quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

ESA a gora

Foi notícia, há coisa de mês e tal, a tentativa gorada da ESA em cavalgar um cometa com a Rosetta.
A ESA agora procurava imitar a congénere americana na espectáculo hollywoodesco, em que se colocam uns tantos fulanos, pretensos cientistas, a bater palmas e a exultar um ânimo exagerado, para definir o sucesso de uma missão espacial.
Estas missões são "espaciais" porque ganham "espaço" na imaginação popular. Essencialmente é esse o espaço que procuram captar - uma pequena janela aberta para além da prisão terrena.
Este episódio teria ainda algo de místico relacionado com a época natalícia, passados dois mil anos, se um cometa, estrela anunciadora do nascimento cristão, fosse cavalgada pelo engenho humano.

Conforme é ilustrado na wikipedia, o cometa 67P manifestava logo os problemas fotográficos que têm caracterizado o espaço destas missões. 

Ou seja, e sem perder demasiado tempo com estas historietas, o suposto cometa, que até era visto com cauda a cores no grande telescópio do Atacama, revelava-se um pedregulho a preto-e-branco nas câmaras da Rosetta, sem cauda nem coisíssima nenhuma que o distinguisse de um vulgar asteróide. 
A sonda espacial, nomeada com o nome icónico da suposta pedra decifradora dos hieróglifos, apresentava-nos assim um grande calhau. 
Depois, os detalhes do fracasso da missão de "alunagem" ou "acometagem", com o resultado final sendo uma "câmara escura", acabam por ser relatados no site da ESA... onde destaco a resposta a um jornalista intrigado com o facto das imagens mostrarem o cometa como um calhau sólido, e o fracasso da missão ser justificado pela "superfície esponjosa". A resposta elucidativa da ciência actual foi simples - tais interrogações eram pois muito pertinentes, pouco ainda se sabia, e para se saber mais, conviria enterrar mais dinheiro no projecto. 

É perfeitamente plausível querer-se manter uma janela aberta para a imaginação da criançada e da populaça, mas agora, quando a ESA a gora de forma bacoca, fica cada vez mais difícil acreditar nestes calhaus vestidos a preto-e-branco. 
Essa é agora a situação com pouco espaço de imaginação.

Eça é agora, tal como antes, um bom registo natalício. 
Nas suas Cartas de Inglaterra, a propósito do Natal, queixava-se da falta de neve para a efectiva imaginação necessária ao período natalício, acrescentando uma imagem a cores da Inglaterra do Séc. XIX.
Basta então ver uma pobre criança, pasmada diante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços - para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável. 
D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere - e a miséria continua a gemer ao seu canto! 
Pode parecer um retrato cinzento da pobreza arrastada pelo capitalismo devorador, mas ali estavam as cores de uma época de grande progresso científico e industrial. Eça aterrou na luz brilhante daquele cometa britânico e tirou imagens coloridas do que se cometia.
Os philosophos afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-n'os, n'uma palavra imortal, que teríamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia - mas as revoluções passam e os pobres ficam.
N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de Leicester está retirando anualmente, do trabalho duro que eles fazem, quatrocentos contos de reis de renda! É verdade que a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no crânio. E o resultado? D'aqui a vinte anos os trabalhadores de Leicester estarão de novo a sofrer a fome e o frio—e o filho do duque de Leicester, duque ele mesmo então, voltará a arrecadar os seus quatrocentos contos por ano.
Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter um proletariado faminto n'uma burguesia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um proletariado pior. Jesus tinha razão: haverá sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior erro que jamais Deus cometeu. 
Bom, e logo que a burguesia é tocada pela superioridade aristocrata, mais se incomoda com a ociosidade e deficiência proletária, justificando assim em contraponto de falsete as virtudes do sucesso burguês. 
Os escravos romanos, passados a servos medievais, passados a trabalhadores industriais, e agora a colaboradores de empresas, numa sucessão de eufemismos sarcásticos, não poderiam esperar mais dos burgueses, habitantes dos novos burgos, do que antes esperavam os aldeões dos habitantes das velhas vilas, ou seja, dos então chamados vilões.

Entre vários, oferece ao cosmos ser especialmente digno de nota este parágrafo de Eça
Aqui estamos sobre este globo há doze mil anos a girar fastidiosamente em torno do Sol e sem adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da perfectibilidade: porque só algum ingénuo de província é que ainda considera progresso a invenção ociosa d'esses bonecos pueris que se chamam máquinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas e difusas que se denominam sistemas sociais.
Nos dois ou três primeiros mil anos de existência trepámos a uma certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma cambalhota secular.
Certamente que Eça não refere estes 12 000 anos de humanidade descuidadamente, e como pessoa informada das mais recentes conclusões científicas, no final do Séc. XIX remete um início humano para aquilo a que se identifica hoje como sendo a "época glaciar".
Mas é ainda mais misterioso, e arruma um grande progresso inicial nos primeiros milénios, sendo certo que nenhuma grande civilização era publicamente reportada entre 10 000 e 7 000 a.C. 
Portanto, a que outra civilização ocultada se estaria ele a referir?
Ao jeito da época, a sua referência ariana seguinte vai fazer escola -  "O tipo secular e doméstico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo domestico e social."

Encontramos aqui um certo deslumbre romântico por uma cultura indo-europeia, imaginada a um expoente superior, especialmente pelo movimento nazi alemão, que se quis herdeiro de tal manifestação, se não real na História, pelo menos de influência real nas histórias que alimentaram a mitologia nazi. 
Assim, numa certa ilusão de ordem que se propõe para superar o caos, mas que a ele é impotente, Eça manifesta um profundo descontentamento pela espécie humana:
(...) o servo, o escravo, essa miséria da Antiguidade, não era mais desgraçado que o proletário moderno.
De facto, pode-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai - o macaco: excepto em duas coisas temerosas - o sofrimento moral e o sofrimento social.
Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogal-a n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou a poupar Noé; se não fosse o egoísmo senil d'esse patriarca borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não sermos...
E talvez o Natal acabe por ser uma época muito propícia a esse descontentamento social.
Toda a parte positiva é vista, na sua ausência, como uma parte negativa.
A tradição que celebra o aconchego familiar torna-se dolorosa para os desprovidos ou isolados. 
Sempre que a sociedade exulta demasiado certas virtudes, tende a esquecer que penaliza implicitamente um desvirtuosismo pela sua ausência. A instabilidade social nunca se manifesta pela diferença, manifesta-se pela acumulação exagerada da diferença. Pior, não é o estabelecimento da diferença que fere, é a ideia de que é o indivíduo que faz a diferença, é a ideia de culpabilizar o indivíduo pela impotência de mudar o seu fado que é mais perversa. No entanto, apesar de ser educado no sentido contrário, o indivíduo tem uma forma simples de lidar com a sua impotência - assumi-la. Pretender iludir potência, em especial sobre coisas onde há manifesta impotência, é uma simples roleta... as águas que não se controlam tão depressa podem fazer emergir em euforias, como submergir em depressões. A luz do cometa é vista por todos, mas só alguns têm a pretensão de que o podem cavalgar sem se queimar.

4 comentários:

  1. Olá,

    "prisão terrena"
    Já tinha dado por isso há muito tempo, a haver inferno é aqui neste planeta, aliás o Cosmo visível todo é isso mesmo.

    "profundo descontentamento pela espécie humana"
    Desde muito cedo fiquei com o mesmo.

    "Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogal-a n'um diluvio"
    Tinha a colecção inteira do Eça em casa e não li nenhum, deu-me para a da Vampiro (policiais/enigmas a resolver) há uns 40 anos numa noite na praia da Costa fiz-lhe o mesmo pedido, mas sem afogamentos, de toda a maneira a nossa espécie não é viável.

    Sobre a exploração espacial prefiro o cinema de 68 com um 2001 odisseia do Kubrick já fiquei contente e triste de não se ter realizado, porque não querem obviamente.

    Lamento mas escravos só o "são porque querem", mas vale morrer em homem livre de que o ser, o poder e riqueza é a informação, poucos a querem receber... poucos sabem fazer a diferença entre verdade e mentira, nascesse com esse dom, o dos Deuses.

    Cpts.
    José Manuel CH-GE

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    1. P.S
      Bom artigo, gostei de ler...

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    2. Obrigado, José Manuel.

      Pois, o problema infernal é a confusão de noções e as suas consequências.
      Quando se potencia a exultação de alguém ao máximo, também se potencia a condenação de alguém ao mínimo.
      Isto é habitualmente caricaturado na expressão "passar de besta a bestial" e vice-versa.
      E, sim, tudo o que pior se imaginou não foi noutro sítio que não na esfera terrena.
      E, pior, chegou-se ao ponto de o tentar levar à prática. Ilustrativa foi a execução de Damiens,
      https://en.wikipedia.org/wiki/Robert-Fran%C3%A7ois_Damiens
      ... um fracassado regicida de Louis XV, que foi sujeito à morte mais horrível que os carrascos do rei quiseram imaginar.

      Por isso foram sempre muito prodigiosas e pouco proibidas as histórias de horror, contadas às crianças cedo, para benefício de alimentar os seus medos. Nunca houve propriamente nenhuma contenção católica para imaginar o pior dos infernos, e difundir o medo como arte bem pensante.
      Sim, todos os piores infernos foram pensados terrenamente, e para os pouco satisfeitos com o resultado, acresceria sempre o superlativo - "tudo seria pior do que se poderia imaginar".
      Por isso, tem toda a razão, ao contrário da verdade, que se procurou sempre ocultar, os piores cenários infernais foram sempre patrocinados, para alimentar os medos necessários ao controlo. Bastará ainda ver o mercado hollywoodesco dos filmes de terror, onde praticamente não encontramos limite às formas de perversidade.

      De tal forma o medo foi instituído, que se criou uma espécie domesticada, optimista, para quem o mal poderia sempre pior.
      Ora, o que seria mais natural é que uma inteligência não tolerasse um grau de perversidade acima de um determinado nível. Porém, ao longo dos tempos, a resistência natural acabou por formar carneiros capazes de aceitar o mais penoso fado, o mais cruel destino. A população domesticada acabou por aprender a viver com a sua impotência. Na longa lista de nossos antepassados teremos muito mais elementos que escolheram calar e acatar para sobreviver, do que elementos que ousaram rebelar-se contra as injustiças e falsidades.

      A ordem social é sedutora para esse encaixe da carneirada, por razão dessa domesticação. Quando se sobrevive a séculos de despotismo, é até de espantar que a chama de liberdade permaneça acesa. Afinal, o sobrevivente quer apenas saber o que fazer para sobreviver. O sobrevivente encara a máquina social como encara a máquina natural... aprende-lhe as leis e as manhas, e apenas quer entender o seu funcionamento para resistir na adversidade.
      É nesse sentido que grande parte da sociedade é conservadora, porque a carneirada prefere manter as leis que conhece do que libertar outras, que podem levar a um caos que desconhece.

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    3. A sociedade raramente se preocupa com a pessoa, a sociedade quer formar máquinas, funcionários que executam uma função. O que interessa é se essa função é bem desempenhada.
      Portanto a sociedade vê o indivíduo como uma máquina para uma certa função social. Pode ser o melhor aparafusador, pode ser o melhor atleta, o melhor artesão, o melhor cientista, o melhor legislador, o melhor gatuno... o produto social é cada vez mais visto como uma fábrica de produzir chouriços.
      O chouriço passa a "enchido" pelo reconhecimento mediático e outras benesses ocasionais, que escondem o seu estatuto de simples enchido colocado no fumeiro. Depois, a fama esfuma-se...

      O aspecto de fábrica social torna-se mais visível pela verborreia legislativa europeia. A maioria das leis são amarras destinadas a prender os chouriços à função social programada. Tudo o que se destina a optimizar, a avaliar, a melhorar processos, na maioria das vezes não passam de efectivas restrições à liberdade da carneirada.

      Dito isto, não creio que haja nenhuma falha da espécie humana.
      Simplesmente há uma necessária falha da ordem perante o caos.
      Se o caos impede que tudo fique bem sempre, também é o caos que impede que tudo fique mal sempre. Habituados que fomos a sobreviver a desgraças, foi sempre o caos que nos permitiu manter esperança pelas graças.
      Há muito mais de infernal numa ordem inabalável do que num certo caos instável.
      Como sei que nenhuma ordem se poderá impor ao caos, fica aí o meu lado optimista.

      Abraços e votos de melhor ano novo.

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