caminharam para um espelho do valor potência militar, valor efémero, mas pretendido eterno... sempre um espelho de morte.

11 comentários:

  1. Re: O "espelho de Portugal", tivesse o que tivesse, foi apenas uma jóia perdida

    FOI MAIS QUE ISSO...

    Bom resumo dos acontecimentos relacionados com a perca do espelho de Portugal, pois como bem diz o Alvor foram milhares e milhares de vidas que passaram para o outro lado do espelho a chicote ou por acreditarem em Portugal.

    Mas a razão dos males dos povos deste continente Europeu sempre vieram da França, católica, monárquica ou republicana é colonizadora e imperialista, França (país chicote) que nunca desistirá de arranjar meio de submeter os povos fracos, fá-lo de maneira fina e mascarada de boas intenções, e para prova é de ler livro do Philippe Legrain ex conselheiro do português presidente da Comissão Europeia:

    (...) É preciso lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos bancos franceses (...) Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal (...) Se pensarmos bem, o que a Alemanha, a Comissão e as instituições da UE em geral fizeram foi abusar do facto de Portugal e Grécia quererem desesperadamente ser europeus e estarem aterrados com o que lhes poderia acontecer se saíssem do euro e por isso puderam impor-lhes condições muito injustas.
    http://www.publico.pt/economia/noticia/ajudas-a-portugal-e-grecia-foram-resgates-aos-bancos-alemaes-1635405

    Isto dum povo perder o seu espelho o resultado é que tem que se ver nos outros ao espelho, e quando não se tem espelho quer-se desesperadamente ser-se alguma coisa, espanhol francês ou europeu porque português já não pode ser pois não tem o seu espelho para ver o que é!

    Quem tentar dar o espelho perdido aos portugueses que aprenda a calar a boca, eles foram bem reeducados a não sonharem nem terem ideais.

    Aprendi a lição.

    Cumprimentos
    José Manuel

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    1. Muito bem, José Manuel.
      Esta frase:
      Isto dum povo perder o seu espelho o resultado é que tem que se ver nos outros ao espelho, e quando não se tem espelho quer-se desesperadamente ser-se alguma coisa, espanhol francês ou europeu porque português já não pode ser pois não tem o seu espelho para ver o que é!


      ... é do melhor que já li.

      Não chegaremos à verdade, sem paciência, meu caro.

      Abraços.

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  2. Os ourives portugueses de Afonso Henrique foram ensinar a sua técnica de cunhar moedas em ouro à corte francesa, é só um exemplo...

    Depois os portugueses foram perdendo canhões de carregar pela culatra, relógios, máquinas voadoras, instrumentos de medida do Pedro Nunes etc.

    Ou melhor houve uma “missa de raposas” a mandar para a fogueira tudo o que fosse indicio da tecnologia em mãos lusas de civilização desaparecida antes da última era glacial.

    Relógio de parede na Bíblia dos Jerónimos para D. Manuel
    http://4.bp.blogspot.com/-i_XO5xRdZWQ/U3qjne0QedI/AAAAAAAAAxY/xrsQMpTcBU8/s1600/Rel%C3%B3gio+de+Parede+na+B%C3%ADblia+dos+Jer%C3%B3nimos+para+D.+Manuel.JPG

    Bons relembra momentos, cumprimentos, José Manuel CH-GE

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    1. Muito bom, José Manuel, e repare que a ampulheta parece esconder um eventual pêndulo.

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  3. A Guerra das Laranjas foi na verdade a primeira Invasão Napoleónica, através dos seus subservientes espanhóis. Houve 4 portanto. Engraçados os Espanhóis que se metem de cóqueras para os Franceses, inclusive sentam no trono um francês irmão de Napoleão e depois quando se arrependem lá têm de ir os Portugueses em seu auxílio expulsar os franceses. Ainda têm o cinismo de não devolver Olivença!

    Quanto ao Espelho de Portugal, só se foi outro porque o primeiro que houve foi parar a França em outros tempos e de outro modo, com a coincidência de um cenário de uma possível perda de independência Portuguesa. Deve ser um pedaço de terra bem apetecível este...

    https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:t27YHadguToJ:https://pt-br.facebook.com/portugal.gemas/posts/10152012235153720+&cd=7&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=pt

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Joias_da_Coroa_Portuguesa

    Ab

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    1. De acordo, e a participação portuguesa no contingente inglês que actuou em Espanha foi significativa, na Batalha de Vitória e na Batalha dos Pirinéus:

      https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Vit%C3%B3ria

      https://en.wikipedia.org/wiki/Battle_of_the_Pyrenees

      apesar do contingente inglês ser o maior, o número de tropas portuguesas era próximo do número de tropas espanholas.
      Mas convenhamos, não fomos lá ajudar os espanhóis, mas sim derrotar os franceses... e quanto às fatias do bolo territorial, talvez se volte a falar de Olivença - quando Gibraltar for espanhola, e Ceuta marroquina... ou ainda, se voltássemos atrás na história e fosse respeitado o Tratado de Tordesilhas, o Brasil perderia quase metade do território.

      Sobre o "Espelho de Portugal", conforme disse neste postal, soube dele através de comentários do José Manuel de Oliveira, e da Maria da Fonte, nunca tinha ouvido falar antes dessa jóia.
      Poderia ser um nome usado não para uma pedra particular, mas sim para a sua função, notando que à época de D. João V, havia outro "Espelho de Portugal":
      Santo António

      Abç

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  4. Em nossa defesa Olivença tem uma pequenina diferença. O Acordo de Viena em que Espanha se compromete a retirar e devolver o território a Portugal, coisa que aliás que nunca honrou. Penso ser o único dos territórios que mencionou que é de jure de um país e de facto de outro. Quando Espanha perder a Catalunha e quiçá outra qualquer província autónoma, talvez depois as autoridades Portuguesas tenham a coragem de exigir o que nos pertence, já que por enquanto se acobardam.

    Sim, o Espelho de Portugal também me era totalmente desconhecido.

    Ab

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  5. Como faço parte do grupo aqui deixo os respectivos links para quem quiser aderir ou informar-se.

    http://www.olivenca.org/index.htm

    https://pt-pt.facebook.com/AmigosDeOlivenca/

    Ab

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    1. Já viu o mapa de Portugal, incluindo Olivença?

      https://pt.wikipedia.org/wiki/Oliven%C3%A7a#/media/File:Oliven%C3%A7a_location.PNG

      Obtendo Olivença, ocorre-me que depois lhes fecham a maternidade e dizem-lhes que podem ir ter os filhos a Badajoz. Tem sido mais ou menos esse o cuidado que Portugal tem tido com as regiões da Raia, ou com as regiões interiores, de um modo geral.
      Não seria pior cuidar que as populações fronteiriças não achassem melhor ideia estar em Espanha. Tanta auto-estrada, e se quiser ir de Vila Real de Santo António a Bragança, praticamente tem que ir a Lisboa. Uma alternativa que demora quase o mesmo tempo (perto de 7 horas - Google Maps) é ir por Sevilha e Salamanca, mas é bem capaz de ser muito mais barata.

      Abraço.

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    2. Sim já vi e até acho que deveria aparecer em todos os mapas oficiais.
      Na falta de cuidado de Portugal para com esta gente, concordamos mas isso pode e deveria ser alterado e melhorado. É um território que tem de voltar à Pátria Mãe.

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