Alvor-Silves

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

dos Comentários (54) dia de 4 horas

Segue um comentário de IRF sobre Ludovico di Varthema, cujo livro de viagens:
Itinerario de Ludouico de Varthema Bolognese 
foi publicado em Roma, em 1510.

Ludovico di Varthema, publicado em holandês

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Venho apresentar-lhe a história do senhor Ludovico di Varthema, um aristocrata Bolonhês que em 1502 resolveu partir pelo desconhecido e grande mundo de então.
Andou por Alexandria, Cairo, Beirute, Tripoli, Alepo, Damasco, foi aparentemente o primeiro Europeu a entrar na proibidíssima cidade de Meca como guarda de uma caravana de peregrinos entre Mamelucos do Cairo, Medina...
Aparentemente, uns mouros suspeitaram que era Cristão, e o Italiano lá se safou oferecendo-se como grande especialista em artilharia para ajudar os mouros a combater os Portugueses...

Foi para Jedah, e para Aden, no Yemen, rumo à Índia, mas foi preso acusado de ser um espião Cristão ao serviço dos Portugueses. Por manhas só à disposição de aristocratas Italianos teve um caso com uma princesa Yemenita que o safou, mas que lhe valeu a prisão de novo... 
Mas safou-se! E foi para Saná.
Com o dinheiro oferecido pela moura, lá conseguiu pôr-se de novo rumo à Índia num navio Persa que se desviou da rota e teve de aportar em Berbera, naquilo que hoje é o Estado não reconhecido da Somalilândia. Eventualmente, lá chegou a Diu na Índia... mas deu por si num navio para Mascate, em Omã, de onde passou a Ormuz.
Em Ormuz parece que havia confusão à séria, pelo que fugiu para Pérsia e chegou a Herat, no Afeganistão, voltando depois para Shiraz, no Irão, relativamente perto de Ormuz.

Pois em Shiraz, na Pérsia, o nosso Italiano encontrou um mercador Persa com quem tinha privado em Meca, mercador este que pensava que o nosso Italiano era um mouro, desconhecendo-lhe a verdadeira identidade. Parece que ficaram amigos e rumaram para Samarcanda. Não mais se separariam nas aventuras de Ludovico di Varthema na Ásia, mas parece que o Ludovico se limitava a acompanhar o Persa pelos seus caminhos comerciais...

Chegaram então à foz do rio Indo (Carachi de hoje?) vindos de Ormuz, percorrendo depois a costa Ocidental da Índia, incluindo Goa tendo depois penetrado no interior da Índia. Em Cananore, encontrou os Portugueses. 
No extremo Sul da Índia encontrou os Cristãos "de São Tomás" nativos da Índia.
Passou para o Ceilão - Sri Lanka - e para a Tailândia ou Sião - começando numa região que hoje é parte da Birmânia - e foi nesta zona que se deparou com coisas como a imolação de viúvas após a morte do marido e convites para desflorar virgens que se iam casar, que era costume serem oferecidas aos estranhos antes de serem oferecidas aos maridos.
Vou abster-me de fazer comentários...

Passaram depois ao actual Bangladesh... onde menciona a existência de mercadores Chineses de fé Cristã. Muito estranho... mas poderiam ser resquícios de Cristãos Nestorianos Iranianos da corte dos Mongóis... a wikipedia diz que Ludovico dizia que esses Chineses "eram brancos como nós", aparentemente referindo-se ao tom de pele... mas poderia inclusive referi-se à raça...
Estes "Chineses" Cristãos, convidam-nos a embarcar com eles em viagem e chegam a Pegu, na Birmânia. E depois Malaca, na Malásia. E depois, Sumatra. Decidem ir mesmo à origem das rentáveis especiarias e chegam às Ilhas Molucas.

Agora é a parte interessante:
Voltam por Bornéu, e depois por Java, que os Cristãos Chineses descrevem como "a maior ilha do mundo". Igualmente interessante, o Malaio que leva o barco é descrito como possuindo uma bússola e uma "carta náutica com traçada de linhas".
O Malaio ensina-os que devem navegar orientados pelas estrelas, nunca perdendo o foco do Cruzeiro do Sul:
"(O Malaio) mostrou-nos quatro ou cinco estrelas e disse-nos que uma delas era oposta à nossa estrela polar e que ele navegava pelo Norte (usando a bússola) porque o ponteiro apontava sempre para Norte.Ele também nos disse que do outro lado desta ilha (Java), para Sul, existem outras raças mais, que navegam por estas quatro ou cinco estrelas opostas ás nossas. E fizeram-nos compreender que para além dessa ilha o dia não dura mais de quatro horas e faz mais frio do que em qualquer outra parte do mundo".
É isto uma referência à Antárctida? ao extremo Sul da Austrália?
À Nova Zelândia e aos Maori ou Polinésios?

Em Java, Ludovico afirma que existem canibais e compra duas crianças castradas. De Java, foram para Malaca onde se despediram dos Chineses. E de lá foram para a Índia, chegando por fim a Calecute.
Em Calecute, encontra dois Italianos que estavam a trabalhar ao serviço de um Indiano poderoso que se preparava para cobmater os Portugueses com artilharia Europeia. Ludovico finge-se de asceta Islâmico - pois desde as Arábias que finge ser mouro - e ganha fama como homem santo e curandeiro local, por parte dos mouros, enquanto conspira com os Italianos para regressarem todos a Itália.

Acontece que o Ludovico lá consegue chegar a Cananore e entregar-se aos Portugueses como Cristão Italiano que quer regressar a casa.
É aprisionado e interrogado pelo próprio Capitão da Armada Portuguesa, D. Lourenço de Almeida, a quem oferece informação valiosíssima acerca dos preparos do Zamorim de Calecute.

D. Lourenço de Almeida, despacha Ludovico num navio para Cochim, com relatório a ser entregue a seu pai, D. Francisco de Almeida, o Vice Rei Português da Índia. Este oferece apoio aos outros Italianos para que abandonem os Indianos. No entanto, a trama para salvar os Italianos é descoberta e são assassinados por uma turba de monhés em fúria...

Ludovico passa a trabalhar para os Portugueses, dado a sua fluência em línguas... este participa e descreve em pormenor a batalha de Cananore.
O nosso Italiano aguenta-se com os Portugueses durante o duro cerco de Cananore.
Em que só com a chegada da armada comandada por D. Tristão da Cunha os Portugueses conseguem superiorizar-se. Ludovico diz que muitos dos que conhecia nas redondezas se converteram ao Cristianismo após esta vitória dos Portugueses.
Após uma expedição punitiva a um porto próximo, o nosso Ludovico é feito cavaleiro pelo Vice Rei D. Francisco de Almeida, com o apoio de D. Tristão da Cunha.

Regressa à Europa com os Portugueses, passando pela costa Leste de África, Madagáscar e Moçambique, África do Sul...
Passaram pelas ilhas de Santa Helena e Ascenção, no meio do Atlântico. Depois os Açores e finalmente Lisboa. Ludovico diz que é bem possível que por acção dos Portugueses toda a Ásia se torna Cristã nos próximos tempos...

Em 1510, Ludovico está em Lisboa e tem uma audiência com o próprio Rei D. Manuel, que confirma a validade da sua elevação a cavaleiro.
Que informações disporia Portugal só pelo contacto com este cavaleiro em 1510?

IRF
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É muito interessante esta descrição, em particular no detalhe que dá de um dia com menos de 4 horas, porque isso significa que estaria em latitudes muito a sul.
Com efeito, quando o dia é medido com menos de 6 horas isso significa que se está em latitudes superiores a 60º, seja a norte ou a sul. Tratando-se neste caso de latitudes a sul, convém notar que praticamente toda a Antárctida está dentro do círculo polar (acima de 66ºS), à excepção da Península Antárctida (junto à Terra do Fogo), que vai até 63ºS. Por outro lado a Austrália e Nova Zelândia não chegam além de 47ºS, enquanto a Terra do Fogo vai até 55ºS. 
A esta latitude de 55ºS o dia terá ainda cerca de 7 horas. 
Para ter apenas 4 horas de duração, a latitude teria de ser próxima de 63ºS, já que a 60ºS deveria ter 6 horas de duração.
Como o livro foi publicado em 1510, muito antes da viagem de Fernão de Magalhães, isto significa que, se a medição do dia foi correcta, tinha-se chegado nessa altura a latitudes de 63ºS, ou seja, a um território que apenas encontra paralelo na Península Antárctica.
Isso, é claro adapta-se de forma explícita à descrição "faz mais frio do que em qualquer outra parte do mundo", dada essa característica da Antárctida.

Como se insere esta descrição na história oficial?... Não se insere!


Relação entre a duração do dia e as latitudes

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Outros quinhentos (5) a vergonha transnacional

Em 20 de Setembro de 1519, Fernão de Magalhães deu início a uma viagem de circum-navegação da Terra, ao serviço de Carlos V, imperador e rei de Espanha. 

Fez hoje 500 anos, mas praticamente ninguém deu por isso...

Conforme já aqui escrevemos, é praticamente certo que ele não tivesse sido o primeiro português a fazê-lo, ou pelo menos a atravessar o Estreito de Magalhães, sendo bastante mais provável que tivesse sido Diogo Cão (ou João Afonso do Estreito) a atravessar essa ponta meridional da América, porque assim o próprio Fernão de Magalhães o revelou, ao informar que seguia um mapa de Martin Behaim que estava em Lisboa.

Provavelmente o intuito do projecto de Magalhães foi reeditar de forma oficial a exploração portuguesa, chancelando a descoberta já que o D. Manuel não o quis fazer. Assim, o nome de Magalhães acabou algo submerso na perspectiva de "traição" à pátria, ao colocar-se ao serviço do monarca Habsburgo, rei de Espanha, mas com a consagração internacional, os portugueses passaram associar-se ao homem de sucesso, que era afinal nosso conterrâneo.

Estátua de Magalhães em Punta Arenas
Na Praça do Chile, em Lisboa, está uma estátua de Fernão de Magalhães, que não foi feita por portugueses. Está na Praça do Chile, porque foi oferecida pelo Presidente do Chile a Portugal em 1930, e é uma cópia da estátua original que está em Punta Arenas, cidade chilena que está exactamente no Estreito de Magalhães.

Esta estátua de Punta Arenas, do escultor Guillermo Cordova, foi inaugurada em Novembro de 1920, na comemoração dos 400 anos da passagem pelo estreito de Magalhães.

Não é difícil perceber que Portugal, depois da revolução republicana de 1910, não tinha autonomia para grandes comemorações, e terá deixado passar esses 400 anos de forma tão vazia, quanto acabou por fazer nesta ausência de comemoração dos 500 anos.
Por isso, foi o Chile a celebrar o evento, e foi já com o Estado Novo que Portugal recebeu a oferenda e a colocou na Praça do Chile, em 1950.

Portanto, esta tristeza institucional tem séculos.

Em Portugal foi dado mais destaque noticioso às comemorações dos 400 anos da morte de Shakespeare em 2016, do que foi dado aos 500 anos da morte de Afonso de Albuquerque, em 2015. 

Havendo uma comissão encarregue da comemoração dos 500 anos da viagem de Magalhães, mesmo na minha pior estimativa, não me passava pela cabeça que neste dia não fosse notícia de 1ª página, de algum destaque de telejornais, de alguma parada militar, e que esta comemoração passasse quase tão despercebida, que ao que parece nem o Presidente da República se associou a nenhuma iniciativa. Mesmo a Marinha, que costuma ter obrigação de ter mais memória, fez pouco mais do que de conta que o evento se registou... e para além de uns colóquios de armário, tem o navio-escola Sagres a fazer uma circum-navegação similar.

Dado o contexto do Século XXI, isto não é de estranhar, e já nem há quem tenha vergonha, porque quando se está no meio do lodo, o cheiro fétido passa a ser aroma ambiental.
Finalmente, e como não poderia deixar de ser... o grande destaque do dia foi para mais uma das múltiplas orquestrações internacionais que pegam numas centenas de jovens e fazem-nos gritar pelo ambiente. Ao mesmo tempo que vão poluindo esses locais de manifestações com todo o tipo de plásticos, desde refeições enlatadas a copos de plástico de cerveja. 

O problema ambiental é simples... como mostra o dia de hoje, nos últimos dias de Verão chove, faz frio, mas a temperatura aumenta e o ambiente degrada-se. A temperatura apenas aumenta no sentido figurado, porque é difícil congelar o acesso à informação, sem medidas drásticas. O ambiente dos controladores do regime degrada-se, e qualquer dia temos novas greves dos controladores. O perigo de inundações de informação é evidente, e contrariar factos objectivos é uma seca. São estes os apanhados do clima que se queixam das alterações ambientais.

domingo, 15 de setembro de 2019

Armas, Armadas e Armeiros

Estando a falar de brasões, e como ainda não tinha havido ocasião disso, convém referir o

Livro do Armeiro Mor (1509-21) de António Godinho, ou
Livro da nobreza e da perfeição das armas dos reis cristãos 
e nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal 
(Torre do Tombo, PT/TT/CR/D-A/001/20)

Este livro terá sido encomendado por D. Manuel, mas apenas teria sido terminado após a sua morte, em 1521. Começa por ser interessante logo o prólogo, onde António Godinho relembra uma frase que atribui a Platão, sobre a virtude, dizendo que - tendo olhos, se amaria a si mesma.
MVITO ALTO E MVITO PODEROSO REY E SENHOR, dito é de Platão
que se a virtude com os olhos corporais se visse, geraria amor de si mesma.
E por isso os poetas e sábios trabalharam de a ensinar declarando-a por metáforas, fingimentos de figuras, para o entendimento e coração a melhor sentir e conceber.
Os antigos faziam estátuas com que muito acendiam os ânimos nela, segundo SALVSTIO, e outros autores. E por que nos prémios que os príncipes dão aos bons, a proporção é necessária segundo as qualidades dos méritos. Coisa conveniente foi os que assinaladas virtudes fazem serem assinaladas com imagens de insignes armas. Com as quais guardando a imortalidade de suas famas, seus sucessores tivessem obrigação de os imitar, que muita parte dos homens se move mais pela fama que por outra virtude
O prólogo é mais extenso, e na "História Genealógica da Casa Real Portuguesa" (Tomo 1, em 1735), António Caetano de Sousa transcreveu-o, dizendo que aquele prólogo "teria sido visto por poucos"... e nesse aspecto, não mudou quase nada, porque continua a estar escrito apenas aí. Curiosamente Caetano de Sousa diz que o livro teria a inscrição inicial - Livro da Nobreza por Fernão das Minas, dos Reis Cristãos e das nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal. Surge habitualmente um alemão (Harriet ou Arriet) como possível contribuidor ou autor inicial (Caetano de Sousa fala num volume ainda mais perfeito que teria a sua autoria).

Índia Maior e Menor
Merecendo certamente diversos destaques, por razão de menção a reinos desconhecidos, etc, irei apenas aqui salientar um par de brasões: da Índia Maior e a Índia Menor:
 
Índia Menor seria a Índia propriamente dita, e Índia Maior designava inclusivamente as regiões ao sul da Ásia, podendo incluir toda a parte da Indonésia, ou ainda mais além...
O brasão da Índia Maior tem uma balança, a libra, constante da divisa do Infante D. Pedro, e o brasão da Índia Menor tem a figura de Cristo crucificado, o que me parece algo bizarro nesta fase inicial, onde o envio de missionários ainda não teria começado (ainda nem existiam jesuítas). 
Poderia estar aqui a invocar-se a "táctica da cunha", do Infante D. Henrique, ou seja que a chegada à Índia era apenas um passo para atacar os muçulmanos na Arábia, e permitir a progressão pelo Suez para a conquista de Jerusalém - algo parcialmente concretizado por Afonso de Albuquerque, quando anexou o Suez.
A balança para a Índia Maior poderia indicar uma necessidade de equilíbrio das potências, uma balança de poder, não apenas considerando as rivais potências europeias, mas também a gigantesca dimensão dessa Índia Maior, que poderia incluir até a China.

Armas e Escudos
Sendo claro que, desde a Antiguidade, apareciam símbolos nos escudos, identificando o exército combatente, ou a legião (caso romano), na época medieval com a feudalização e a existência de exércitos privados de senhores - duques, condes, marqueses, essa marca foi passando a constituir uma marca da família senhorial, e dos seus descendentes. Isto ocorreu especialmente a partir de Carlos Magno, e ficou mais formalizado nas Cruzadas, quando determinadas regras começaram a ser definidas "internacionalmente".

O formato dos escudos dos brasões passou a ser praticamente o mesmo, e sendo assumido que seria a forma do escudo segurado pelo braço esquerdo, enquanto o direito segurava a espada. Há assim uma orientação privilegiada dos objectos - por exemplo, era natural o leão ou a águia aparecerem virados para a esquerda, já que isso corresponderia a olhar de frente o opositor, estando no braço esquerdo.
Mas também vemos águias bicéfalas, olhando em ambas as direcções, no caso imperial.

Ora, a forma dos escudos sugere-me a Lorica Squamata, a armadura em escamas romana. Trata-se de uma armadura formada por pequenas escamas, que era suficientemente flexível para ser usada como revestimento metálico protector, lembrando a forma das escamas de répteis ou peixes. Muitos telhados europeus tinham também esta disposição nos seus telhados, em que cada telha correspondia a uma escama.
Um nome usado para os brasões era justamente
"cota-de-armas" (em inglês, coat-of-arms)
o que distingue da "cota-de-malha", onde a cota, a veste, da armadura era feita com ligações em forma de malha metálica.
O que isto sugere é que o conjunto dos diversos escudos de cada senhor formavam uma armadura do reino, ou do império.
Cada escudo, tal como cada senhor, tinha a sua autonomia relativa, mas estavam ligados entre si.
Acresce que o formato dos escudos era díspar, podendo ser circular, rectangular, não havendo necessariamente uma forma pré-definida, como ficou depois estandardizado no "escudo", ainda que com algumas variantes artísticas. O círculo ou o losango, na heráldica, passou depois a ser usado para pessoas não combatentes - como o clero, ou as esposas dos senhores, não se assumindo que poderiam ser usados escudos circulares, como foi hábito de tantos povos.

Regra de Tintura
Um aspecto frisado por António Godinho foi a necessidade de adaptar os brasões senhoriais às regras heráldicas formais de outras nações, diz-se ter sido preferida a forma inglesa e alemã, por comparação com a francesa e castelhana.
Algo que passou a servir de regra foi a distinção no uso das cores (ver International Heraldry):
Metais: Amarelo (ouro) e Branco (prata) 
Cores: Vermelho, Azul, Verde e Preto (o uso de roxo-magenta será mais recente)
[do lado direito está a forma de representação quando a imagem é preto-e-branco]

Uma regra básica, que o pessoal detesta ver quebrada, é:
- metais não tocam em metais, nem cores tocam em cores.

Aliás, diz Godinho a este propósito:
(...) per outra regra que manda não trazer metal sobre metal nem cor sobre cor: se verificaram muitas que falsas andavam, podendo-se presumir não serem verdadeiras.
Um dos problemas com a actual bandeira portuguesa é que o verde toca directamente o vermelho, sem a separação por uma cor metálica, sendo praticamente caso único nas bandeiras europeias (as novas bandeiras de Alemanha e Rússia e de outros novos estados, têm problemas similares - veja-se a bandeira do império alemão, cortada pelo branco, enquanto na Rússia foi tradição).
Por exemplo, a Itália resolveu o problema de juntar vermelho e verde, cortando-os com o branco metálico, tal como a maioria dos restantes estados europeus.
Curiosamente, também a bandeira monárquica dos Braganças tinha o mesmo problema (o azul tocava o vermelho do escudo).
As excepções admitidas desde há muito eram o Estado papal e o Reino de Jerusalém, que podiam tocar o amarelo com o branco.

Ironicamente, os heraldistas diriam que quem não estivesse bem armado, estaria armado em parvo ("parvo" significa pequeno em latim). No entanto, com a ascensão da burguesia e maçonaria, estas regras típicas da elite medieval foram perdendo relevo, e os que antes eram parvos ou pequenos passaram a grandes ou sábios, definindo uma nova matilha, e uma nova práxis.
Ainda assim, para quem preza o status quo, a violação de regras instituídas durante séculos será uma parvoíce, enquanto pequenez temporal.

Eventuais significados das cores podem ser especulados... ligados às estações, é natural a ligação do verde à Primavera, do vermelho ao Verão, do azul ao Outono, ou do preto ao Inverno. Ou ainda, o verde estaria ligado à felicidade e jovialidade, o vermelho à coragem, força e excelência, o azul à piedade, liberdade e sinceridade, e o preto ao conhecimento e trabalho.
Também os metais podem ser associados:
- o ouro (Sol) à fé e obediência; a prata (Lua) à pureza, verdade e igualdade.
É claro que os peritos em técnica heráldica recusam as associações, até porque será matéria de segredo, a ser decifrado pelo conjunto da empresa explicitada no brasão.

Acrescenta-se que o uso do escudo no braço esquerdo, dá outro sentido ao brasão enquanto bração, ou seja, uma extensão defensiva do braço, complementando outra pequena observação anterior.

Armas antigas
Voltamos assim ao assunto das armas do Rei de Portugal (conforme foi discutido no postal anterior com J. Ribeiro e D. Jorge).

(1) Acresce agora um outro símbolo estranho que também foi atribuído ao rei português:

Zurich Roll - atribuição ao Rei de Portugal (brasão do meio, sendo os outros de Inglaterra e Marrocos)

Este caso pode ser apenas uma interpretação ligeira do manuscrito, que se percebe mal, mas onde parece ler-se "portogAl", além disso faltando outra representação do símbolo real português.
Como o Rolo de Zurique é de 1330-45, este período coincide com D. Afonso IV (e não deixa de ser curioso que praticamente todos os brasões estão alterados ou apagados no manuscrito genealógico de Antóno de Holanda). Podemos pensar que o rei usou armas pessoais, além das armas clássicas, e neste caso certamente enigmáticas, caso se confirme a atribuição.

(2) Também no Rolo de Segar (c. 1282) aparecem desenhadas as armas de Portugal, mas ao contrário da reconstrução apresentada, que nos dá 5 escudos azuis sobre fundo branco, o original aparece raspado, com um fundo azul... ou seja, houve alguém que procurou apagar as armas que ali estavam, já que as restantes aparecem reconhecíveis.

Segar's Roll original (à esquerda) e reconstrução errada (à direita).

Como curiosidade, diria que o símbolo do Rei Palialogre, assumido como Rei Paleólogo, parece ser mais um canguru do que um dragão no original... é apenas uma observação lateral, porque a dinastia dos Paleólogos poderia ser bem associada ao dragão.

(3) Também no Herald's Roll (1270-80) aparece no número 25 o rei de Portugal (a partir de 1279 seria D. Dinis) com 3 quinas, mas é o número 18. King of Bornholm (roy de ...)? que é mais próximo do desenho apresentado no postal anterior, sendo que este "Bornholm" será mera dedução pois não é feita qualquer transcrição. Neste caso, como não temos acesso ao original, serve a boa comparação com o escudo apresentado por Djorge no postal anterior:
Acresce que este símbolo é bastante parecido com o atribuído ao rei da Noruega Haakon IV, só mudando as cores (que seriam vermelho e ouro, ao invés de azul e prata).

(4) Finalmente surge a menção de Djorge a um símbolo muito semelhante ao anterior, consistindo em 3 caravelas, na freguesia de Caravelas-Mirandela.

O original poderia representar barcos conforme o apresentado no escudo acima, que depois foram interpretados como caravelas, o que mudou ainda a forma de alinhamento vertical. No entanto mantém-se componentes comuns - o fundo azul, os barcos e o seu número.

Podemos estar aqui em presença de uma tradição mais antiga, ou então de um período da História de Portugal, que ocorreu na mudança da sucessão por D. Afonso III, onde ele ou os seus sucessores, D. Dinis e D. Afonso IV, podem ter escolhido armas pessoais diferentes.

Um assunto, um mistério, ou mais uma mistela, que fica por investigar melhor...

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

dos Comentários (53) armas del Rey de Portugal

Num email enviado por Djorge, é apresentado um brasão de Portugal, ou de um seu rei, que é completamente diferente dos brasões habituais, com as quinas e castelos. Citando Djorge:
Sempre conheci a bandeira Portuguesa "medieval" com as variantes constantes no sitio da wikipedia. Mas desde, há muito, que sei que o espólio de bandeiras e bandeirolas utilizadas não se limitava a esse conjunto de bandeiras da realeza.
Por outro lado, também reconheço da dificuldade existe hoje, na compreensão da heráldica Portuguesa, pois pelo que tenho lido nem os "especialistas" na área, por vezes conseguem determinar os porquês de certas vertentes.
Dito isto, segue a curiosidade de hoje. Título: 


Data de edição:  1401-1500 (estimada pelo bibliotecário)
A página em questão é a fólio 123r, onde encontramos o separador para a lista heráldica das armas portuguesas que se seguem.
Onde eu pergunto, o que é isto?
Deveriam estar aqui representados as armas dos Reis de Portugal, possivelmente do Rei e da Rainha, mas será? Também poderiam ser as armas navais, caso fossem barcos ou 3 figuras estilizadas de galeras.

Ainda que a caligrafia seja difícil de decifrar, poderemos ler e traduzir(?):
- As armas da realeza e nobreza de Portugal
- As velhas armas de Portugal
- As novas armas de Portugal

O problema é que o brasão da azul, à esquerda, não corresponde a nada que seja conhecido como "armas de Portugal", sendo mesmo raro encontrar qualquer símbolo similar noutros brasões.
O brasão "normal" é claramente aquele que foi criado por D. João I, adicionando as flores de lis, e foi depois usado por D. Duarte e por D. Afonso V. Portanto, este período temporal 1385-1481 insere-se dentro da estimativa que coloca o livro no Séc. XV.

Este poderia ter sido um qualquer engano, mas no mesmo livro (folio 2), vemos uma série de brasões em que o terceiro é exactamente o anterior dizendo ainda "Le roy de portugal", e o quarto é o clássico brasão de Castela e Leão ("Le roy de castelle"). 

Conforme inquiriu Djorge, que símbolo nacional é este?
O que representa? Três embarcações, três vagens, três foices ou cimitarras?
De forma é que se associa ao rei de Portugal?

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

dos Comentários (52) a alabarda suiça

O João Ribeiro trouxe o tema - será o estado suiço uma invenção templária?
Este tema, apesar de nunca ter sido aqui discutido, já foi considerado noutros fóruns (ou fora, já que fora é o plural de forum em latim). Por exemplo, neste link:


consideram-se diversas razões para esta associação ter algum sentido. Dado que sobre este assunto não tenho dados adicionais, vou-me limitar a citar as diversas razões, que podem ser consideradas "provas circunstanciais", mas não são concludentes.

Questão de datas. A confederação suiça começou em 1291 com um acordo entre 3 cantões vizinhos, em torno do Lago Lucerna (ou Lago dos 4 Cantões):
- Schwyz (cantão de onde surge o nome e a bandeira), Uri e Unterwalden.
No entanto o primeiro embate, que define a independência suiça será a Batalha de Morgarten em 1315, contra as tropas de Leopoldo I, Duque da Áustria, um Habsburgo.
Acontece que o fim dos templários, é marcado pela execução de Jacques de Molay em 1314, mas a ordem tinha sido abolida já em 1312, após as prisões ordenadas pelo rei de França, em 1307.

Portanto, o que se pode questionar é para onde teriam ido os templários que estavam em França (o seu maior centro), e que não foram inseridos nos hospitalários, que não migraram para Portugal, para a Ordem de Cristo, ou para outras eventuais paragens - Aragão ou Escócia.
Uma boa possibilidade seria terem sido acolhidos pelos cantões suiços, que assim receberiam uma força com capacidade militar.

A alabarda. Uma arma que tornou a infantaria suiça temível, em Morgarten, e depois noutras batalhas em que foram saindo vencedores, foi a alabarda, uma lança especialmente eficaz contra a cavalaria dos Habsburgos.
Ainda hoje, a guarda papal, que desde 1506 é exclusivamente suiça, ostenta as suas longas alabardas.
O facto que desperta alguma curiosidade será essa passagem de camponeses à invenção de armas de batalha e à constituição de um exército de referência, ao ponto de ser adoptado para protecção papal.
Além disso, os suiços passaram a ter fama de competentes mercenários, e foram usados por diversos reis. Em particular, uma boa parte da guarda de Luís XVI era suiça, e foi massacrada na revolução francesa, quando tentava proteger a família real (ver monumento em Lucerna).
Aliás, o período da revolução francesa foi particularmente complicado, pois alguns suiços franceses, adeptos revolucionários, decidiram convidar à invasão das tropas napoleónicas.

A cruz suiça. Um outro ponto de possível contacto é a semelhança entre a cruz templária, vermelha sobre fundo branco, e o símbolo da bandeira da Suiça, que é uma cruz branca em fundo vermelho, e que é também a bandeira da Cruz Vermelha internacional. No entanto, aponta-se o brasão do cantão Schwyz como estando na origem desta bandeira (o que será menos claro é saber se o cantão já teria essa cruz antes de 1291).

A banca templária. Os templários tinham ainda fama de servirem de banco internacional, e concretamente emprestaram uma considerável quantia ao rei francês, Filipe o Belo, o que contribuiu para que este tomasse a decisão de suprimir a ordem templária, e assim também a sua dívida.
Para além de terem mais este ponto em comum com os judeus, também adoradores do Templo de Salomão, outra questão que permaneceu até hoje é o papel da banca suiça, enquanto gestora de muitas fortunas mundiais, e nem sempre de origem recomendável.

Na minha opinião são ainda um conjunto de factos circunstanciais, soltos, que pode ou não ligar-se entre si, mas mais dificilmente parece faltar uma qualquer ligação directa aos Templários.
De qualquer forma, parece-me interessante, podendo ser relevante, caso se reúnam mais dados concordantes.

Aditamento (10/09/2019):
Esta teoria que liga os Templários à formação e consolidação da Confederação Suiça foi apresentada inicialmente por Alan Butler e Stephen Dafoe no livro "The Warriors and the Bankers" (1998).
Em 2010 Alan Butler deu uma pequena entrevista a um blog de templários:
onde praticamente vemos a repetição dos argumentos acima expostos. Será claro que nem estes dos autores terão sido os primeiros a pensar no assunto, nem provavelmente serão os últimos.

Há outros argumentos de contexto que dão consistência a esta teoria.

(i) A Suiça tem 3 línguas nos diversos cantões, ainda que na sua maioria sejam alemães, tal como eram os 3 primeiros cantões. Reunir sob o mesmo governo populações de línguas diferentes, sem animosidade ou desconfiança, ao longo de uma história europeia tão conturbada, nos últimos 700 anos, não parece difícil, parece praticamente impossível, sem haver uma direcção aglutinadora. 
Os outros casos de governo conjunto com línguas diferentes, se foram também ao ponto de terem raízes diferentes, como o caso do alemão, incompreensível para franceses ou italianos, ou vice-versa. Temos o caso da Bélgica, divididos entre valões franceses e flamengos, mas aí o estado artificial foi unido por uma figura real, um rei comum. Isso não aconteceu na Suiça, pois nunca houve aí uma nobreza estabelecida. A única figura comum preservada pelo mito, foi mesmo Guilherme Tell.

(ii) A posição da Suiça sendo central na confluência das fronteiras francesas, italianas e alemãs ou austríacas, acabou por também facilitar a que fossem esses mesmos países a definirem o avanço da sociedade europeia. Tudo isto foi acontecendo sem cisões internas que poderiam ter levado a guerras civis. A Suiça permaneceu colada com uma cola invisível, algo secreta, que se adequa muito bem a que estivesse em causa um plano maior.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Nuca Antara - Erédia (5)

Para terminar esta sequência de postais dedicados a Erédia e à Austrália, convém juntar mais alguns elementos.

Canhão de Dundee
Um facto interessante é que recentemente, em 2010, um rapaz que passeava numa praia australiana, em Dundee, perto de Darwin, encontrou um canhão de bronze:
na praia australiana com a maré baixa.

Exames preliminares apontavam que se tratava de um canhão de origem portuguesa, e foram diversos os peritos a afirmar isso inicialmente, pela semelhança e características dessas armas portuguesas.
Esperar-se-ia que a praia tivesse sido vasculhada de alto a baixo, à procura de outros vestígios próximos do encontrado, mas parece que não foi esse o caminho tomado pelos australianos.
Mandaram a peça para diversos testes, inclusive de luminescência, para concluir que o canhão só tinha estado enterrado 250 anos, o que curiosamente permitia incluir a visita de Cook. Não se percebe o que interessa ter estado enterrado ou não, mas enfim...
Acrescentou-se ainda que o bronze poderia ter origem espanhola, ou ainda que o mais provável era ser uma cópia feita pelos Macassares, etc, etc... depressa surgiram diversas teorias que asseguraram que poderia ser tudo.
Tudo, é claro, menos português.
Cheguei a esta notícia, de que basicamente não se ouviu falar em Portugal, através de um blog:
onde também se junta uma torre, a Torre Boyd, como possível monumento antigo de uma época  de presença portuguesa na Austrália.

Isto apenas para deixar claro que, independentemente do que venha a ser descoberto na Austrália, do ponto de vista oficial o assunto é considerado encerrado, e tudo será usado para desacreditar as provas que venham a ser encontradas, mesmo que os australianos tropecem nelas. 

Quíloa
Por exemplo, também tropeçaram em moedas de Quíloa, encontradas na Austrália (desde 1945):
Moeda de Quíloa encontrada na Austrália.

A hipótese que a moeda tenha ido parar à Austrália por comércio com o Reino de Quíloa, há 700 anos, parece ser mais apaziguadora do que outra, que é simples - os portugueses tinham saqueado Quíloa em 1505 e é natural que ainda tivessem consigo moedas, ou citando Mike Hermes:
But he says the most likely scenario is that the Portuguese, who looted Kilwa in 1505, went on to set foot on Australian shores, bringing the coins with them. “The Portuguese were in Timor in 1514, 1515 – to think they didn’t go three more days east with the monsoon wind is ludicrous,” Hermes says.
Para o responsável da investigação pode parecer cómico, ridículo ou caricato, pensar que os portugueses não iam usar três dias de navegação para chegar à Austrália... mas veja-se quanta tinta e quantas palavras já correram em cima desta "piada" que vai persistindo, pelo menos desde o tempo de Erédia.

Tratado ophirico ordenado por Manuel Godinho de Erédia
Erédia vai ainda publicar em 1616 um outro texto, e que eu conheça ficou apenas nesta versão manuscrita, disponível na Biblioteca de França "Gallica":

dirigido a Dom Philipe Rey de España Nosso Senhor : Ano 1616

o documento continua a ser interessante, mas não adianta muito mais ao que Erédia já havia publicado antes. Acrescenta algumas considerações sobre o mundo antigo e o que teriam sido as viagens do rei Salomão, com alguns mapas interessantes.

Sobre os mapas, Erédia acrescenta uma nova versão da "Índia Meridional", passando a data da descoberta para 1610.


Não é importante saber se Erédia terá mesmo contratado ou ido em exploração, até porque os holandeses já haviam declarado a descoberta quatro anos antes, nem interessa muito reparar que ainda assim este mapa de Erédia está longe de se parecer com um mapa australiano, e apresenta as mesmas virtudes - deficiências ou semelhanças - que os anteriores.

Erédia, sendo certo que seria bastante egocêntrico, acrescenta ainda uma auto-biografia, apresentando as suas raízes mais nobres e onde vai ao ponto de dar detalhes sobre a hora do seu nascimento.
Ernest Hamy, um etnólogo e historiador francês, é bastante ácido acerca de Erédia,


e em particular ridiculariza essa sua auto-biografia, bem como todo a atabalhoada historieta em que Erédia se encara como descobridor, nunca tendo saído de Malaca.
O ponto principal, ainda nessa altura, era consolidar o descrédito de dar importância à tese de Richard Major, que tinha colocado os portugueses, e Erédia, como descobridores do continente australiano. Nesse sentido, este apontamento de Ernest Hamy serve actualmente para vermos como foi tratado o assunto no final do Séc. XIX, e desde essa altura basicamente não se terá mencionado mais esse assunto. O livrinho de Hamy tem ainda outros apontamentos com marginal interesse.

As ilhas das Caraíbas são América, mas Timor e as ilhas indonésias não são Oceânia
É tanto mais engraçado atribuir a descoberta da América à viagem de Colombo em 1492, quando nessa viagem ele nem sequer tocou no continente americano, apenas avistou e desembarcou nas ilhas das Caraíbas, situadas a centenas de quilómetros do continente... a maioria delas muito mais longe do continente americano, do que estava a ilha de Timor do continente australiano. Usando o mesmo largo critério, a simples presença em Timor deveria constituir prova inequívoca da descoberta do continente australiano, e Cortesão usava isso - afirmava que a expedição de 1512 de António de Abreu tinha definido a descoberta da "Australásia".
Se os historiadores actuais tivessem o mesmo discernimento que Cortesão, pelo menos ensinava-se que António Abreu tinha descoberto a "Australásia", retirando a Janszoon ou Cook qualquer importância, excepto a de marcar a presença das respectivas nações. Mas com efeito, se nem ao nome de Jorge Álvares, que foi alegadamente o primeiro a chegar à China, é dado qualquer relevo, não é de espantar que a chegada à Austrália tenha sido tão desvalorizada ao longo da nossa história.

No meio de toda esta história, sabemos bem que não é a bem, nem a mal, que a comunidade muda a sua história. Normalmente, essa mudança é ordenada por circunstâncias políticas, ou por mudança de poder. Enquanto a ordem instituída for seguir o rebanho das cabras, será aos pastores (ou se quisermos, aos cabrões) a quem compete definir o percurso para algum lado, que é o mesmo que dizer - para lado nenhum.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Nuca Antara - Erédia (4)

Quando escrevi em 2011 que Richard Major tinha sido forçado a considerar que Erédia não tinha efectuado a viagem à Austrália, não supus que a origem disso estivesse no reconhecimento do próprio Erédia, de que não tinha feito a viagem, como acabei de expor no postal anterior.

Parece que Richard Major terá ficado bastante perturbado pelo assunto, perdendo toda a confiança nas palavras de Erédia, quando afinal até teria sido o próprio Erédia a reconhecer essa lacuna (ver: "Erédia - um português de Malaca" de João C. Reis)
De tal modo ficou Major abalado, e ressentido, com esta revelação, sentindo-se assim, redondamente enganado, e ignominiosamente humilhado, que, num penoso ungido, amesquinharia o português e as suas cartas, que o haviam induzido no execrável erro-passando a renegar o que antes dissera nos seus livros e proclamações de enaltecimento das glórias portuguesas.
"Vejo agora -- dizia -- que as supostas palavras portuguesas [dos mapas de Dieppe] são de facto palavras vlaamsch [dialeto francês medieval]. Rejeito, portanto, tudo quanto anterior-mente escrevi, e não acredito mais na descoberta da Austrália pelos portugueses."
Interessa agora o Cap. 6 do livro II, sob título "De Descobrimento a Caso", porque se Erédia não partiu em exploração, soube de quem tinha ido. Citando Erédia:
A caso se descobrirão alguas ilhas da India Meridional, como pollos mercadores da Macao da China, que tendo a carga de sandalo de Tymor, com temporal aportou aquelle junco em hua do sul, da forma de Tymor, e na ilha dezembarcarão para fazer aguada e lenha, por ter agoa de fontes e espesos arvoredos de cravo, e palmas sem encontrar nhua gente nem pisadas de pessoas salvo de veados e animaes. E esta ilha conforme as confrontações, deve ser aquella de Petan, de Marco Polo Veneto, ao parcel de Maletur.
Erédia procura em múltiplas situações identificar as terras australianas com descrições feitas por Marco Polo, e de certa forma remete até para o explorador veneziano essa descoberta... no sentido em que Marco Polo poderia ter sido o primeiro europeu da Idade Média a chegar àquelas paragens. Na concepção de Erédia, o descobridor era ele, porque tinha sido a si que o rei através dos vice-reis tinham dado o privilégio, o alvará da "descoberta".

Cidades de pedra despovoadas
Erédia continua:
Outra embarcação de Malaca com correntes desgarrada por lo boqueirão de Bale, entre a Java e Bima, passou ao sul, e descobrio as ilhas Lucatambini (Luca Tambini), povoada somente de molheres como Amazonas com arcos e frechas deffenderão a praya para nhua pessoa desembarcar em terra. E estas molheres devem ter os maridos em outra ilha apartada e os annaes e lontares da Java fazem mençao de Lucatambini.
E esta mesma embarcação mais a sul, descobrio outra ilha, cujo ambito rodeou por 8 dias de viagem sem enxergar nhua pessoa nas prayas, onde virão em algus portos sumptuosos edifficios de pedra e tijolos, de grandes cidades e fortalezas despovoadas; em que mostra haver na India Meridional aparato de urbanidade e sciencias liberaes e mecanicas.
Esta passagem é curiosa, porque Erédia explicita aqui a questão das Amazonas, que já estava mencionada no mapa anterior, conforme observámos. Mais, para além de referir que o continente australiano estava praticamente cheio de praias desertas, menciona aqui a questão dos sumptuosos edifícios de pedra e tijolos, em cidades despovoadas. Esta referência, retirando posteriores eventuais destruições por parte de holandeses e ingleses, lembrar ainda as ruínas de Nan Madol:
Nan Madol - ilha polinésia com uma cidade em ruínas desabitada, conforme as relatadas por Erédia. 

Ilha da Cera
Recuperando o assunto do naufrágio da nau São Paulo, Erédia continua:
E o piloto da nao S. Paulo que se perdeo em Samattra, com temporal que teve nos Romeros, em altura de 36 gr. austrais, correo a leste muytos dias ate encontrar mais ao sul a ilha da Sera, por muytos paos de sera que acharão na praya marcados com letras differentes de Arabia. E esta sera estava pera se embarcar em algua embarcação que se recolheo depreça pera outra ponta da ilha povoada: porque não pode ser aquela sera da praya de naufragios, porque pudera estar deretida e desfaita com calor do sol. Antes parece sera de tratto de algua terra firme do sul, de mercadores políticos.
Neste caso, Erédia dá a indicação de que a ilha de São Paulo (ou talvez a ilha Amsterdam) seria conhecida como Ilha da Cera (Erédia escreve "sera" em vez de "cera"), devido a paus de cera " com letras árabes" que aí tinham sido encontrados (talvez antes mesmo da viagem da São Paulo).
Usava esse apontamento como justificação para uma eventual proximidade de outros mercadores, originários de um continente a sul - a Índia Meridional, ou seja, a Austrália.

Papagaios.
Erédia acrescenta ainda:
E outra nao de Portugal em altura de 40 gr. austraes descobrio a terra de Papagaios com temporal, e correndo costa acharão muytos papagaios como de banda; e aquela terra parece continente e firme e a mesma de Lucach.
O nome "Terra de Papagaios" neste contexto não era aplicado ao Brasil, com é claro, e Erédia esclarece que eram semelhantes aos da Ilha de Banda, ou seja, eram mais pequenos, semelhantes aos piriquitos, e espécies similares, que como se sabe são típicos do continente australiano. Ou seja, mesmo que estivesse a tentar adivinhar... tinha acertado em cheio. Só faltaria mesmo falar em cangurus, mas os relatos que Erédia teve devem ter sido apenas de viagens costeiras.

Náufragos portugueses
Finalmente, e supreendentemente, Erédia diz o seguinte:
A nao de Olanda com temporal em altura de 41 gr. austraes, descobrio aquella terra firme do sul, onde achou muytos Portuguezes filhos e netos de outros, que com naufrágio derão a costa, e tem as mesmas armas e artelharia em seu poder, mas andão despidos e mal empanados, e vivem de suas lavouras e trabalho, no anno de 1606.
Isto significa que os próprios holandeses reportaram ter encontrado famílias de náufragos portugueses na Austrália, que basicamente sobreviviam, mal vestidos, mas ainda com armas e artilharia portuguesa em seu poder.
Não se percebe se estes portugueses foram deixados pelos holandeses, ou se regressaram com eles, mas tudo parece indicar que esses portugueses ficaram lá, talvez esperando o resgate dos compatriotas, que nunca terá acontecido, ou talvez formando um pequeno reino tribal independente, conforme parecem indicar os desenhos dos mapas de Dieppe (esquecendo aqui outras hipóteses ainda mais especulativas).

domingo, 1 de setembro de 2019

Nuca Antara - Erédia (3)

Godinho de Erédia escreve em 1618 a

em 3 Tratados, ordenada por Emanuel Godinho de Eredia. 

onde se acaba por entender o que se passou, ou pelo menos, uma boa parte da história.

Mapa-múndi
Desenha vários mapas, onde se destaca um mapa-múndi, bastante bom, atendendo à qualidade que depois se seguiria, em termos de mapas holandeses ou franceses.

Neste mapa vêem-se os rios, inclusive os rios canadianos do Oceano Árctico, ou seja, o rio Yukon e afluentes, bem como os rios Ob e possivelmente o Lena na Rússia. Aliás todos os grandes rios estão bem representados, faltando talvez o maior contorno do Mississipi.

Antárctida
A novidade deste mapa não é apenas apontar Luca Antara, como península de um continente australiano maior (que designa por Índia Meridional), mas também definir a parte australiana oriental (à esquerda no mapa) como descoberta pelos castelhanos em 1609, e especialmente definir uma parte sul, contígua a uma península que saía da Antártida, como tendo sido descoberta pelos portugueses em 1606. A este propósito veja-se, por exemplo:
onde se argumenta que este mapa atesta a presença portuguesa nas terras antárcticas em 1606, falando ainda do similar mapa de Lavanha:
 "Região dos papagaios, assim chamada pelos portugueses, devido ao incrível tamanho que nela têm as ditas aves". Papagaios na Antártica? Que loucura é essa? O historiador Luís Thomas, da Universidade Nova de Lisboa, não tem dúvidas: as tais aves de "incrível tamanho" não são outra coisa senão pingüins. Se a inscrição de Lavanha ainda dá margem a alguma controvérsia, o mesmo não pode ser dito de uma outra, que aparece num mapa elaborado por Manuel Godinho de Erédia.
Dada a má localização do contorno, no que diz respeito à latitude (demasiado próximo de África), continuo a preferir a descrição de Ramusio de 1560, onde afirma que os portugueses sabiam desse continente, mas estavam proibidos pelo rei de navegar abaixo do Cabo da Boa Esperança em direcção ao Polo Sul.

Empresa da Índia Meridional
Erédia, quando escreve em 1618, está perfeitamente ciente que perdeu a oportunidade de ficar para a História como descobridor da "Índia Meridional", mas não se conforma pela forma como isso aconteceu. 
E pera esta empreza, no mesmo tempo foi despachado e provido Manuel Godinho de Erédia, em o habito de Christo, e o titulo de Adelantado da India Meridional, pera passar ao sul com estas promessas, para efectuar os descobrimentos meridionaes e tomar posse daquellas terras pera e coroa de Portugal no ditto anno de 1601. E não teve effecto, porque estando em Malaca, prestes para fazer a viagem da India Meridional, sobrevierão as guerras daquella fortaleza com os Malayos e Olandezes que impidirão os descobrimentos, por ser necessária gente pera defensão de Malaca, sendo governador daquella fortaleza Andre Furtado de Mendonça.
Inclui o seu retrato neste livro, assinalando no globo "Luca Antara", bem como o brasão da sua empresa - a Empresa da Índia Meridional:

 

O moto da empresa, abaixo de uma pomba que traz o ramo de oliveira:
columba venit portans ramum
ou seja, "a pomba regressou trazendo um ramo". Erédia usa o episódio em que Noé para averiguar da existência de terra, após o dilúvio, manda uma pomba, até que ela regressa trazendo um ramo de oliveira. Como já referimos, não deixa de ser interessante o nome de Colombo se ter ajustado ao seu papel de pombo, levando a notícia, ou o ramo, à arca espanhola.

O que interessa aqui é que Erédia sabia da existência de terras a sul, houve a encomenda de exploração, dada pelos vice-reis Francisco Vasco da Gama (1597-1600), e Aires de Saldanha (1600-1605), que lhe deram a ordem de descoberta, para a qual definiu a empresa com este brasão singular, porque Erédia acabou por não ir em exploração, apenas recebeu "ramos de pombas", ou seja, informação de outros que foram.

Boicote da Ordem dos Pregadores (Dominicanos)
Erédia explica assim por que razão não partiu em exploração, devido ao ataque holandês a Malaca, mas inclui razões internas, numa certidão assinada por Pedro de Carvalhães, capitão da fortaleza do Ende, que diz (Livro II - Cap.8 - Da Certidão de Luca Veach). 
Diz ele (Carvalhães):
(....) E com esta informação mandei com brevidade negocear e apetrechar 2 embarcações de remo e providas do necessario com pilotos e marinheiros Endes, e outros officiaes, para efectuar esta viagem de Luca Veach. E estando as embarcações a ponto para levar ancora e dar ao vellas, então os padres da ordem dos Pregadores como vigairos daquella Christandade e administradores do sul, me requererão com muyta instancia, impedisse em todo caso aquella viagem, porque os Christãos, como ignorantes daquella navegação, sem conhecimento de alturas, sem duvida tinham por certo sua perdição e mortes naquella Oceano. E por respecto deste requerimento solemne de religiosos, desfis o designo, e não teve efecto aquella rica viagem de Luca Veach, ou ilha de ouro. E por o descobridor Manuel Godinho de Eredia pedir esta enformação pera bem de sua viagem e empreza, e pollo que cumpre ao serviço del Rey, juro por los sanctos evangelhos passar tudo na verdade, e ser meu o sinal abaixo. Em Malaca aos 4 de Octub. do anno 1601. Pedro de Carvalhães.
A Ordem dos Pregadores é a Ordem de São Domingos, ou Ordem Dominicana, e foi esta ordem que coordenou a Inquisição, sendo portanto natural que o Capitão Carvalhães não quisesse vir a ter problemas com a inquisição, caso não acedesse ao pedido da ordem.

Portanto, Holandeses e Dominicanos foram responsáveis naquela altura pela inacção de Erédia, um Jesuíta, que não se vai conformar com esta situação - talvez devido à sua origem mista na fidalguia portuguesa e nobreza Macassar - mas que ainda assim parece ter sido impotente para a alterar, uma vez que os holandeses ao mesmo tempo que atacavam Malaca, declararam a descoberta australiana logo em 1606.