Alvor-Silves

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Fons Vitae

A Sé Catedral do Porto tinha uma interessante pintura que está agora exposta no Museu da Misericórdia, no Porto, onde se poderiam ver retratados D. Manuel e os seus filhos. 

O blog "do Porto e não só" apresentou um informativo texto acerca de antigas controvérsias e teses acerca desta pintura, começadas no Séc. XIX. 
Ainda que seja curioso ver ali descrita uma bizarra tese (de J. Moreira Freire, em 1896) que apontava a autoria para um Van Eyck, querendo ou crendo estar ali representada a prole de D. João I (inclusive os bastardos Afonso e Beatriz); essa tese foi rapidamente rebatida (por Duarte Leite), em resposta ao jornal, no dia seguinte, em termos mais ou menos devastadores.

O quadro não aparenta trazer nada de invulgar.
Apresenta em cima, Jesus Cristo na cruz, tendo ao lado a mãe, Santa Maria, e S. João Evangelista. 
O sangue de Jesus cai para uma larga taça como fonte, descrita como 
"fonte de misericórdia, fonte de vida e  fonte de piedade".
Em baixo, tomando lugar de destaque (secundário), ao centro estão o rei e a rainha, D. Manuel e D. Maria de Aragão, e ao lado os seus 8 filhos (seis rapazes, quase cópias do pai e a seu lado, e duas raparigas, quase cópias uma da outra, ao lado da mãe) - ou seja:
  • pelo lado dos rapazes, o futuro D. João III, o infante D. Luiz, o infante D. Fernando, o futuro cardeal D. Afonso, o futuro cardeal e rei D. Henrique, e o infante D. Duarte, Duque de Guimarães;
  • pelo lado das raparigas, a futura imperatriz D. Isabel, e a infante D. Beatriz, depois Duquesa de Sabóia.
Todos eles são nascidos entre 1502 e 1515, o que torna a datação de 1518-19 como provável.
Como aspecto ainda secundário, são identificados o cardeal como sendo Martinho da Costa, e no lado oposto, em trajo monástico, a rainha velha, Dona Leonor.

Tudo isto, para além de provável, está documentado em registo de 1845, aquando de um restauro, confirmando/sugerindo os personagens mencionados acima. Além disso alega que o quadro teria sido oferta de D. Manuel à Confraria da Misericórdia na cidade do Porto.

Por esta altura, e segundo o blog "do Porto e não só", havia uma convicção generalizada de que o quadro seria da autoria de Grão Vasco, conforme era também dito por Atanazy Raczynski,

No entanto, mais recentemente, ficou opinião comum que a obra deverá ser da escola flamenga, e mais concretamente do círculo de Barent Van Orley.  Isso parece bastante provável, atendendo a outros quadros (posteriores) atribuídos a Orley ou à sua escola. Nomeadamente, o tema da cruz com Stª. Maria e S. João Evangelista está presente de forma muito semelhante numa obra sua:
Cristo na Cruz com Maria e João Evangelista, (Barent van Orley, c. 1525)
(que diz - distribuirei este precioso sangue aos necessitados), e de Isabel de Áustria (à direita)

Ou ainda neste tríptico atribuído a um aluno seu, Pieter Van Aelst

  
Triptico da Crucifixão (Pieter Van Aelst, 1525-30)
(com representação dos doadores, talvez Margarida de Áustria e o pai)

Assim parece razoável que o Fons Vitae seja enquadrado na linha destas pinturas, e assim remetido à escola de Barent van Orley, ou provavelmente ao próprio. Quanto à figuração do Sangue Sagrado, foi associado também à influência flamenga, pela cidade de Bruges. Há aí uma relíquia, supostamente com o sangue de Cristo, retirada por José de Arimateia, e depois trazida por cruzados no Séc. XII para a cidade de Bruges.

Relativamente a uma evocação semelhante, com fonte no sangue de Cristo, está num tríptico flamengo de Jean Bellegambe, algo surreal, invocando um banho místico, o que pode ser relacionado com a alegoria cristã entre o sangue e o vinho, neste caso para purificação das almas.

Jean Bellegambe: Tríptico do banho místico

Como a Flandres era parte do grande ducado de Borgonha que, com o casamento do imperador Maximiliano, passou a estar nos domínios Habsburgo, a próxima relação de D. Manuel e D. Leonor com o primo imperador, tornam ainda mais natural que a obra pudesse ter sido aí encomendada.
De facto, os problemas dos Habsburgos com os Países Baixos vão acentuar-se depois, especialmente no reinado de Filipe II de Espanha.

Qual a fonte de vida representada?
Há um primeiro detalhe que convém aqui sublinhar.
Como é natural, nos quadros com a crucifixão não se representa São José ao lado Stª Maria, porque o pai formal de Cristo já era falecido. Mesmo invocando figuras falecidas, não conheço representações que forcem presenças erradas na contemporaneadade. No momento da Cruz, a aparecer S. João, não seria nunca S. João Baptista. Esse santo é apenas representado aquando do Baptismo.

Como figura masculina não é invulgar ver junto à cruz S. João Evangelista, mas não com um destaque tão grande, como vemos no "Fons Vitae", sendo mais natural estar num plano inferior, junto ao solo, como nos outros dois quadros que apresentamos.

Podendo ter sido ou não D. Manuel o dono da obra, ao ter como destino a Confraria da Misericórdia, será de considerar que a rainha viúva, D. Leonor, estivesse envolvida no tema.

Ora, o ponto que aqui quero destacar é que o quadro ganha um significado mais amplo, considerando que a representação principal poderá ser de D. Leonor com D. João II, vendo o filho, o príncipe D. Afonso sacrificado, na figura de Cristo.
Poderia ser entendido como um sacrifício do filho a bem da vida do reino... e neste caso, o seu sangue, a fonte de vida dinástica, seria representada pelos 8 filhos de D. Manuel.

É claro que isto trata apenas de uma questão de interpretação, e não havendo quaisquer fontes documentais nesse sentido, não passará de uma mera hipótese. 
No entanto, essa hipótese deve ser considerada, porque a perda de um filho ganha um carácter mais dramático no caso de D. Leonor, por se tratar de filho único. Parece pois natural que D. Leonor fosse particularmente tocada pelas invocações ao sacrifício de um filho, em analogia com a Madre de Deus.
Neste quadro, as figuras de Stª Maria e S. João Evangelista têm eventuais semelhanças com outras representações de D. Leonor, ou mesmo de D. João II. 
Nada disso constitui um indício, o maior indício é que a composição ganha um sentido acrescido se for interpretada desta maneira, e é apenas isso que interessa referir. 

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