Alvor-Silves

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Fons Vitae

A Sé Catedral do Porto tinha uma interessante pintura que está agora exposta no Museu da Misericórdia, no Porto, onde se poderiam ver retratados D. Manuel e os seus filhos. 

O blog "do Porto e não só" apresentou um informativo texto acerca de antigas controvérsias e teses acerca desta pintura, começadas no Séc. XIX. 
Ainda que seja curioso ver ali descrita uma bizarra tese (de J. Moreira Freire, em 1896) que apontava a autoria para um Van Eyck, querendo ou crendo estar ali representada a prole de D. João I (inclusive os bastardos Afonso e Beatriz); essa tese foi rapidamente rebatida (por Duarte Leite), em resposta ao jornal, no dia seguinte, em termos mais ou menos devastadores.

O quadro não aparenta trazer nada de invulgar.
Apresenta em cima, Jesus Cristo na cruz, tendo ao lado a mãe, Santa Maria, e S. João Evangelista. 
O sangue de Jesus cai para uma larga taça como fonte, descrita como 
"fonte de misericórdia, fonte de vida e  fonte de piedade".
Em baixo, tomando lugar de destaque (secundário), ao centro estão o rei e a rainha, D. Manuel e D. Maria de Aragão, e ao lado os seus 8 filhos (seis rapazes, quase cópias do pai e a seu lado, e duas raparigas, quase cópias uma da outra, ao lado da mãe) - ou seja:
  • pelo lado dos rapazes, o futuro D. João III, o infante D. Luiz, o infante D. Fernando, o futuro cardeal D. Afonso, o futuro cardeal e rei D. Henrique, e o infante D. Duarte, Duque de Guimarães;
  • pelo lado das raparigas, a futura imperatriz D. Isabel, e a infante D. Beatriz, depois Duquesa de Sabóia.
Todos eles são nascidos entre 1502 e 1515, o que torna a datação de 1518-19 como provável.
Como aspecto ainda secundário, são identificados o cardeal como sendo Martinho da Costa, e no lado oposto, em trajo monástico, a rainha velha, Dona Leonor.

Tudo isto, para além de provável, está documentado em registo de 1845, aquando de um restauro, confirmando/sugerindo os personagens mencionados acima. Além disso alega que o quadro teria sido oferta de D. Manuel à Confraria da Misericórdia na cidade do Porto.

Por esta altura, e segundo o blog "do Porto e não só", havia uma convicção generalizada de que o quadro seria da autoria de Grão Vasco, conforme era também dito por Atanazy Raczynski,

No entanto, mais recentemente, ficou opinião comum que a obra deverá ser da escola flamenga, e mais concretamente do círculo de Barent Van Orley.  Isso parece bastante provável, atendendo a outros quadros (posteriores) atribuídos a Orley ou à sua escola. Nomeadamente, o tema da cruz com Stª. Maria e S. João Evangelista está presente de forma muito semelhante numa obra sua:
Cristo na Cruz com Maria e João Evangelista, (Barent van Orley, c. 1525)
(que diz - distribuirei este precioso sangue aos necessitados), e de Isabel de Áustria (à direita)

Ou ainda neste tríptico atribuído a um aluno seu, Pieter Van Aelst

  
Triptico da Crucifixão (Pieter Van Aelst, 1525-30)
(com representação dos doadores, talvez Margarida de Áustria e o pai)

Assim parece razoável que o Fons Vitae seja enquadrado na linha destas pinturas, e assim remetido à escola de Barent van Orley, ou provavelmente ao próprio. Quanto à figuração do Sangue Sagrado, foi associado também à influência flamenga, pela cidade de Bruges. Há aí uma relíquia, supostamente com o sangue de Cristo, retirada por José de Arimateia, e depois trazida por cruzados no Séc. XII para a cidade de Bruges.

Relativamente a uma evocação semelhante, com fonte no sangue de Cristo, está num tríptico flamengo de Jean Bellegambe, algo surreal, invocando um banho místico, o que pode ser relacionado com a alegoria cristã entre o sangue e o vinho, neste caso para purificação das almas.

Jean Bellegambe: Tríptico do banho místico

Como a Flandres era parte do grande ducado de Borgonha que, com o casamento do imperador Maximiliano, passou a estar nos domínios Habsburgo, a próxima relação de D. Manuel e D. Leonor com o primo imperador, tornam ainda mais natural que a obra pudesse ter sido aí encomendada.
De facto, os problemas dos Habsburgos com os Países Baixos vão acentuar-se depois, especialmente no reinado de Filipe II de Espanha.

Qual a fonte de vida representada?
Há um primeiro detalhe que convém aqui sublinhar.
Como é natural, nos quadros com a crucifixão não se representa São José ao lado Stª Maria, porque o pai formal de Cristo já era falecido. Mesmo invocando figuras falecidas, não conheço representações que forcem presenças erradas na contemporaneadade. No momento da Cruz, a aparecer S. João, não seria nunca S. João Baptista. Esse santo é apenas representado aquando do Baptismo.

Como figura masculina não é invulgar ver junto à cruz S. João Evangelista, mas não com um destaque tão grande, como vemos no "Fons Vitae", sendo mais natural estar num plano inferior, junto ao solo, como nos outros dois quadros que apresentamos.

Podendo ter sido ou não D. Manuel o dono da obra, ao ter como destino a Confraria da Misericórdia, será de considerar que a rainha viúva, D. Leonor, estivesse envolvida no tema.

Ora, o ponto que aqui quero destacar é que o quadro ganha um significado mais amplo, considerando que a representação principal poderá ser de D. Leonor com D. João II, vendo o filho, o príncipe D. Afonso sacrificado, na figura de Cristo.
Poderia ser entendido como um sacrifício do filho a bem da vida do reino... e neste caso, o seu sangue, a fonte de vida dinástica, seria representada pelos 8 filhos de D. Manuel.

É claro que isto trata apenas de uma questão de interpretação, e não havendo quaisquer fontes documentais nesse sentido, não passará de uma mera hipótese. 
No entanto, essa hipótese deve ser considerada, porque a perda de um filho ganha um carácter mais dramático no caso de D. Leonor, por se tratar de filho único. Parece pois natural que D. Leonor fosse particularmente tocada pelas invocações ao sacrifício de um filho, em analogia com a Madre de Deus.
Neste quadro, as figuras de Stª Maria e S. João Evangelista têm eventuais semelhanças com outras representações de D. Leonor, ou mesmo de D. João II. 
Nada disso constitui um indício, o maior indício é que a composição ganha um sentido acrescido se for interpretada desta maneira, e é apenas isso que interessa referir. 

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Auto e a Auta

O "Grande Diccionario Portuguez" de Domingos Vieira, começa com uma introdução (com mais de 200 páginas) de Adolfo Coelho, "sobre a língua portugueza", começando com uma certa grosseria de poleiro contra as opiniões do Cardeal Saraiva (ditas célticas), ou mesmo Alexandre Herculano (do romano vulgar), sobre a origem da língua nacional, já que estes não seguiam os cânones duma pseudo-ciência glótica alemã, em ascensão. Estamos no período em que a mediocridade nacional mais se manifestava por um parolismo deslumbrado, em vista de uma mão cheia de algo (ciências materiais), e uma mão cheia de nada (pseudo-ciências humanas), que aliás deu origem mais tarde a um problema mundial, por outro Adolfo, via interpretações fantasiosas da ligação germânica ao sânscrito.

Interessa-me aqui um minúsculo trecho (pág. xxxi):

  • Por exemplo na edade media dizia-se trauto, auto; no seculo XVI reforma-se essa pronuncia sobre o typo latino e começa-se a escrever tracto, acto, e a pronunciar trato, ato, em que o c latino não se acha representado, ao contrario do que se dá nas fórmas trauto, auto, em que o u o substitue. O numero de factos d'esta natureza é consideravel e constitue uma das ditferenças mais importantes entre o portuguez medieval e o portuguez classico (o portuguez a partir dos grammaticos Gil Vicente, Fernão d'Oliveira, Barros, isto é, do primeiro quartel do seculo XVI).

Isto para enfatizar que a palavra "auto" era sinónimo de "acto".
Se o dissesse sem citar outra fonte, seria ligeiro, deixo assim uma "douta" ou "docta" opinião.

Quando lemos "Autos" de Gil Vicente é por anacronismo. Não sendo ignorância, não faço ideia da razão pela qual não se passou a escrever "Actos", ou agora na novilíngua, "Atos"; ou seja os alunos deveriam estudar o "Ato da Barca do Inferno". 
Uma alternativa interessante para uma "Acta" seria escrever-se "Auta".
Assim, quando a polícia "autua", usa português arcaico para dizer que "actua". 

Surge isto a propósito do Retábulo de Santa Auta, cujo actor, aliás autor, é desconhecido!
Mas tem-se sugerido que o pintor seja Cristóvão de Figueiredo.

A obra foi encomendada pela Rainha Dona Leonor, que teria uma grande devoção por Santa Úrsula, e pediu algumas relíquias ao primo, o Sacro-Imperador Maximiliano I, filho da imperatriz Leonor de Portugal, sua tia (irmã do rei D. Afonso V e do infante D. Fernando, seu pai).

Quando falamos no domínio dos Habsburgo nas dinastias europeias, será designação pelo lado masculino. 
Pelo lado feminino, convém não esquecer o papel fulcral que tiveram as meninas de Avis, começando pela infanta D. Isabel, duquesa de Borgonha, que orquestrou este casamento da sobrinha Leonor com o imperador Frederico III. O filho, o imperador Maximiliano iria casar-se com a neta da duquesa, e herdar o ducado da Borgonha. O neto de Maximiliano, o imperador Carlos V herdaria o maior império até então e casaria com D. Isabel, filha de D. Manuel. 
Acerca da influência que a imperatriz Leonor de Portugal teve nos Habsburgos pode ler-se na Wikipedia: "As Frederick was rather distant to his family, Eleanor had a great influence on the raising and education of Frederick's children, and she therefore played an important role in the House of Habsburg's rise to prominence."

Bom, mas o assunto aqui é Leonor, sobrinha de Leonor, rainha viúva quando as relíquias enviadas pelo primo chegam a Portugal, em 1517. Seriam relíquias (ossos) de Santa Auta, uma das ("11 mil") virgens, companheira de Santa Úrsula, e que seriam colocadas no Convento da Madre de Deus, ilustradas por um retábulo com cinco painéis, de 1522.

Ao contrário de Santa Úrsula, o nome de Santa Auta (Aukta em alemão) só parece tornar-se conhecido por esta transladação, e que eu saiba não voltará a ter outra alusão significativa.

Qual a razão da tamanha importância que lhe deu Dona Leonor?
- Digamos de outra forma, interessaria a Dona Leonor, focar-se numa companheira quase desconhecida de Santa Úrsula?

O padrão deste vestido, típico da realeza da época, concord
com o da dalmática do santo, ou da veste do rei, nos Painéis de S. Vicente.
Como detalhe, confronte-se o cordão simples de pendente de 5 pérolas aqui usado, 
com o cordão simples de pendente de 5 pérolas usado pela rainha nos Painéis.

A lenda conta o seguinte: Santa Úrsula iria casar-se com Conan da Bretanha, mas o casamento nunca se realizou porque Úrsula ao ter sobrevivido a uma tempestade, decidiu fazer uma peregrinação europeia, dirigindo-se a Roma, ao Papa Círiaco (talvez Siricius). A peregrinação teria terminado num massacre às mãos dos Hunos em Colónia, em 383 d.C. O número usado "onze mil virgens", foi sempre considerado um exagero, por erro de transcrição ou interpretação. 

Parece um assunto distante, mas há alguns detalhes. 
O imperador Maximiliano casou-se 2ª vez, com a duquesa Ana da Bretanha, que clamava descender de Conan. A Bretanha era então independente. Porém, o rei francês Charles VIII, com medo de ver a Bretanha perdida para os Habsburgos, e depois de já ter a Borgonha anexada pela sua política casamenteira, decidiu raptar/forçar Ana a firmar a união da Bretanha à França, o que acabou por acontecer com benção papal. 
Se o filho (e o irmão) de D. Leonor casaram com a princesa Isabel de Castela, sem descendência viva, seria o filho de Maximiliano a casar-se com a irmã, Joana de Castela, e a assegurar que o neto, Carlos V, fosse o herdeiro espanhol. 
Outro detalhe é que Colombo nomeou as ilhas Virgens das Antilhas, por terem sido avistadas no dia de Santa Úrsula. Curiosamente, também João Fagundes terá nomeado como "onze mil virgens" as ilhas St. Pierre et Miquelon, em 1520 (estas ilhas mantêm hoje no brasão o típico arminho bretão).

Mas a questão é:
- Interessaria a Dona Leonor, no final da sua vida, ver isto representado?
- Não seria mais relevante ver aí representados momentos marcantes da sua vida? 

Como a história de Santa Úrsula é aqui razoavelmente deturpada na sua encomenda, colocando-a sempre com Conan, e até com imagem de um casamento - que segundo a lenda nunca teria acontecido - será de questionar que a representação daqueles 5 painéis corresponda efectivamente a Santa Úrsula e Santa Auta, pois até os navios representados exibem o pavilhão português.

Vejamos um dos painéis laterais, denominado:
"Casamento de Santa Úrsula com o Príncipe Conan"

A questão que surge, pelo menos a mim, é se este casamento não invocaria o casamento da própria Dona Leonor com o "Príncipe Perfeito", ou seja, com o então futuro D. João II. 
A imagem que apresentámos em cima, da Rainha D. Leonor, no livro de horas (ou "livro de oras", enquanto orações), parece ajustar-se bem a esta figuração de Santa Úrsula.

No outro painel lateral:
"O Papa Círíaco abençoa Santa Úrsula e as suas companheiras"

... será de colocar a hipótese de estar aqui invocado outro momento marcante da sua vida - as exéquias pelo falecimento do seu único filho, o príncipe D. Afonso. 
Como já referimos, na lenda nunca o príncipe Conan acompanha Santa Úrsula na sua viagem, e portanto não está presente na visita ao Papa.
Assim, estas imagens devem levantar no mínimo essas interrogações.

A necessidade de representar isto figurativamente, e não explicitamente, prende-se com toda a complexidade de intrigas e maldicência cortesã, que Leonor assim evitaria.

O que pode ser visto como manifestações de êxtase das devotas pela benção papal, pode também ser visto como êxtase fúnebre pela perda do filho (a jovem ao lado do rei, pode representar a princesa castelhana).

Quanto ao painel central:
"Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens"

está encabeçado pela provável representação, ou confrontação, entre o rei e a rainha (cabeças em relevo). Aqui o rei está virado a Oriente, e a rainha aparece virada a Ocidente. 
A escolha de D. João II, no Tratado de Tordesilhas, foi o hemisfério oriental. 
Seria ainda essa a escolha mais sangrenta, vitimando milhares de jovens, de "virgens", enviados para uma confrontação de proporções gigantescas, quando as esquadras portuguesas no Índico defrontavam exércitos "pagãos" de dimensões muito superiores. Em 1517 a Espanha ainda não tinha iniciado a conquista de aztecas e incas, um genocídio para os índigenas, mas muito menos letal para os invasores.
A aventura da peregrinação de Santa Úrsula e virgens poderia antever a missão de uma casta fé missionária que iria ser iniciada nas décadas seguintes, nomeadamente por S. Francisco Xavier.

O que vemos nesta cena a dois tempos não são as águas do Reno em Colónia. São as naus lusitanas ao fundo, espelhando um domínio marítimo. Mas esse domínio marítimo não impedia que fossem dizimadas virgens pela costa. Mais, as mortes entravam mesmo no batel real, que ali inclui papa, bispo, Conan e Úrsula (mais uma vez sem correspondente na lenda).
Conforme Dona Leonor tinha testemunhado, as decisões sobre as navegações iriam também trazer combates políticos letais no interior das famílias.

É claro que esta suposição interpretativa é meramente especulativa, e nem me interessa que seja mais que isso. Simplesmente dá ao observador a possibilidade de ver as coisas de uma forma diferente.
Certamente que haverá outras interpretações, pois quando as obras se abrem aos olhos do observador, cada qual poderá ver o que bem entender, nomeadamente não ver mais que a versão oficial.

O que será mais estranho em Portugal, é que estas tentativas de interpretação variada, ou simplesmente não existem (tudo é interpretado literalmente), ou no único caso mais conhecido de "obra misteriosa", os Painéis de S. Vicente, aí as opiniões acumulam-se.

Aliás é simples.
Chamado a decidir entre duas opiniões muito pensadas e discordantes, o que faz um português? 
- Produz imediatamente uma terceira opinião!
E eu, que padeço desse mal, sei bem que o individualismo é uma das características mais notáveis e mais desgraçadas da comunidade nacional.

Auta, a santa desconhecida, representaria pouco mais do que uma personagem que servia uma auto-visão, ou ainda servia a acta dos acontecimentos pelo lado de Dona Leonor, uma santa acta.
Seria um apêndice visual aos autos, ou actos, que o seu ourives, Gil Vicente, escreveu de forma teatral, e que bem reflectiam a sociedade da época.

domingo, 19 de agosto de 2018

Peças dos Painéis de S. Vicente (5)

Terminei o último texto relativo aos Painéis de S. Vicente (4) da seguinte forma:

Agradeço ao Clemente Baeta ter despertado de novo o assunto, que estava enterrado, para mim. 
É tempo de voltar a fechar a tampa do caixão e dar nova paz a este assunto.

Escrevi isso na primeira semana de 2013, e já lá vão mais de 5 anos... quem diria!
Não tenho quase nada a acrescentar, porque não me preocupei mais com o assunto.

No entanto, relendo o que escrevi à época, terá interesse resumir o assunto à matéria de facto, num pequeno texto. Numa troca de emails com Clemente Baeta, foi-me dado conta que voltou um cheiro bafiento a rondar o caixão, cheiro de plágio literal de textos ou de ideias antigas de outrém, por exemplo, das já constantes do site paineis.org, de António Salvador Marques.

A minha opinião acerca dos painéis é diversa da maioria das opiniões actualmente existentes, porque é demasiado óbvia e não vai buscar nada de estranho. Creio que terá sido opinião de muito boa gente, cuja voz terá sido esmagada por um nonsense mais conveniente. De facto, sendo uma obra singular, resultante de um espírito singular (D. João II), não teve o propósito ser mistério, mesmo que requeresse uma interpretação além do trivial.

Foi inicialmente apresentada esta tese em 2009, neste texto:


e depois desenvolvida em 3 textos:

Aqui ficará um resumo do essencial, sem acrescentar nada muito significativo de novo.
____________

1º) Os painéis de S. Vicente
Os painéis estiveram fora do conhecimento popular, até que foram notados em 1882 por Columbano Bordalo Pinheiro, quando serviam de andaimes na restauração da Igreja de S. Vicente de Fora. Desde aí serviram para inúmeras teorias, umas mais estranhas que outras.

Painés de S. Vicente - em melhor resolução na Wikipedia

Este é o posicionamento clássico e correcto dos painéis, resultante das marcas no pavimento, que definem um ponto de fuga, típico da pintura da época.

Que o segundo painel possa ter uma iluminação diferente nas sombras (algo especulativo) tem menos relevo que notar que no quarto painel as sombras não fazem qualquer sentido (veja-se que o ângulo das sombras dos dois cavaleiros ajoelhados não é concordante com uma mesma fonte de luz).

2º) A datação
(a) Uma análise dendocronológica estabeleceu a datação mínima (terminus post quem) para as madeiras, reportando-as a 1442-52, mas como é óbvio isso não implica nenhuma datação máxima (terminus ante quem), e parece natural que para uma pintura importante seja usada madeira mais velha e não madeira acabada de cortar, que poderia depois empenar.

(b) O manuscrito do Rio de Janeiro. 
Esse manuscrito é aparentemente a única fonte antiga(*) que refere os painéis e corta a direito nas teorias actuais. Conforme se pode ler em paineis.org
O documento [Manuscrito do Rio de Janeiro] data de fins do séc. XVI, e nele se refere expressamente que os dois painéis, descritos de memória, já não se encontram no local, sendo o seu paradeiro ignorado («... dirão os cónegos onde estão...»).
A forma como o autor recorda os painéis, atribuindo-os a um tal Mota, pintor de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o «santo», e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através da identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso, filho de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma estranha ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus protagonistas, por parte de quem se mostra informado acerca de outros retratos de reis existentes em Lisboa.
Acontece que sem saber deste manuscrito, e por razões mais óbvias, tinhamos chegado à "mesma ignorância", ou seja que:

- Os painéis foram feitos a propósito da morte do príncipe D. Afonso, filho de D. João II.

Não é preciso muito para concluir isso. Admitindo que o terceiro painel tem a figura de um rei, de uma rainha e de um príncipe, as hipóteses ficam reduzidas.
Sendo o rei D. Afonso V, convém notar que o príncipe só poderia ser D. João II, que nasceu no ano em que a mãe morreu. Ora, isso fica assim fora de causa, e seria suficiente para deitar abaixo qualquer pretensão minimamente racional nesse sentido... se houvesse racionalidade na discussão!

Devido à datação das madeiras, não teria sido feito no reinado de D. Duarte (que morre em 1438), e tudo isto empurra-nos imediatamente para D. João II.
O pequeno príncipe poderia ser o príncipe D. Afonso, mas não é isso que indica o Manuscrito do Rio.  Resta pois a execução a propósito da morte de D. Afonso em 1491, altura em que D. Jorge tinha 10 anos, o que se ajusta perfeitamente à sua aparência.

(c) As datações usadas estão separadas por mais de 40 anos. A moda e a pintura sofreram algumas mudanças. Colocar uma obra destas até 1460 é esquecer o trajo típico com que nessa data era apresentado D. Afonso V:
Imagens de D. Afonso V em 1460 possivelmente do pintor Georg von Ehingen.

... ou seja, e por exemplo, ainda subsistia a moda de sapatos pontiaguados, inexistente no quadro (o rei usa botas de pele, redondas).
Depois, há um outro detalhe complicado... a menos que a obra tivesse sido executada no estrangeiro (onde e por quem?), a pintura portuguesa teria aqui um epifenómeno, que não influenciaria nada nem ninguém nas décadas seguintes. Os traços semelhantes, inclusive no pavimento, usados por Nuno Gonçalves noutras pinturas identificadas, podem indicar a sua autoria, mas nada impedia que fosse o tal Mota, talvez seu discípulo. É um detalhe secundário ou terciário, face a tudo o resto.

3º) A rede e o camaroeiro
Há quem goste de ver no 2º painel um pescador com uma rede.
Mas, por azar das coincidências, o corpo do príncipe D. Afonso foi trazido na rede de um pescador, e a mãe, a rainha D. Leonor, deu tal importância ao assunto, que colocou a rede do camaroeiro como seu símbolo, associando-o a si, e às vilas de seu domínio. 

Essa rede inclui três personagens desse 2º painel... e se o intuito era simplesmente ilustrar pescadores (e que pescadores!), havia outras maneiras de colocar a "rede", sem ser a envolvê-los.
É este painel que é suposto ser aquele que tem uma iluminação discordante... o que seria ainda natural se o pintor quisesse focar que estavam guiados por uma luz discordante, na rede que os envolvia, ou apanhava.

4º) As barbas e o barbadão
O que descrevi até aqui é mais do que suficiente para datar o quadro, e o que trata. 
Diria que são os factores principais, sem necessidade de grande interpretação ou conjectura. 
Suspeito que dezenas de pessoas terão concluído o mesmo, ou algo similar.

Se eu trouxe alguma coisa de novo à discussão foi em ter reparado num outro detalhe concordante... 
Por exemplo, pode ler-se em Garcia de Resende, no episódio da morte do príncipe D. Afonso:
(...) e disse aos que na casa estavam: "Ahi vos fica o principe meu filho", sem poder dizer mays pallavra. E com ysto se levantou antre todos hum muyto grande, muyto triste e desaventurado pranto, dando todos em si muytas bofetadas, depenando muitas e muy honrradas barbas e cabellos, e as molheres desfazendo com suas unhas e mãos a fermosura de seus rostros que lhe corriam em sangue, cousa tam espantosa e triste que se nam vio nem cuydou. 
(...) El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e sentimento se trosquiou. E elle e a raynha se vestiram de muyto baixo pano negro. E a princesa trosquiou os seus prezados cabellos e se vestio toda d' almafegua e a cabeça cuberta de negro vaso. E na corte e en todo o reyno nam ficou senhor nem pessoa principal nem homem conhecido que se nam trosquiasse.
Acontece que nos painéis eram apenas três as figuras que não estavam "tosquiadas", mantendo larga barba e cabelo. Duas delas tinham as mãos juntas, e à outra não se viam as mãos. Lembrei-me dos túmulos, onde é frequente ver as pessoas de mãos juntas, e pensei que essa seria uma codificação para indicar quem figurava no quadro, mas já estava morto à data.

Ora, com essa simples sinalética fazia sentido a ver o Infante D. Henrique ali, já depois de morto.
Na altura, é claro, nem me passava pela cabeça a "teoria da conspiração" que pretende estabelecer que nas Crónicas de Zurara o rosto do Infante D. Henrique foi substituído... Bom, mas isso é já um detalhe secundário, irrelevante para a datação.

Bom, e como há sempre mais um detalhe, note-se a rainha com a "cabeça coberta de negro vaso"... tal como têm um "vaso negro" na cabeça o pequeno príncipe, D. Jorge, ou o pai, D. João II. A almafega era um burel branco de baixa qualidade, usado no luto da nobreza, mas aqui o tom foi negro, como indica Garcia de Resende. De alguma forma isso contrasta com os barretes coloridos do 4º painel, talvez porque não fossem pessoas directamente ligadas à família real.

Curiosamente, e ao contrário, ninguém fez barba ou cabelo, aquando da morte de D. João II:
E todo o reyno foy vestido de burel, almafega, e vaso, com tamanho nojo e tristeza, que ha cidade de Lisboa alem dos grandes e solemnes saymentos que polla sua alma fez, mandou apregoar que nenhum barbeiro fizesse barba nem cabello dahi a seis meses sob muy graves penas e assi se comprio muy inteiramente o que nunca se vio nem leo que por outro rey se fizesse.
E ainda como curiosidade, a questão relativa à "rede" liga-se nas barbas ao Barbadão, cognome do judeu sapateiro avô materno do primeiro Duque de Bragança.

5º) A descrição do príncipe D. Afonso
Já o tinha referido, mas coloco aqui em citação Garcia de Resende, sobre a opinião que havia do malogrado príncipe. Na boca do rei coloca a seguinte frase:
"Eu verdadeiramente per cima de tanta tristeza, tanto nojo, e desconsolaçam dou muitas graças a Deos pois elle foy servido de me assi levar meu filho, que elle soo sabe o que faz, e nós nam podemos saber nem alcançar seus secretos e escondidos juyzos. E vos certefico que de hũa cousa soo estou em algũa maneyra confortado, que he parecer-me que Nosso Senhor Jesu Christo se lembra da gente destes reynos, porque meu filho nam era pera ser rey deles."
Ora dizer que estava confortado porque "... Cristo se lembrava da gente destes reinos, porque o filho não era para ser rei deles", não seria propriamente algo que D. Leonor gostasse de ouvir. Mas Resende vai mais longe e explica logo de seguida:
E dizia el-rey ysto porque o principe era muyto cheo de branduras e prezava-se muito de sua gentileza; e vistia-se sempre de tabardos, e com martas ao pescoço forradas de cetim e guarnecidas d' ouro, cousa mais de molheres que de homens; (... e continua)
Ou seja, D. João II e próximos, achavam que o filho era fraco e efeminado, o que corrobora a opinião constante do Manuscrito do Rio de Janeiro. 

Por isso, por muito que o Príncipe Perfeito, que encomenda os Painéis, colocasse a rede na casa de Bragança, a sua "grande boca" teria levado a Princesa Perfeitíssima a considerar outro autor, solícito a promover como sucessor o seu bastardo, D. Jorge. E no meio dessa tão grande perfeição surgiu logo de seguida a "peçonha" que vitimaria D. João II.

6º) Os personagens
Os descendentes do judeu sapateiro Barbadão, os Duques de Bragança, reinavam em Portugal aquando da descoberta dos painéis... e não estariam propriamente interessados em recordar aquele episódio (ou até em ouvir a Barca do Inferno de Gil Vicente). Já tinham arrumado com o ducado de Aveiro/Coimbra no processo dos Távoras e não queriam mais tormentos da sua bastardia.

A classificação dos personagens é secundária, definidos os principais do 3º painel, onde só falta acrescentar D. Beatriz de Viseu, a mãe da rainha, mulher poderosa, que intermediou as contendas entre D. João II e a rainha Isabel, a Católica, de Castela, sua sobrinha.

Quanto aos restantes, deixo aqui o que me pareceu possível e consistente, remetendo uma explicação mais detalhada para os 3 textos anteriores. Identificar um a um é tarefa algo impensável para um amador, e pouco interessa ir a esse detalhe. 
Interessa apenas para exibir a consistência que encontrei.

Possível identificação dos principais personagens dos Painéis, conforme escrevi em 2013.

(a) Que o primeiro painel tenha os reis da Dinastia de Avis que antecederam D. João II, pois isso não é só uma tentativa de dar consistência aos painéis. Num quadro deste tipo não apareceriam frades ou bispos com posição de tanto destaque. Especialmente se já estivessem mortos, como parece indicar a regra das mãos juntas. Há ainda semelhanças de fisionomia que não descartei, é claro.

(b) O segundo painel tem os opositores a D. João II, pelo lado Bragança, começando com um provável D. Nuno Álvares Pereira, em posição de mendigo penitente. O seu aparecimento ao lado de D. João I parece indicar isso, e a fisionomia conhecida também. É sogro de Afonso de Bragança, e daí terão chegado ao genro os diversos condados com que foi granjeado. Há um espaço para o sucessor, aparecendo directamente Isabel de Barcelos, sua neta, como principal artífice da rede bragantina. Era mãe de D. Beatriz de Viseu, avó da Rainha Isabel de Castela, e há quatro razões para ali ser colocada... não as repito aqui. 

(c) O terceiro e principal painel tem a família real, conforme já indiquei. Na altura, assumi que seria o Infante D. Henrique, com as mãos juntas, e o chapéu borgonhês. Devo dizer agora que se fosse D. Fernando, marido de D. Beatriz, e pai de D. Leonor, era melhor para a consistência do painel, mas tudo isso é de facto irrelevante. Creio ser o Infante D. Henrique pela posição em que está D. Jorge... ou seja, D. Jorge seria também o sucessor da casa de Viseu no projecto das navegações. Mais acima optei por trazer dois Bragança para o painel principal, mas em lugar secundário... e remeto as explicações para os textos anteriores, notando apenas que a situação de Afonso de Bragança era semelhante à de D. Jorge, já que ambos eram bastardos reais.

(d) Qual dos santos seria o príncipe D. Afonso? Sendo apenas um deles, quem seria o outro?
Santa Joana Princesa, foi regente do reino, quando o pai (D. Afonso V) e o irmão (D. João II) partiram para a conquista de Arzila... numa aventura da realeza que poderia ter dado problemas de sucessão, tal como acontecera quando D. João I levou os filhos à conquista de Ceuta. Toda a gente parece esquecer isso, quando critica a aventura irresponsável de D. Sebastião.
Santa Joana estava num pedestal para D. João II, pela admiração que lhe tinha. Ora, ela morreu em 1490, pouco antes do sobrinho, e não seria de estranhar que D. João II achasse que lhe devia tanta ou maior homenagem, enquanto dono da obra.
Por isso, e pelas razões supra acerca do filho, coloquei o príncipe D. Afonso no 4º painel.
Ora, o 4º painel afigura-se o mais difícil para encontrar personagens, já que temos ali armaduras que não são simplesmente decorativas. Entendi isso como uma elevação dos principais do reino na navegação, o grande orgulho pátrio, e facilmente D. João II consideraria que aquela era a verdadeira nobreza nacional, pelos actos realizados. 
Aliás o 4º painel encontra-se quase em simetria perfeita na oposição dos elementos principais do 3º painel. 
Daí ter a dualidade entre D. Diogo (morto) e o irmão D. Manuel (futuro rei) na oposição a D. Jorge.
Depois há toda uma dialética de orientação dos personagens a Ocidente ou a Oriente, que remeteria para uma difícil escolha na navegação - rumar a Ocidente e à América, ou rumar a Oriente e à Ásia.
É isso que leva a escolher Paulo da Gama versus Diogo Cão.
Diogo Cão é conhecido pela descoberta do Congo, mas a revelação de Fernão de Magalhães - de que seguiria um mapa de Martin Behaim, faz suspeitar que o alemão acompanhou Diogo Cão a outras paragens... ao sul da América. Do outro lado, poderia colocar Bartolomeu Dias, mas interessava mais a D. João II a navegação pela América. Suspeito que os Gamas estivessem encarregues de explorar a passagem pelo norte do Canadá (devido aos nomes aí encontrados). Findo esse projecto pelo Tratado de Tordesilhas, consta que D. João II tinha planeado dar a Paulo da Gama a chefia da expedição à Índia, que depois foi concretizada pelo irmão - Vasco da Gama.
De qualquer forma, nesse painel, para além de D. Diogo que parece ali estar por razão de simetria, os outros 4 parecem-me ser apenas navegadores.
A escolha do rei, que estava voltado para o Ocidente, acabou por ser pelo Oriente, e a razão ali colocada parece ser a morte do filho - é ele que indica o escolhido - Paulo da Gama.

(e) O quinto painel começa com o Infante D. Pedro, e ali colocaria D. Pedro, D. Henrique, D. João e D. Fernando, os infantes da ínclita geração. Mas não me pareceu ser tão fácil, trocar o Infante D. Henrique com D. Fernando de Viseu, seu sucessor no ducado de Viseu. Primeiro, porque não vejo muito sentido na "teoria da conspiração" que alteraria o códice (neste caso seria D. Manuel a colocar o retrato do pai em vez do tio-avô). Segundo, porque D. Manuel teria que aparecer nos Painéis, não sendo misturável com o destino funesto do irmão D. Diogo - por muito que o rei o quisesse avisar. 

Haverá ainda a hipótese de D. Manuel estar no lugar que atribuí a Paulo da Gama, no sentido de oposição ao rei, sendo-lhe dada a sucessão de lei pelo Santo, o príncipe D. Afonso. Esta hipótese que faz bastante sentido, pelo menos parcialmente, não a considerei. Talvez porque estragasse um pouco a lógica do conjunto, não encontrando elemento lógico no personagem em oposição. 

Acresce que nem me interessa falar de outras coincidências:
- como o nome de Bartolomeu Dias dar Dia S. Bartolomeu (aliás o dia do funeral de Afonso), um dia importante, por outras razões que escrevi.
- ou como o nome de Diogo Cão aparece nas navegações exactamente no ano em que D. João II mata o primo e cunhado, D. Diogo.

Deixo as outras considerações, nomeadamente sobre o Infante D. Pedro para os textos anteriores. Insisto que entre as suas mãos poderia estar não uma espada, mas sim uma espiga... tra la man et la spica, ou relembrando Camões 7§77:

(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.


(78)
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.


(f) Finalmente, o sexto painel, tornou natural a escolha de Mestre Rodrigo de Lucena, e Mestre José Vizinho, pela proximidade ao rei. Já o velho poderia ser simplesmente o pescador que encontrou o corpo. 
O médico exibirá a relíquia do santo, neste caso o príncipe defunto, ou como escrevi ainda em 2009: A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino.

Este era no fundo todo o problema dos Painéis. Definir quem seria a cabeça sucessória no reino.

O rei claramente favorecia D. Jorge, a rainha favorecia D. Manuel, que foi o legítimo herdeiro. 
Esta seria uma obra encomendada pelo rei, talvez para dar à rainha, que terá sobrevivido enquanto homenagem única ao príncipe falecido, mas que depois teria os seus dias contados... Ao tempo do manuscrito do Rio pareciam restar apenas dois painéis (os centrais), até a obra ser reencontrada por olhos de ver, no fim do Séc. XIX.

Conforme disse, o resto pode ser encontrado nos links que deixei inicialmente.

Que eu saiba esta tese foi apenas comentada em 2011 por Luís Duarte no seu blog - "A rês pública".
Não acho isso minimamente anormal. 
Apenas reflecte o conceito de normalidade vigente, isto é, não vi gente!

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Observações (21.08.2018):
(*) - Num comentário incluso, Clemente Baeta fez notar que os painéis devem também ser considerados numa referência de Fernando Pestana Pereira de 1531 (ver "Painéis de S. Vicente de Fora. Novos Documentos. Novas Revelações" , pág. 139) , entre outras, quando pede a D. João III que no dia de S. Vicente vá à Sé ver os "famosos reis", "armados tão formosos" e "gentis-homens", que "estariam no Paraíso", sugerindo estar mais que dois painéis à vista. Aliás, a observação de que estariam "famosos reis", no plural, concorda com colocar nos painéis os diversos reis da Dinastia de Avis... 

(**) - Um pequeno detalhe - mudei a referência "infante D. Afonso" por "príncipe D. Afonso", já que o infante mais velho, ou o herdeiro da coroa, passou a ter o título de príncipe, o que foi primeiro usado com D. Afonso V. 

(***)  - Um maior detalhe é que Clemente Baeta apontou uma imagem mais nítida dos painéis em:
que é significativamente melhor que a que está na Wikipedia. Em particular, a imagem da Wikipedia omite partes do quadro, e tem as cores bastante mais escurecidas (pode interessar saber o que pode ou não surgir de restauro). 
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Aditamento (22.08.2018):
Acerca do restauro podemos torcer o nariz, se repararmos na face da imagem da rainha conforme retirei do livro "Iconografia e Simbólica dos Painéis de S. Vicente", na página 343:


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Lendas da Micronésia

Por acaso encontrei o livro "Micronesian Legends" que reúne alguns interessantes mitos do "micro" arquipélago que se estende por um largo território no Oceano Pacífico.
"Micronesian Legends" (2002) - B. Flood, B. E. Strong, W. Flood 
Micronésia

O livro começa com uma referência ao "Suicide Cliff" na ilha de Saipan, cujo nome se deve ao que aí aconteceu no final da 2ª Guerra Mundial, e que pela sua importância vale o comentário.

Já se sabe que "vale tudo em tempo de guerra", mas foi sendo criada a ideia de que os ocidentais estavam imunes a actos atrozes, por contraponto com a brutalidade alheia, neste caso japonesa.
Tudo isto faz parte de jogos mentais, nomeadamente para acirrar vontades contra um determinado alvo, declarado inimigo. Há pessoas mais moderadas que outras, mas em tempos de convocar histeria, as moderações foram sempre desaconselhadas e até mal vistas. 

Assim, após Pearl Harbor, nos EUA criou-se rapidamente a ideia do "monstro japonês", que seria combatido com tudo o que havia à disposição - chegando depois ao ponto do uso da bomba atómica, que arrumou a questão. No entretanto, mais de 100 mil americanos de ascendência japonesa foram detidos em campos de concentração, espalhados pelo país. A histeria tinha sido lançada.

Na revista Life, em 22 de Maio de 1944, a publicação chegava ao ponto de fotografar uma rapariga ao lado de um crânio japonês, que lhe tinha sido enviado pelo namorado: 

"Arizona war worker writes her Navy boyfriend 
a thank-you-note for the Jap skull he sent her"

Quem invoca monstruosidades tem depois que lidar com as suas consequências.
O Japão passou a argumentar racismo e que os americanos os viam sem qualquer respeito, exibindo os seus cadáveres como exibiam troféus de caça. A ideia que as cabeças japonesas iriam servir de pisa-papéis ou cinzeiros decorativos nos EUA fez o seu caminho no Japão, e será menos de estranhar que não faltassem voluntários para actos kamikaze

A publicidade de ser preferível morrer a render-se terá sido aproveitada pelos generais japoneses para acirrar as tropas e a população para um combate total de "vida ou morte", algo que não era estranho à própria cultura japonesa.
Um extremo aconteceu na ilha de Saipan, quando o exército americano ainda achava útil publicitar uma violência extrema sobre os japoneses, impondo uma visão de terror ao inimigo. Era assim ideia clara, não apenas para os militares, mas também para as suas famílias na ilha, que era melhor o suicídio do que renderem-se aos americanos. 
Na conquista de Saipan terão morrido 55 mil pessoas, mas só no "Suicide Cliff" contam-se milhares de mortes devidas a suicídio para evitar que "os demónios americanos violassem ou devorassem mulheres e crianças", conforme informava a propaganda japonesa.


Suicide Cliff em Saipan

Passado pouco mais de um ano e estavam os demónios americanos a tomar conta de todo o Japão, sem constar que tivessem devorado ninguém (já não se poderá dizer o mesmo de violações)... 
Com a graciosidade do Plano Marshall na Europa, e similar na Ásia, os EUA enviaram mais de 15 milhões de toneladas de comida para a Europa e Japão, entre 1945 e 46. O plano afinal não era comer os japoneses, era dar-lhes de comer. 

Questionamos, que impetuosos cavaleiros, finda a batalha, têm ainda necessidade de eliminar os cavalos dos seus inimigos? 

Continua a haver uma estranha crença que a informação recebida está desligada de intenções do emissor. Neste caso aqui descrito vemos como uma propositada deficiência informativa foi usada acriticamente. Poderiam as mulheres japonesas de Saipan, antes de se sacrificarem com os filhos, terem duvidado ou criticado a informação veiculada pelos oficiais do seu imperador? (... ou, de que forma tratamos hoje criticamente a informação veiculada?).

Mito da Criação (dos Chamorro - ilhas Marianas)
Este mito coloca dois irmãos primordiais, Puntan e a sua irmã Fua (ou Fu'una), nascidos sem pai nem mãe. Puntan seria omnipotente, mas sentiu que iria morrer, pelo que pediu à irmã que colocasse os seus olhos como Sol e Lua, o seu peito como Céu, as sobrancelhas como arco-íris, e as suas costas como Terra... e assim foi o Mundo criado.

Quando a irmã contemplou a beleza da terra criada pelas ordens do irmão, decidiu que seria povoada por pessoas, feitas à semelhança dos dois. Para melhor fazer isto, definiu-se como rocha no sul de Guam (Fouha Bay), e decidiu que parte dessa rocha seria a pedra de onde nasceriam todas as pessoas. Depois ordenou que essa pedra se dividisse em múltiplas pedras, a que deu vida, e que depois formaram todas as raças de homens que se disseminaram pelo mundo.
Fouha Point, perto de Umatac em Guam

Interessa aqui uma certa semelhança com o mito grego que envolve Úrano e Gaia.
Há um outro mito que invoca um problema ecológico de sustentabilidade e partilha de ajuda.

Mito chamorro das mulheres de Guam
Não restava nada para comer, e as crianças choravam famintas.
As barrigas vazias doíam e já chupavam o interior das espinhas de peixe que restavam.
As nuvens não traziam água, e os ventos traziam apenas pó.
Uma velha mulher, a maga-haga, dizia "os espíritos estão zangados...".
Não havia respeito, perdera-se o respeito pela terra, pelo mar, de onde tudo tiravam sem nada dar em retorno. A punição era consequência do egoísmo.
Mas veio nova punição, e o solo tremeu. Algo começava a comer a terra da ilha.
Pediam perdão aos antigos, mas sabiam que não iriam ser perdoados pelos ante (espíritos ancestrais) se não mudassem os seus hábitos egoístas.
O chefe soprou no Grande Búzio. Era sinal de perigo iminente e os homens reuniram-se com lanças, para matar quem estava a comer a terra. Enquanto os homens discutiam o que fazer, as mulheres ouviam e esperavam. 
Até que uma criança gritou "monstro" - era um enorme peixe-papagaio, maior que uma baleia, um atuhong, que abriu a sua enorme boca, com dentes maiores que uma cabeça humana, e começou a comer os recifes. Os homens fugiram com medo. 
Como podiam capturar um peixe tão grande? - Uma simples dentada e perderiam as suas cabeças! 
No pavilhão de tecelagem as mulheres reuniram-se, esperando, cantando e pensando, ao mesmo tempo que iam tecendo. Como poderiam apaziguar os espíritos?
O Grande Búzio ouviu-se de novo. Os homens compareceram na costa, meteram-se em canoas à vela, seguindo o caminho do monstro.
Enquanto isso, as mulheres esperavam, sempre tecendo, tecendo fitas com folhas, ao mesmo tempo que teceram pensamentos, durante toda a noite. Quando o Sol se levantou na linha do horizonte, procuraram sinais dos maridos. Não viram os pequenos triângulos das velas, crescer cada vez mais, trazendo os seus homens de volta. 
Mas não mais esqueceram o que viram! De um dos túneis subterrâneos entre as baías de Agana e Pago, o gigante atuhong nadou para a lagoa, começando a comer a ilha. Todo o dia a terra tremeu, enquanto ele a comia. O monstro estava a destruir o recife e a terra, pensando apenas na sua gula, tal como antes o povo da ilha tinha pensado apenas em si. Em breve não restaria terra entre Agana e Pago, e depois não haveria ilha, não ficaria nada!

"Para casa, para casa antes que o monstro devore a ilha!", gritaram as mulheres.
Em breve as velas dos maridos apareceram no horizonte, e quando eles saltaram das canoas, elas pediram para os ajudar a matá-lo, antes que voltasse para o túnel subterrâneo.
Os homens riram-se... "As mulheres não sabem caçar. Só sabem tecer e cantar! De que nos vale isso?"
Dirigiram-se ao monstro, com redes e armas. Bastou ao monstro sacudir a cauda, e os corpos dos homens partiram-se contra o recife e contra as rochas da ilha. Com os dentes rompeu as redes e foi de novo para o túnel. As mulheres quiseram ajudar a consertar as redes, mas os homens riram de novo, dizendo que nem a força do chefe, o maga'lahi, era suficiente contra o monstro.
A mais sábia das mulheres, a maga'haga, abanou a cabeça. Esperou que os homens saíssem e convocou as mulheres para uma fonte em Agana, onde iriam refrescar o coração e o pensamento, pedindo ajuda aos maranan uchan - os crânios dos seus antepassados.
Porém quando chegaram a Agana, viram cascas de limão a flutuar na água. Só as mulheres de Pago usavam aroma de limão no cabelo. Isso significava que havia já uma abertura, um túnel entre os pontos opostos da ilha, que o monstro tinha comido por baixo da terra. 
Então perceberam qual o sacrifício que teriam que fazer, iriam sacrificar a sua beleza.  
A maga'haga iria cortar-lhes o cabelo, e com ele iriam fazer uma nova rede. As suas cabeças estavam mais leves, e sentiram-se livres do peso que pendia sobre as suas cabeças e corações.
Quando a luz das estrelas começou a dar lugar à luz da manhã, a rede tecida estava pronta.
Iriam esperar que o monstro atuhong saísse do túnel e atirariam a rede de cabelo. Acreditavam que a coragem de todas tinha ficado unida na rede. Quando o monstro saíu rodeou as mulheres, com as mandíbulas abertas, quando as mulheres deitaram a rede, começando a puxar. O monstro tentou morder a rede, mas a rede não cedeu, e as mulheres tentavam puxar o monstro para terra, gritando, encorajando-se umas às outras. 
Os homens ouviram os gritos, e foram em auxílio com as lanças. Em breve o monstro estava morto.
Com a ajuda de todos foi morto e puxado para terra, onde foi cozinhado com cascas de coco, servindo de repasto e acabando finalmente com a fome que os atormentava.
A chuva voltou a cair. A seca e a fome tinham acabado. A ilha tinha sido salva, mas iriam passar aquela história aos filhos, e aos filhos dos filhos, lembrando-os de que era preciso manter o respeito, pela ilha e entre si.
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Este conto é muito interessante, e de certa forma ilustra uma cultura tribal que procurava incutir valores e ensinamentos nos mais novos, sensibilizando-os para uma convivência racional entre si - neste caso não desprezando o valor da ajuda das mulheres, e para os perigos a que estavam sujeitos se desperdiçassem ou abusassem do que a ilha lhes dava. 
Não deixa ainda de ser interessante a semelhança do nome "ante" para os antepassados, ou ainda do nome "maga'lahi" para o chefe! Por coincidência, ou por influência, tem uma pronúncia demasiado próxima de Magalhães para que não seja notado. 

Fernão de Magalhães desembarcou na ilha de Guam em 6 de Março de 1521, após meses navegando o Oceano Pacífico, havendo um monumento a comemorar esse desembarque
É claro que a tripulação entrou na ilha para reabastecimento e tirou o que quis. Os chamorros de Guam devolveram a gentileza, entrando nos barcos e roubando o que encontraram em cima do convés! 
Magalhães terá usado o nome "ilha das velas latinas" (pelas velas triangulares), mas Pigafetta baptizou-a "ilha dos ladrões", nome que manteve nos mapas antigos, entendendo-se certamente que a propriedade do que estava em Guam era património universal, enquanto o que estava nos barcos era património privado. 
Como a questão da posse é sempre muito engraçada, Guam ficou possessão espanhola até que foi perdida para os EUA em 1898, sendo ocupada pelos japoneses de 1941 a 44, regressando à posse dos EUA numa das sangrentas batalhas do Pacífico, que redundou em 20 mil mortos (90% dos quais eram japoneses).

Mito do ensino da navegação (ilhas Carolinas)
Há muito tempo atrás este conhecimento era desconhecido - mesmo para os ilhéus!
Apenas conseguiam navegar curtas distâncias, e os que tentavam navegar sem este conhecimento nunca regressavam...
Contudo, um pássaro, o maçarico, sabia de navegação!
Este pássaro voava de ilha em ilha, no meio do vazio oceânico, para comer.
Ora, a sua comida favorita eram humanos... não era muito grande, mas era muito faminto!
Depois de comer todos os homens, todas as mulheres e todas as crianças numa ilha, continuava com fome, com muita fome!
Viajava assim pelas ilhas da Micronésia, e toda a ilha que visitava era uma nova refeição... pelo que em breve as ilhas estavam quase despovoadas.
O maçarico procurou então Pulap, uma ilha que não conseguia encontrar.

Nessa ilha vivia uma pequena rapariga com o seu avô pescador. Viviam muito felizes, porque o avô tinha protegido a ilha com uma nuvem bwabwa que a tornava invisível aos olhos do maçarico!
Mas certo dia o maçarico acabou por aterrar perto, e decidiu investigar o que estava abaixo daquelas nuvens, encontrando finalmente a ilha Pulap.
"Comida fresca", pensou o pássaro, e foi logo encontrar a pequena rapariga, que lhe disse:
- Quer comer ou beber algo?
- Claro que sim... e despacha-te! - respondeu, imediatamente.
A rapariga foi a correr ao encontro do avô, avisando-o da chegada do visitante. O avô disse:
- Esse pássaro come pessoas. Não o podemos aborrecer!
O avô preparou então comida e bebida especiais para o maçarico, que a rapariga levou.
O pássaro olhou para os cocos, com peixe e inhame, e queixou-se que aquilo apenas serviria de aperitivo... mas cansado da viagem, adormeceu, pensando que de seguida comeria a rapariga.
Porém, quando acordou, encontrou de novo os cocos cheios de comida.
Comeu rapidamente e procurou a rapariga, mas quando se voltou encontrou de novo tudo cheio, como que por magia. Por mais que o maçarico comesse, tudo se enchia de novo magicamente.
O pássaro finalmente ficou satisfeito.

Chamou a rapariga e disse-lhe:
- Minha menina, tu alimentaste-me bem, e em troca quero dar-te um presente! Vou ensinar-te o segredo da navegação com vela entre as ilhas!
A rapariga era boa aluna, e explicou ao avô tudo o que o pássaro lhe ensinava.
Ao fim de algum tempo, aprendeu tudo o que o pássaro lhe podia ensinar.
Era tempo do maçarico deixar Pulap, pois estava com vontade de comer pessoas de novo!
Mas o avô deu então instruções à neta, no sentido de lhe dar toda a comida que pudesse.
O pássaro foi acumulou tanta comida num cesto, que levantou vôo com dificuldade, porque apesar de ser muito ganancioso e muito faminto, não era muito grande.
Ora, isso levou a que o pássaro acabasse por ceder ao peso da carga, embatendo no oceano.
Ali, o pássaro acabou por perecer, tendo ficado, como marca no local, um recife e ilhas.
Foi assim que a rapariga e o avô passaram a saber navegar entre as ilhas, e a ilha de Pulap foi honrada como sendo o primeiro sítio onde a navegação foi aprendida.
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De certa forma, os ilhéus da Micronésia acabaram por conhecer todo o tipo de maçaricos, que os visitaram ou colonizaram, durante os últimos séculos... Não sei se estão ainda a alimentar o bicho ganancioso, à espera de aprenderem com ele, ou não. Parece claro é que no processo de colonização, o maior ponto comum com os maçaricos era mesmo a ganância... e uma fome insaciável de poder.

Há bastante mais histórias, mas estas são ilustrativas.
Apesar de serem apenas pequenas ilhas, a Micronésia não deixa de surpreender pela arqueologia.

Por exemplo, temos:
  • A misteriosa Nan Madol (recentemente na UNESCO WHL) foi uma cidade ou centro cerimonial e político de uma dinastia reinante na Micronésia (Séc. VIII a XII). As ruínas exibem ainda particularidades que a fizeram ser chamada "Veneza do Pacífico".

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A imperfeição no talento de fazer bem

Em Fevereiro de 1874, no número 2 das "Noites de Insomnia", Camilo Castelo Branco aborda o tema do Príncipe Perfeito, comentando uma observação que Pinheiro Chagas coloca no tomo III da História de Portugal, a propósito da sua opinião sobre D. João II.

Camilo Castelo Branco, tal como tem um ódio de estimação no Marquês de Pombal, é igualmente ácido para a figura de D. João II, apelidando-o de "real carrasco", na contabilidade de 80 mortes, a que acrescenta aqui uma acusação de cobardia na sua execução.
Não colocando em causa os factos enunciados, darei conta da minha opinião.

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O Príncipe Perfeito

O sr. Pinheiro Chagas, na sua estimadíssima Historia de Portugal, tomo III, pag. 155, relatando vigorosamente a ferocidade de D. João II, escreve:
«Estamos bem longe de aplaudir, com Ruy de Pina e Garcia de Rezende, estas ferocíssimas repressões, mas tambem não podemos concordar com o sr. Camillo Castello Branco, que escreve o seguinte a respeito d'el-rei D. João II:
  • «O real carrasco, a quem infamíssimos aduladores da coroa chamaram príncipe perfeito, surge hediondo diante da posteridade, alçando-se por sobre a nuvem dos incensos, com que turibulários abjectos cuidavam escondê-lo à execração dos vindouros. Raro há quem se canse em esgaravatar razões de Estado, que contrapesem a ferocidade do filho de Afonso V. A história, à volta dele, o que encontra é cadáveres, oitenta cadáveres de homens ilustres, uns estrangulados, outros decapitados, estes mortos a punhal, aqueles a peçonha. Oitenta, confessou ele o número, quando a morte lhe acenava de perto, e se lhe desabafava a consciência, suplicando ao papa contritamente o perdão dos seus peccados.
    «Os lances capitais de tão má alma contou-os a história à tragédia. O teatro português já se enlutou com os quadros de canibalismo, trazidos à rampa e ao grande brilho dos lustres, para que o povo visse justificada a razão que teve a vilanagem dos cronistas de ligarem ao assassino do duque de Viseu o antonomástico epíteto de príncipe perfeito
«O ilustre escritor é demasiadamente severo com o grande rei a quem Portugal deve tanto. Que a energia de D. João II degenerava em ferocidade, é incontestável, e não pretendemos absolvê-lo dos crimes que pesam sobre a sua memória. Mas qual dos grandes homens, que figuram na história, se apresenta imaculado no tribunal da posteridade? No assassínio do duque de Viseu achamos, devemos confessá-lo, em atenção aos costumes da época, D. João II, menos hediondo do que no caso do duque de Bragança. É uma luta a todo a transe entre D. João II e a nobreza, e el-rei, que teve por tantas vezes a morte diante dos olhos e que sempre a afrontou sem empallidecer, pôde, quando se lhe ofereceu ensejo, antecipar-se aos seus adversários, e voltar contra eles o punhal com que o ameaçavam. O duque de Viseu foi ferido pela catástrofe que trazia pendente sobre a cabeça do seu adversário; foi vencido na batalha. Se D. João II abusou da vitória, e não soube, como nunca soubera, perdoar, culpemos disso a imperfeição humana. Perdoar! Parece que no mundo só Cristo soube cumprir essa máxima sublime, que debalde prégou na sua santa doutrina. A civilização, abrandando os costumes e modificando as paixões, tem introduzido felizmente, no espirito do homem, o horror do sangue derramado, mas, nos fins do século XV, ainda a vida das criaturas da nossa espécie estava longe de ter o carácter inviolável que hoje possui. Por tanto D. João II, aceitando de rosto descoberto a batalha, e vibrando o punhal como vibraria a espada, tem uma certa grandeza selvagem, que não desculpa mas atenua o crime

Até aqui o destro escritor. Agora, a história que os reis e as camarilhas não deixavam estampar.
O punhal que D. João II vibrou ao peito do duque de Vizeu foi acto cobarde que não pode ser atenuado por grandeza selvagem. O rei apunhalava o adversário enquanto os braços possantes de um valente alcaide prendiam pelas costas a vítima desarmada.
Nas Memórias inéditas de Diogo de Paiva e Andrade, autor do Casamento perfeito, faz-se menção do conflito, e encarece-se a bravura do coadjuctor de D. João II com uma anedota bastante significativa da coragem do fidalgo e da cobardia do rei.

Diz assim:
«D. Pedro de Eça, alcaide-mór de Moura, foi um fidalgo a quem a natureza dotou de muito ânimo e grandes forças, e por isto el-rei D. João II o escolheu, quando quis matar a D. Diogo, duque de Viseu, a quem abraçou por detrás. Acontecendo em Moura matarem um homem uns criados seus, foram-se dois irmãos do morto queixarem a el-rei e disseram-lhe que D. Pedro lho mandara; pelo que o mandou vir à côrte, e esteve nela mais de dous anos, posto que, tirada a devassa, o não acharam culpado. Enfadado D. Pedro disse a el-rei que, pois sua alteza não queria crer que ele não tinha culpa na morte do homem, e os que o acusavam eram dois, que lhe fizesse mercê de lhe mandar dar campo com ambos para assim se purificar; do que, agastando-se el-rei, lhe disse que tomara ele ser um dos dois. E D. Pedro lhe respondeu: «não fôra vossa alteza meu rei, e fosse com eles o terceiro.»

Não temos o desvanecimento de sobre-excitar contra D. João II o ânimo do nosso talentoso amigo; todavia, insinuamos-lhe a suspeita de que o homem não era capaz de matar outro sem lho agarrarem pelas costas, tendo ainda por cautela mais dois bravos que se chamavam Diogo de Azambuja e Lopo Mendes do Rio.


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D. João II com a Rainha D. Leonor, e com o filho D. Jorge, nos Painéis de S. Vicente.

Qual é o contexto histórico de D. João II?
É talvez demasiado complicado para explicar em poucas linhas, mas arriscamos pelo que sabemos, ou julgamos saber.

Antes disso, dizemos que a pequena defesa de D. João II se faz facilmente, sem precisar de outros contextos justificativos. Não estamos no final do Séc. XIX, para medir coragem/estupidez em duelos, e o rei não parece ter pretendido dar mostras de qualquer coragem especial, simplesmente parece ter pretendido dar mostras que o seu poder era aplicável por si mesmo, sem precisar de tribunais fantoches, para executar friamente quem conspirava contra si, no caso o seu primo, e irmão da sua mulher. Camilo ao citar o exemplo de D. Pedro de Eça, não mostra que o rei executou nele qualquer ira, pelo contrário, terá aceitado a afrontosa resposta do fidalgo.

Agora, o contexto... um contexto que Camilo conheceria parcialmente bem, e por isso espanta um pouco a apreciação ligeira. 
D. João II nasce em 1455, pouco anos depois do seu pai, D. Afonso V, ter morto o seu avô, o Infante D. Pedro, na Batalha de Alfarrobeira, 1448. Crescendo numa corte dilacerada por essa batalha, onde os Duques de Bragança e de Viseu exerciam um poder crescente, o jovem princípe foi praticamente criado pela sua tia e pela sua irmã, a princesa Santa Joana, já que a sua mãe morreu no ano em que nasceu. A hostilidade contra o avô, passou para a mãe, com tentativas de anulação do casamento, mas D. Isabel de Coimbra conseguiu manter a influência sobre D. Afonso V, recuperando a memória do pai, Infante D. Pedro, conseguindo que o marido transladasse o corpo para o Mosteiro da Batalha. 
A mesma hostilidade da nobreza passaria a si, com medo de um ajuste de contas, que viria de facto a fazer. Entre os cadáveres dos "80 ilustres", conforme descritos por Camilo, encontravam-se principalmente aqueles que tentaram anular o seu poder desde o início, com múltiplas manhas e traições, nomeadamente os Bragança, mais confortáveis com o poder castelhano de uma sua descendente - Isabel, a Católica, do que com o poder de D. João II.

Ao cognome "príncipe perfeito" foi junto o de D. Leonor, como "princesa perfeitíssima", e a imperfeição no cognome do rei é aperfeiçoada na excelência do cognome da rainha. A sua regência, de 1481 a 1525, correspondem a 44 anos onde Portugal não teve rival à altura. Foi ela que determinou a sucessão do marido pelo seu irmão mais novo, D. Manuel, com a mesma temperança que aceitou o assassinato do seu irmão mais velho, D. Diogo. Por isso, a "rainha velha" exerceu uma influência na corte que, em certos casos, terá suplantado a do rei, seu irmão, e terá estado à altura do rei, seu marido. O seu drama pessoal foi acrescido pela morte do filho, do qual não poderia excluir o marido, pelo menos na vontade de designar como seu sucessor D. Jorge. Também por essa divergência, que os separou definitivamente, nunca se livrou de uma suspeita de cumplicidade na morte de D. João II, por "peçonha"... e não foi isso que lhe retirou a superlatividade do cognome, que Camilo ali esqueceu. 

Depois, há todo o contexto dos descobrimentos, que não irei aqui detalhar, mas que suspeitamos começar com D. Fuas. Tem documentação confirmada já no tempo de D. Afonso IV, aquando da doação das Canárias ao castelhano Luís de La Cerda em 1344, pelo papa de Avinhão, Clemente VI. Sabe-se pouco das navegações seguintes, mas há fortes razões para suspeitar que mesmo no tempo de D. Fernando os portugueses viajavam já para o Brasil e para a costa africana, chegando ao Trópico de Capricórnio em 1377. 

As explorações do Infante D. Henrique e D. João II foram uma ficção na localização.
Uma armada de Garcia de Loaisa, cavaleiro de Malta, ao serviço espanhol, encontrou em 1525,  na desabitada ilha de S. Mateus (talvez a ilha de Fernando de Noronha), dois/três graus a sul do equador, inscrições "Talant de bien faire" datadas de 1438. (ver também "Mesa para Sandwich")

Mais do que qualquer outra coisa, quando D. João II declarou a passagem do Cabo da Boa Esperança, mas retardou a chegada à Índia em pelo menos uma década, deveu-se ao cuidado extremo com que foi encarada a empresa dos descobrimentos. O envio de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva por terra, permitia garantir que não estaria a ser preparada uma surpresa à chegada dos navios portugueses. 
De facto, se a viagem de Gama ocorreu como um passeio no lago (e fôra despesa inútil na opinião de Duarte Pacheco Pereira), era porque o Oceano Índico tinha já sido suficientemente explorado, para não trazer novidades incomportáveis.
D. João II tinha a perfeita noção da tarefa incomensurável que esperava os portugueses... e os empecilhos das guerrilhas internas, tratou-os com o despacho necessário de quem concentra tudo na preparação da maior empresa histórica até então pensada, e que foi realizada com relativa facilidade pelo seu sucessor, D. Manuel, em pouco mais que 25 anos. Quando D. Manuel morre, a costa africana, e toda a costa asiática até Macau tem portos portugueses. O Oceano Índico é um enorme mar português. Convida os príncipes europeus para a tarefa, que normalmente desdenharam. Consegue a atenção dos espanhóis para a parte ocidental, por via de Colombo, e separa as águas do mundo em duas partes, no Tratado das Tordesilhas. D. Manuel não faz mais que em 2 anos enviar os Corte Real para demarcar o Labrador, Cabral para demarcar o Brasil, Gama para reclamar a Índia, e com Afonso de Albuquerque consegue a conquista de Malaca, o passo final para assegurar o completo controlo do Índico até às ilhas Malucas, a fonte das especiarias. Deixa ao cargo dos espanhóis assegurar o controlo da parte restante - americana. 
E é ainda com mapas do tempo de D. João II, que Fernão de Magalhães revela saber do Estreito no sul da Patagónia.

Seria uma enorme delícia reencontrar esses mapas... mas como diria Poliziano, isso seria colocar o nosso rei num patamar único, e por isso extremamente inconveniente na História Mundial.