quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Peças dos Painéis de S. Vicente (2)

Este texto surge na sequência da interessante troca de comentários com Clemente Baeta, a propósito dos Painéis de S. Vicente, e segue também dos textos:

Quando escrevi a hipótese dos Painéis retratarem a questão da sucessão de D. Jorge após a morte de D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, considerei várias coisas, muitas das quais já nem me lembro. Em compensação, hoje tenho também mais informações. 
Há um site excelente, paineis.org que tem múltipla informação, e avança outras hipóteses. Longe de criticar quem questiona, interessaria que houvesse outros assuntos fundamentais questionados, e não sempre os enigmas "mais popularizados".
Porém, como é óbvio, tenho múltiplas razões para continuar a preferir a teoria de 1491-92, para a execução dos painéis. Se não tivesse, já teria avisado... 
Fica aqui uma síntese, procurando agora mencionar aspectos das outras teorias correntes.


1) Datação pelo quadro 
A datação habitual dos painéis era 1470-80. As análises de datação anteriores tinham sido inconclusivas, até que em 2001 leu-se o número 1445 numa bota. Foi então feita uma análise dendrocronológica às pranchas de suporte que terão revelado ser madeira colhida no Báltico entre 1442-52 (cf. Nuno Crato). 
Cientificamente, isso determinaria uma datação mínima (terminus post quem) e nada diz sobre a datação máxima (terminus ante quem). Por isso, pareceu-me natural fruto de entusiasmo ver pessoas que divulgam rigor esquecerem alguns detalhes, e apressarem-se numa conclusão de datação.
Essa data, como se lerá hoje na wikipedia, colocaria a pintura portuguesa na vanguarda máxima da pintura europeia, saindo do zero, e voltando ao zero... pois não se conhece mais nada de semelhante no Séc. XV português. 
Isso não é impossível, mas seria de um impressionante auto-didatismo.

Sobre a dendrocronologia. Como toda a ciência, os sistemas de datação assentam em hipóteses que não devem ser esquecidas. Um dos problemas é que os processos são calibrados aceitando mudanças "convenientes". Para dar um exemplo, imagine-se que um novo sistema de datação atribuía 1000 anos ao Parténon... ninguém iria duvidar da idade do Parténon, mas sim do sistema de datação! É assim que as coisas funcionam, por isso os sistemas de datação não são ciência pura, são ciência contaminada com convicções prévias.
No caso da dendrocronologia assume-se um crescimento regular dos anéis em anos bons, e pior em anos maus, devido ao clima, ainda afectado pelos ciclos de manchas solares (11 anos). É claro que isto esquece múltiplos factores, que têm a ver com o crescimento da árvore em particular, por exemplo, doenças, insectos, parasitas, etc. 
Assumindo que se tem um registo do clima em todos os anos, pode reduzir-se a procura num intervalo, e ver quando o registo de anéis corresponde ao registo do clima. Obtida a concordância, e como normalmente os anéis crescem um por ano, pode ter-se uma data precisa.
No entanto, isto funciona se: (i) o registo de clima for fiável ano-a-ano, (ii) o número de anéis for adequado, (iii) haver uma outra datação que reduza as possibilidades. 
Os problemas em (i) podem ser reduzidos por calibração (com datas assumidas), e os problemas em (iii) podem ser reduzidos por informação que reduza o intervalo de possibilidades.
Resta (ii), o número de anéis - o que pode ser complicado em tábuas. As tábuas são cortadas na vertical, habitualmente nas partes mais exteriores - ficam poucos anéis, e é difícil "adivinhar" quantos anéis há até atingir o interior (ou o exterior).
Por exemplo, pegando na imagem do link que dei acima, identifico o que seria o perfil de um típica tábua extraída do interior (rectângulo vermelho), e que apenas conteria informação de alguns anéis - o resto tem um pouco de ciência e um pouco de fé... adivinhar partindo da imagem a negro:
  

Ainda assim, admitindo que as tábuas tinham nós suficientes para uma datação precisa, surge o terminus ante quem, que é como quem diz, para um quadro que é suposto durar séculos, ninguém vai pintar sobre madeira fresca... convém dar alguns anos para a maturação da madeira. Seria natural que as madeiras mais antigas se destinassem a quadros mais importantes.

Portanto, a dendrocronologia, que ainda tem muito para provar a si própria, não prova nenhuma datação do quadro, conforme foi pretendido - no máximo arrisca uma data para o derrube das madeiras.


2) Datação pela arte
A pintura de Nuno Gonçalves é importante, independentemente de se datarem mais ou menos anos, e ganhará maior importância admitindo o que representa...
É curioso que a madeira das pranchas tenha vindo do Báltico, porque era também essa a origem dos quadros dos primeiros pintores holandeses. E nesse aspecto convém referir os Van Eyck, pois o "Retábulo do Cordeiro Místico" (1432) tem um Adão e uma Eva com um realismo surpreendente para a data de execução. Este caso de "antecipação" pode favorecer uma tese de 1445, mas a grande diferença, é que no caso da pintura holandesa não é caso único, não surge do zero, nem volta ao zero... 
Noutras paragens, temos outros pintores de vanguarda na técnica, por exemplo, um Konrad Witz (1444) ou um Jean Fouquet (1450), mas é habitual considerar que a maior influência europeia acabou por surgir de Itália. 
Ora é da escola de Squarcione, que temos o notável Andrea Mantegna, que tem um admirável S. Sebastião (c. 1455-60), que aqui comparamos com o "S. Vicente" atribuído a Nuno Gonçalves.
 
Andrea Mantegna (S. Sebastião, 1455-60); Nuno Gonçalves (S. Vicente)

Há várias semelhanças e várias diferenças, mas são as semelhanças que me colocam a hipótese de relação entre as duas composições (p.ex. posição na coluna e chão geométrico). O quadro de Nuno Gonçalves não tem paisagem, nem uma "ilusão"(?!) de Mantegna, com a nuvem:
no S. Sebastião de Mantegna

Mantegna irá fazer outros S. Sebastião (ver) com características diferentes (e se há mais "ilusões" escondidas, não as encontrei mencionadas). Não é de excluir que o atelier de Mantegna tenha influenciado Nuno Gonçalves. No reinado de D. João II havia uma ligação "instrutiva" com Veneza, com Florença e os Medici, conforme vemos na correspondência de D. João II, e essa era uma zona de influência de Mantegna.

Há ainda uma datação pelo vestuário. Não sei quase nada sobre o assunto, mas li nessa altura um artigo de Dagoberto Markl que mencionava os detalhes, praticamente arrasando uma datação de 1445 ou similar.


3) Datação pelos personagens
Vamos aceitar que no 3º painel, dito do Infante, está uma família real, ou seja, Rei, Rainha, e um jovem Príncipe. 

As possibilidades para o jovem príncipe, admitindo uma idade entre 8 e 12 anos, reduzem a datação:
 (i) Afonso V (n. 1432) - datação: 1440-44;
(ii) João II (n. 1455) - datação: 1463-67;
(iii) Afonso (n. 1475) - que morre em Santarém, datação: 1483-87;
incluo uma quarta hipótese, porque D. Jorge é colocado como pretendente ao trono após 13/7/1491:
(iv) D. Jorge (n.1481) - filho de D. João II, datação: 1491-93.

Repare-se que só este aspecto exclui a hipótese tradicional 1470-80.

Falta agora juntar o par real, ao príncipe. As hipóteses de "rei" e "rainha" seriam:

(i) -- D. Pedro (n. 1392), regente, ou uma invocação de D. Duarte (já morto, 1438).
----- D. Leonor de Aragão (viúva exilada, n. 1402).

(ii)-- D. Afonso V (n. 1432), com 23 anos em 1465.
----- D. Isabel de Coimbra (n. 1432, mas morre em 1455)

(iii) - D. João II (n. 1455), com 30 anos em 1485.
------ D. Leonor (n. 1458), com 27 anos em 1485.

(iv) - D. João II (n. 1455), com 36 em 1491.
------ D. Leonor de Viseu (n. 1458), com 33 anos em 1491.

Aqui há um problema de estarem todos vivos à data de execução. 
Em caso afirmativo, exclui-se a hipótese (ii), e a (i) também fica complicada, dado que D. Duarte está morto, e caso fosse D. Pedro, teria cerca de 50 anos. Não é muito verosímil também a inclusão de D. Leonor de Aragão entre 1440-45, pois estava excluída do reino. Excluímos a hipótese de ser a mulher de D. Pedro, pois passaria por provocação régia, face à sucessão do sobrinho, Afonso V. 
Isabel de Coimbra e Afonso V em 1445 tinham 13 anos, por isso associá-los ao par real, é impensável (em 1455 já seria possível, mas o príncipe, D. João II nasce nesse ano e a mãe morre).

Os rostos do rei e rainha são de adultos, podendo estar na casa dos 20 ou 30 anos, dificilmente muito  mais que 40.
Ou seja, admitindo que se trata de uma família real, e que estão todos vivos, as únicas possibilidades restantes são (iii) e (iv) - ou seja, D. Leonor de Viseu e D. João II. 
Relativamente à fisionomia, talvez se ache mais natural a hipótese (iii), colocando os reis na casa dos 30 anos, mas nada impede as idades da possibilidade (iv).


4) Conclusões da datação dos personagens
Por uma simples inspecção dos personagens, admitindo que se trata de uma família real viva, ficamos reduzidos aos reis D. João II e D. Leonor.
É claro que há outras possibilidades - poderia nem tratar-se de uma família real, poderia ser outra nobreza, mas isso é inverosímil, dado todo o contexto envolvente. Os dois elementos principais poderiam não ser rei e rainha, haverá muitas possibilidades, mas também não convincentes.

Também poderiam não estar todos vivos, e isso é uma possibilidade que iremos considerar, mas não para estes elementos em destaque.
É evidente que tratando-se do reinado de D. João II, o Infante D. Henrique já estaria morto.

Um ponto que me parece fulcral é não forçar o global aos detalhes. Os detalhes não podem condicionar o global a algo inverosímil, podem é ajudar a encontrar o contexto correcto. Mas, no final, todos os detalhes devem ser colocados no seu lugar, ou seja, devem aparecer como detalhes, e não como peças principais. 
Não faz sentido colocar a obra como um enigma do pintor. Ainda que o pintor possa ter colocado enigmas no quadro, o quadro fez sentido à época para quem o viu, e é esse aspecto global que interessa encontrar primeiro. Só depois disso é que faz sentido procurar mensagens que o pintor quis deixar implícitas.

Quanto à datação artística, a menos que queiramos admitir um pioneirismo autodidacta de Nuno Gonçalves, tudo aponta para uma influência externa em Portugal. Poderia ter vindo de Konrad Witz, por razão das ligações de Afonso V com a Dinamarca, por volta de 1470, também poderia ter vindo através de Jean Fouquet, ou da Escola de Avignon, pela Borgonha, da Duquesa D. Isabel (filha de D. João I).
No entanto, encontrámos mais semelhanças com Andrea Mantegna, conforme já referimos. Isso por si só não é determinante, mas justifica a possibilidade de influência italiana, razoavelmente posterior a 1460. Não exclui a hipótese (ii) de 1465, mas faltaria justificar tão rápida aquisição de competências.
As semelhanças com Mantegna e as relações de D. João II com Florença parecem apontar para as datas (iii) ou (iv).
Para além disso, vemos que uma datação anterior a 1480, deixaria o seguimento da pintura portuguesa com um enorme espaço em branco. Aí a datação de 1491-93 é mais convincente no sentido da ligação a Grão Vasco, por exemplo.

Sobre a datação dendocronológica, ainda que as tábuas sejam mais antigas, permitindo uma datação mínima de 1442-1452, isso não condiciona a datação máxima, havendo até razões para considerar tábuas mais antigas, que já tivessem resistido a uma prova do tempo.


5) Mortos/Vivos
Quando se coloca uma datação à volta de 1465, ou posterior, temos o problema de estarem mortos o Infante D. Henrique e a Rainha D. Isabel de Coimbra.
Há alguma característica comum que permita identificar que a Rainha e o Infante estão mortos?
Não seria estranho, diria mesmo profano, misturar vivos com mortos, sem nenhum traço distintivo?
À época, creio que sim, e não conheço nenhum exemplo contrário, mesmo nos séculos seguintes.

Por isso, só escrevi a hipótese quando encontrei um factor comum que poderia distinguir mortos de vivos, à data de execução do quadro. 
Esse factor comum seriam as mãos unidas, como encontramos frequentemente nos túmulos antigos.
Poderá pensar-se que uns estão a rezar e outros não, mas não há razão aparente para só alguns estarem em sinal de devoção. 
Há sim uma forte razão para distinguir os que já pereceram, através da evidência das mãos unidas.

Seguindo as razões acima mencionadas, torna-se praticamente hipótese única ser um quadro do reinado de D. João II. 
Poderia ter D. Afonso ou D. Jorge como príncipes, pensados futuros reis.
Iremos abordar essa questão depois.
Primeiro vamos ver se é possível dar sentido aos restantes personagens do quadro, neste contexto.


6) Infante D. Henrique 
A identificação do Infante D. Henrique é erradamente tida como óbvia, porque é a única familiar a todos nós. Porém, se tivessem sido divulgado outras caras como sendo o Rei X, a Rainha Y, etc... então todos os rostos seriam familiares e ninguém colocaria sequer dúvidas sobre o quadro.
Isto é instrutivo para perceber como funcionamos por via da educação... aceitamos coisas como óbvias, sem pensar porquê.

Ora, aquela imagem do Infante D. Henrique foi popularizada durante a ditadura de Salazar, que praticamente a colocou "imortalmente" no  Padrão dos Descobrimentos, na liderança da epopeia.
Por isso, há conotações políticas actuais, e não completa objectividade, em assumir que aquela se trata da efectiva imagem do Infante D. Henrique.
Isso não foi feito com outras imagens dos Painéis, porque se tornara evidente que aquele era o Infante, pela sua semelhança com a imagem existente na Crónica da Guiné de Zurara. Colocamos aqui uma breve imagem que mostra a coincidência de rostos:


Por isso, a utilização da imagem do Infante D. Henrique não foi nenhuma escolha fortuita, foi baseada numa exacta coincidência com uma imagem de outro documento, que continha ainda a sua divisa "talant de bien faire".
Acontece que se duvidou recentemente da autenticidade da própria Crónica de Zurara, porque há uma notória mudança de aspecto entre a primeira e a segunda página.
Curiosamente, parece que não se duvida que o texto tenha sido alterado - obviamente o mais natural (e sabemos bem porquê), mas sim que a imagem fosse outra.

Ora, uma alteração da imagem parece-me algo de arrojada conspiração, e isto dito por mim, parecerá até estranho. Porém, digo isto porque não encontro motivo para substituição de imagens, a menos que fosse alguém que quisesse recolocar D. Pedro no seu devido lugar histórico. Aí tratar-se-ia do Infante D. Pedro e não de D. Henrique... só encontro esse motivo, e posso aceitá-lo. Outro, parece-me difícil.

Há porém uma série de argumentos, que estão resumidos aqui em paineis.org.
Destaco a questão da face esculpida no túmulo da Batalha, porque me parece o mais pertinente.

(i ) Há um rosto que não corresponde ao padrão da escultura da época, tem formas algo simplificadas, que não se ajustam ao outro detalhe. É perfeitamente natural que uma escultura exposta tenha sido danificada quase irremediavelmente, por algum partidário de D. Pedro, e certamente não faltariam candidatos ao trabalho, logo à época, e especialmente no reinado de D. João II.
No entanto, a escultura mantém traços que a ligam ao quadro em Zurara. O corte de cabelo e o lobo da orelha são practicamente iguais. O olhar também poderia corresponder sem dificuldade, é a parte inferior do rosto que tem maior mudança, graças a traços demasiado vincados, que não se coadunam com a malha fina que existe na coroa ornamental da cabeça. Aliás a parte inferior da cara parece ajustar-se de facto à de D. Pedro, talvez por deformação propositada, eliminando o típico bigode.
Por isso, se se considerar uma imagem errada em Zurara, num livro de guarda pessoal, não se pode deixar de considerar uma deformação quase evidente num busto exposto. Acresce que as coincidências notáveis na posição do corte de cabelo, evidenciam tratar-se de D. Henrique. A confusão com D. Pedro só aumenta pela coroa ornamental da cabeça, que é semelhante à que se vê no "retrato" mais jovem de D. Pedro. Talvez o trabalho de escopro tenha sido ao ponto de destruir o chapelão...

(ii) Há uma questão relativa à cor do cabelo, que me parece secundária, e resulta de uma nova proposta de transcrição na leitura do manuscrito de Zurara. Parece-me que pelo menos ambas as interpretações (a de João de Barros, e a nova) são possíveis, e João de Barros teria maior proximidade histórica, e outras fontes. 

(iii) Há depois a questão de uma eventual alteração da divisa com o moto 
"talAnt de bien fAi're".
O problema são os dois A maiúsculos... só que onde é vista uma adulteração, pode ver-se outro sentido. Ou seja, os A maiúsculos deveriam passar para o início das palavras, ficando
Atlant de bien Afri'e,
que é como quem diz "América por bem África"... juntando o moto de D. João I (por bem), e remetendo à questão do paralelismo América-África, notado também pela duquesa Medina-Sidonia.
O "fere" ao invés de "faire" não tinha o "i" conveniente, nem ao "talant" convinha o "e", haveria mais o empenho do talento nos talentos (moeda)... 

Para além disso, se é que interessa alguma coisa, poderia ainda ficar "Atlantide", e o rabisco no d pode não ser bem um rabisco, e mais um mini-mapa com a península da Florida... mas isso são conjecturas.
Como diria Frei Luís de Sousa, tem duas pirâmides dos reis do Egipto... sim, mas tinha uma em cada hemisfério, como se já soubesse que havia outras na América, ou pior, como se já preconizasse uma divisão dos hemisférios pelo meridiano de Tordesilhas. E assim, quem teve que "coser esse barrete", de "duas metades", foi o seu sucessor de Viseu, D. Manuel, mas esse é outro personagem.

(iv) A questão da simetria da cara nos painéis e na crónica... pode até ter uma explicação, mas não creio que seja vendo o quadro como uma "charada".  É uma oposição política. Na crónica de Zurara, o Infante está virado para Oriente, como sempre esteve, e é D. João II, na tentativa de legitimação de D. Jorge, que irá virá-lo para onde lhe convém...

Sobre o Infante D. Henrique acrescento a sua saída (expulsão) da Ordem da Jarreteira, talvez tenha preferido a Ordem do Tosão de Ouro, adoptado o chapelão do borgonhês do "confrade" Filipe, por bem, o Bom, seu cunhado. A dinastia podia omitir o passado bulhão, e a Ida, com os novos talentos, passaria a afrancesar o talento com um sangue afonsinho borgonhês, carimbado oficialmente.


7) Infante D. Pedro
Sobre o Infante D. Pedro, começo com esta descrição de Camões 7§77

(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.

78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.


A "grega usança" tomo-a como referência às vestes de D. Pedro, nem sei se alguma vez houve outro candidato para esta descrição de Camões. A imagem do jovem Pedro lembra-me os Evzones gregos.
Vemos nos panéis a fivela do cinto da Jarreteira, desapertada, e talvez a blusa evidencie uma "grega usança"... o ramo já não tinha, e se tinha, foi ocultado por uma espada. Essa espada, mal posicionada entre as mãos, e sem continuação notória do gume/baínha, parece ser uma inserção posterior (seria importante ter uma imagem radiográfica desta parte).

Já assinalei possíveis confusões entre as imagens de D. Pedro e do busto de D. Henrique no túmulo da Batalha, que coloco nesta imagem:
A semelhança mais importante é o ornamento da coroa (assinalo as folhas semelhantes com quadrados vermelhos).
Há ainda alguma semelhança na parte inferior do rosto, identificada em paineis.org. Como já referi, pode ter-se tratado de uma adulteração do busto inicial. O Mosteiro da Batalha, longe de estar imune a alterações, sofreu consideráveis mudanças. Relembro, por exemplo, a parte hoje vazia, e atribuída ao "soldado desconhecido". Faz falta uma outra, atribuída aos "navegadores e exploradores desconhecidos".

D. Pedro, estando já morto, cumpre o critério das mãos juntas, tal como D. Henrique, faltará só o ramo nas mãos, que nos parece ter sido substituído pela parte superior de uma espada.


8) D. Beatriz de Viseu e D. Manuel
Uma outra figura importante nos painéis é a da velha senhora, por cima da Rainha, dando uma possível ideia de parentesco, mas não só. As duas mulheres têm um lugar de destaque no conjunto.
D. Beatriz de Viseu, é mãe da Rainha D. Leonor, e é uma peça central na época.
Substitui-se quase ao Papa, como mediadora no Tratado de Alcáçovas, entre D. João II e Isabel de Castela, mantendo os filhos de ambos como reféns, nas Terciarias de Moura.
É portuguesa, mas aparece como "parte terceira", numa questão entre os seus sobrinhos, mas também entre Portugal e Espanha.
O seu filho é D. Manuel, e sucederá a D. João II, que preferia D. Jorge, seu filho "bastardo".

Há semelhanças físicas face a um outro retrato de D. Beatriz, onde aparece mais nova, mas com trajo religioso algo similar.
A figura retratada é religiosa, vê-se o terço, mas nos painéis não está a rezar. No outro quadro, D. Beatriz está a rezar, com as mãos juntas. Nos painéis não pode ter as mãos juntas, porque está viva à época. Nascida em 1430, teria 55 anos na hipótese (iii) de 1485, e 61 anos na hipótese (iv) de 1491. Uma idade próxima dos 60 anos é consistente com a fisionomia do seu rosto.

No outro painel, em posição semelhante, à de D. Beatriz, em oposição ao "príncipe",  aparece outro jovem, com o "barrete cosido" que identificámos antes com D. Diogo. Faço agora uma comparação com D. Manuel, com uns anos e uns quilos de diferença:
O contorno, da sobrancelha ao nariz, é muito semelhante. Nascido em 1469 teria 16 anos em 1485, e 22 anos em 1491.
Porém, há um detalhe, que me obrigou a afastar a hipótese de ser D. Manuel - o jovem parece ter as mãos juntas (só se vê uma mão), e assim, pela regra, estaria morto... Poderia por isso ser o irmão, D. Diogo, assassinado pelo rei em 1484.

A cerimónia em questão, c. 1485, seria assim uma reabilitação de D. João II, prostrado no chão, pedindo perdão à Rainha, sua irmã, e à mãe, D. Beatriz, pelo assassinato do filho.
O quadro seria encomendado para esse efeito...

Essa hipótese de 1485 estava para mim quase como definitiva, pela sua razoabilidade, até reparar num outro detalhe, pouco tempo antes de escrever o texto:
-  todos os personagens tinham a barba aparada, excepto os que tinham as mãos juntas.
Ou seja, os vivos tinham a barba rapada, e isso correspondia a um acontecimento preciso - a morte de D. Afonso, na queda de cavalo em Santarém.
O rei D. João II rapou a barba, e todos fizeram o mesmo, segundo Garcia de Resende.

Poderia haver uma excepção a essa regra, no 5º painel, que presumi ser o Infante Santo, D. Fernando. No entanto, na posição do personagem, a perspectiva não tornaria visíveis as suas mãos. Portanto, não havia uma quebra efectiva de regra, e todo o enquadramento faria sentido.

Faltava recolocar D. Manuel. Uma outra figura no 5º painel tinha algumas semelhanças com outro retrato de D. Manuel, e na altura considerei a hipótese de estar ali representado. No entanto, dadas as semelhanças com este retrato, é possível que estivesse ainda retratado na figura do Duque de Viseu, como duas partes do mesmo projecto.

[continua]

1 comentário:

  1. O texto foi reeditado, peço desculpa a quem o leu antes, pela inclusão de uma versão incompleta, onde dava conta de uma certa irritação que este assunto me traz à memória.

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