terça-feira, 2 de agosto de 2011

Reflexão

Há algumas palavras que temos e cujo significado primevo perdemos, por falta de um bom ensino de Português. O ensino da língua é lamentável, pois não nos faz estabelecer as múltiplas relações e conexões que têm as palavras que usamos e que estruturam o nosso raciocínio.

A língua funciona como uma formatação do pensamento. É até difícil perceber como seríamos pensantes sem uma linguagem... pelo menos não conseguiríamos exprimir esse pensamento.
As pessoas pensam numa determinada linguagem, são condicionadas pelas noções que foram aprendendo, de forma ocasional, mais pela sua experiência induzida pelo ambiente e sociedade circundante... não há propriamente uma aprendizagem estruturada da língua.

A aprendizagem estruturada prende-se com regras de sintaxe, primeiro com a gramática, que adquirimos e esquecemos. 
Porém ninguém nos tenta dar a mínima explicação para algumas curiosidades da nossa língua. 
Por exemplo, por que razão o SER e o IR têm a mesma conjugação no passado (pretérito perfeito)?
- a diferença que fazemos necessita do artigo... "ele foi à praia" por diferença a "ele foi a praia". 
Esta semelhança não tem origem no latim, é algo ibérico - ter "sido" ou ter "ido" é semelhante!
- Quem não foi, não foi!... para se ser não basta ficar, é preciso ir. 

Ninguém nos informa que o português transformou o L em R neste caso... os espanhóis usam L em "playa" (tal como os franceses em "plage"), mas os portugueses acharam mais "másculo" o som R (segundo diz Duarte Nunes do Lião) e passaram alguns L para R e do "playa" passamos a "praia". Nalguns casos manteve-se, noutros casos perdeu-se... o Castro viria de Castlo (os ingleses usam Castle), mas também mantivemos Castelo. Duarte Nunes de Lião usa outros exemplos:
- Obligar em espanhol (obliger - francês, inglês) desviou-se em Obrigar.
- Blando em espanhol passou a Brando... etc.
Digamos que o português ficava brando, mas não demasiado blando... mesmo assim há alguns exemplos que ele dava e que regrediram: "simpres" e "craro", retornaram a "simples" e "claro"... o que mostram que ficámos mesmo mais "blandos". Lião nota ainda a peculiaridade nortenha da mistura B e V, e dos CHs da região de Viseu. Percebemos que se a Távola seria Tábula ou Tábua (os ingleses dizem Round Table), com a passagem de L a R, também foi Távora.

Mas sejamos claros... há bastante uso nas palavras que, mesmo sendo óbvio, raramente é sentido ou mencionado, e cuja origem está no latim.
Claro está ligado a Aclarar, a Declarar... uma Declaração é algo que deve tornar claro.  
Clamar está ligado a Aclamar, a Reclamar, a Proclamar, a Declamar... o "falar alto" é usado na aclamação, na reclamação, na proclamação, na declamação!

Custará muito ensinar alguns destes casos aos nossos petizes, para que sintam curiosidade pela língua que falam? Será um caso de selar?... sendo que celare em latim significa esconder! 

Há muitas outras particularidades, mais ou menos conhecidas, como a distinção que fazemos entre o Ser e o Estar, sendo característica ibérica e um pouco italiana, em que o "estar" não liga exactamente ao "stare" do latim (que significaria mais ficar imóvel, de onde vem o "status").

O assunto deste post não é exactamente este...
A estrutura da nossa língua remete para noções às vezes demasiado profundas para serem acidentes linguísticos. 
Um exemplo é a palavra "Reflexão"!
A reflexão remete para a imagem no outro lado do espelho.
O que fazemos então quando "reflectimos"? ... apenas nos vemos a nós, no outro lado?
Ou será um pouco mais do que isso?

Seguimos na linha do que escrevemos no texto Sapiens Sapiens... O indivíduo que interpreta, com consciência de si, terá capacidade de se colocar na posição do que observa?
A sua capacidade de abstracção coloca-lhe a possibilidade de se ver na posição do outro.
A reflexão muito mais do que um acto de introspecção, remete para a consciência do "outro", que no espelho da nossa alma deveríamos ver como semelhante. Podemos é claro, ignorar a sua existência enquanto "igual", mas aí reduzimos o nosso universo de igualdade, a um "grupo eleito", ou no limite ao caso "singular" de isolamento.
Até aqui tudo isto é simples... e não parece haver distinção entre as possibilidades.
Um grupo ou o indivíduo pode cultivar o elitismo, mas não pode ignorar a ideia dos "outros"... e é essa ideia que vai ficar presa no espírito. Poderá tentar ignorar a reflexão, mas essa possibilidade de "trocar de lugar" é inevitável no raciocínio do Animal Sapiens. Por isso, quando atinge um semelhante é inevitável colocar-se no lugar do outro lado do espelho. Pode tentar ignorá-lo, mas o seu cérebro coloca-lhe sempre essa hipótese, por muito que tente reprimi-lo... porque tem consciência - não apenas de si, mas do outro!
Assim, também sentimos as expressões dos animais como nossas, tanto mais quanto esses animais se assemelham a nós próprios. A reflexão é tanto mais evidente e inevitável com os que consideramos como semelhantes. A expressão do olhar de um animal consegue-nos tocar, porque somos levados a uma rápida reflexão e colocamo-nos mais facilmente no seu lugar.
Um Animal Sapiens só conseguirá estar em paz consigo próprio, quando conseguir reflectir, vendo os outros, e não se vendo apenas a si próprio.

Depois desta pequena divagação filosófica, fica-me a questão... é esta palavra "Reflexão" uma simples coincidência linguística, ou procurará transmitir um conhecimento perdido nos tempos?

2 comentários:

  1. Sempre me atraiu a singularidade ser/estar

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  2. Aprendemos a estar por aqui, mas não a ser aqui.
    Por isso, tudo parece incomodamente transitório...

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