sexta-feira, 10 de junho de 2011

Nova Zimla

Já fizemos várias vezes referências a António Carvalho da Costa, desde o seu Tratado de Astronomia à mais conhecida Corografia Portugueza. Não tínhamos ainda falado do seu Compendio de Geographia, de 1686, e vamos começar por fazê-lo a propósito de Camões!

Há mais de um ano, quando falámos de Lampetusa, a propósito da Carta do Atlântico Norte, e mais recentemente sobre o Trópico Semicapro, invocámos as descrições geográficas constantes nos Lusíadas, como peça não negligenciável de informação.
Curiosamente, fomos agora encontrar essa mesma associação no Compêndio de Geografia de Carvalho da Costa.
O matemático e cosmógrafo jesuíta terá sido das últimas pessoas a evidenciar um claro domínio de um conhecimento multidisciplinar em Portugal, sendo notório que após o Tratado de Methuen e a sujeição a um constante desequilíbrio comercial, a única produção que saiu destas praias foi essencialmente a literatura que expressava o atrofiamento cultural.
A obra de Carvalho da Costa já é só importante a nível nacional, mostrando que Portugal não estava ainda fora do desenvolvimento europeu, e poderia ter recuperado... caso a Restauração tivesse sido mesmo de verdadeira independência, e não tivesse depois ficado toda a Ibéria sujeita a ditames comerciais na nova ordem mundial de Vestfália, especialmente sujeita à protecção inglesa ou veneração francófona... sendo as duas faces da mesma moeda.

Para descrever a parte setentrional da Europa, Carvalho da Costa cita o Canto III (§8) dos Lusíadas, que começa assim:
Lá onde mais debaixo está do Pólo, Os montes Hiperbóreos aparecem
(...)
Que a neve está contino pelos montes, Gelado o mar, geladas sempre as fontes.


Fazemos apenas um parêntesis para referir mais um caso de adulteração corrente... "contino pelos montes" é transcrito "contido pelos montes" quando é obviamente "contínuo pelos montes"! Os fonemas sobrepõem-se sempre à sua escritura posterior...

Esta citação é colocada exactamente depois de dizer "o qual vai também correndo pela parte do Norte para o Oriente direito à Nova Zembla, da qual parte Boreal de Europa fala o nosso Poeta (...)"
Ao descrever o Oceano Hiperbóreo (hoje dito Ártico) até Nova Zembla, parece pretender que o Mar de Barents já teria sido invocado nos Lusíadas. Ora esse conhecimento e descobrimento é atribuído depois a Barents... algo que é contraditório com a datação do mapa de João Lavanha, Theatrum Mundi, onde aparece Nova Zimla e toda a costa norte da Rússia.
Em particular, nesse mapa, datado entre 1597 e 1612, aparece claramente o Rio Obi (Ob ou Obio) e o Rio Lena até ao Lago Baikal, coisa impossível, se atendermos à historiografia oficial que coloca este descobrimento do Lena em 1633 e a origem do nome por Elyu-Ene, na língua local... Porém, talvez haja uma estória mais simples, com um navegador leiriense a lembrar-se do seu rio Lena, e assim a explicar esse registo no muito anterior mapa de Lavanha.
Pilares do Rio Lena, Sibéria Oriental 

É mais ou menos claro que há pormenores estranhos em toda esta história, e havendo uma "Nova" Zembla seria de procurar a Zembla (em russo Zemlya é Terra) original... coisa que parece ter motivado o escritor russo Nabokov na sua obra Pale Fire, identificando uma Zembla imaginária, uma Ultima Thule com um rei colocado na posição xadrezística de Solus Rex (o rei solitário pode não levar à vitória, mas pode forçar o empate por impasse ou abafamento).

No entanto, se seguirmos a designação Zimla, no mapa de Lavanha, vamos parar aos montes da Jordânia... 
Como é óbvio, Nova Zimla, Nova Zembla, ou Novaya Zemlya, já seria conhecida de pescadores russos.. no entanto estes não teriam a chancela da Cúria ocidental para reclamar tal descobrimento, e assim toda a parte da costa norte russa, agora chamada Sibéria, e antes chamada Tartária, era considerada desconhecida. Por aqui chegamos, mais uma vez ao Estreito de Anian, hoje dito de Bering. Diz Carvalho da Costa (pag. 80):
Mar Tartárico que fica ao norte da Tartarea & confina com a Nova Zembla da parte de Leste, comunicando-se com o Oceano mais Ocidental da América, & com o mar, que fica ao Norte do Japão pelo Estreito de Anian, se é que há tal Estreito dividindo Ásia de América, como se descreve nos mapas, o que os Chinas negam & o negava o nosso Joseph de Moura, que tinha feito grandes navegações.
Com alguma prudência, Carvalho da Costa refere o Estreito, que ficaria reservado a Bering, várias décadas depois, porque o nome Anian estava envolto na proibição de que já falámos várias vezes. 
É curioso a referência à negação dos chineses (sobre Joseph de Moura, não se tratando certamente de Bastião de Moura, não encontrámos registo)... Essa negação chinesa talvez manifestasse o receio de explorações sistemáticas que ameaçassem Fusang.

Quanto à Tartária, a história do Império Tártaro acabará definitivamente com Pedro, o Grande.
Em 1686, quando o padre Carvalho da Costa escreve, pode ainda referir (pág.133): 
"A segunda parte da Ásia é aquela que está sujeita ao Grã Cão Imperador dos Tártaros, cujos fins pela parte do Sul são o mar Cáspio, o rio Jaxartes, o monte Imaus [Himalaias]; pela parte do Oriente e Setentrional o mar Oceano; e pela parte do Ocidente o reino já dito da Moscóvia."
É pelo reino da Moscóvia que todo o Império Tártaro cairá... se os gregos chamavam Tártaro ao inferno, considerar que a conquista russa teve combates isolados com tribos nómadas, é capaz de ser uma visão simplista... poderá ter sido um inferno do qual não subsistem registos. Na altura, dizia ainda sobre a quinta parte da Ásia: "contém o mais vastíssimo Império da China, sujeita agora ao Tártaro Oriental, (...)". Ou seja, a China em 1686 estava sujeita aos Mongóis/Tártaros, pelo domínio da dinastia Qing, de etnia Manchu (Manchuria), que em 1644 substituíram os Ming no controlo da China.

O Grã Cão Tártaro estava colocado ao mesmo nível do Grão Turco Octomano(*), enquanto Imperador, muito diferente do Reino da Pérsia do qual dizia "hoje governa-se pelos Sábios". Já aqui referimos que a configuração da Sibéria, pela anterior ligação do Mar Cáspio ao Oceano Antártico, pela bacia do Rio Obi e Mar de Aral, teria significado uma evolução bem diferente.
Tal como António Galvão, também Carvalho da Costa menciona a entrega de Índios ao romano Quinto Metelo pelo Rei da Suécia. Há uma diferença, que não nos espanta... ele diz "Rei da Suécia" e não "Rei da Suévia", conforme já explicámos houve a confusão da Alemanha Escandinava.(**)
Diz mais, citando Plínio, "que toda esta praia para o Nascente da India até ao Mar Cáspio foi navegada pelas armadas dos Macedónios, imperando Seleuco & Antíoco".
Tal navegação, da India ao Cáspio, só é compatível com extenso mar, que depois recuou e deu lugar a estepes, a tundras e a desertos. É dessa região de navegação macedónia, de Seleuco, que surgirão os turcos seleucidas, que alguns escrevem seljucidas.

A ligação ao Norte teria ocorrido por essa passagem, do Cáspio ao norte do Oceano, em que o limite depois se confundiu num rio Tanais. Este rio provável confluência do Don com o Volga, formaria um mais alargado Mar de Azov, então chamado Lagoa Meotis, e estava ladeado pelos Urais, então chamados Montes Rifeus, assim descritos por Camões (Canto III§7):


Da parte donde o dia vem nascendo, Com Ásia se avizinha; mas o rio
Que dos montes Rifeios vai correndo, Na alagoa Meotis, curvo o frio,
As divide: e o mar que, fero e horrendo, Viu dos Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Tróia triunfante, Não vê mais que a memória o navegante.

A primeira parte desta oitava é citada por Carvalho da Costa, mas é ainda interessante o recuo que Camões vai fazer sobre uma guerra entre Citas e Egípcios, que nos levará ao próximo texto.

(*) Nota 1: Escrevemos "Octomano" e não Otomano, pois assim escreve Carvalho da Costa, e aqui o simples "c" passa a dar um interessante significado geométrico octogonal à palavra.
(**) Nota 2: Acrescentamos a menção na estrofe 10 (ainda do Canto III), que fala justamente na Escandinávia ilha!

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