Alvor-Silves

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Auto e a Auta

O "Grande Diccionario Portuguez" de Domingos Vieira, começa com uma introdução (com mais de 200 páginas) de Adolfo Coelho, "sobre a língua portugueza", começando com uma certa grosseria de poleiro contra as opiniões do Cardeal Saraiva (ditas célticas), ou mesmo Alexandre Herculano (do romano vulgar), sobre a origem da língua nacional, já que estes não seguiam os cânones duma pseudo-ciência glótica alemã, em ascensão. Estamos no período em que a mediocridade nacional mais se manifestava por um parolismo deslumbrado, em vista de uma mão cheia de algo (ciências materiais), e uma mão cheia de nada (pseudo-ciências humanas), que aliás deu origem mais tarde a um problema mundial, por outro Adolfo, via interpretações fantasiosas da ligação germânica ao sânscrito.

Interessa-me aqui um minúsculo trecho (pág. xxxi):

  • Por exemplo na edade media dizia-se trauto, auto; no seculo XVI reforma-se essa pronuncia sobre o typo latino e começa-se a escrever tracto, acto, e a pronunciar trato, ato, em que o c latino não se acha representado, ao contrario do que se dá nas fórmas trauto, auto, em que o u o substitue. O numero de factos d'esta natureza é consideravel e constitue uma das ditferenças mais importantes entre o portuguez medieval e o portuguez classico (o portuguez a partir dos grammaticos Gil Vicente, Fernão d'Oliveira, Barros, isto é, do primeiro quartel do seculo XVI).

Isto para enfatizar que a palavra "auto" era sinónimo de "acto".
Se o dissesse sem citar outra fonte, seria ligeiro, deixo assim uma "douta" ou "docta" opinião.

Quando lemos "Autos" de Gil Vicente é por anacronismo. Não sendo ignorância, não faço ideia da razão pela qual não se passou a escrever "Actos", ou agora na novilíngua, "Atos"; ou seja os alunos deveriam estudar o "Ato da Barca do Inferno". 
Uma alternativa interessante para uma "Acta" seria escrever-se "Auta".
Assim, quando a polícia "autua", usa português arcaico para dizer que "actua". 

Surge isto a propósito do Retábulo de Santa Auta, cujo actor, aliás autor, é desconhecido!
Mas tem-se sugerido que o pintor seja Cristóvão de Figueiredo.

A obra foi encomendada pela Rainha Dona Leonor, que teria uma grande devoção por Santa Úrsula, e pediu algumas relíquias ao primo, o Sacro-Imperador Maximiliano I, filho da imperatriz Leonor de Portugal, sua tia (irmã do rei D. Afonso V e do infante D. Fernando, seu pai).

Quando falamos no domínio dos Habsburgo nas dinastias europeias, será designação pelo lado masculino. 
Pelo lado feminino, convém não esquecer o papel fulcral que tiveram as meninas de Avis, começando pela infanta D. Isabel, duquesa de Borgonha, que orquestrou este casamento da sobrinha Leonor com o imperador Frederico III. O filho, o imperador Maximiliano iria casar-se com a neta da duquesa, e herdar o ducado da Borgonha. O neto de Maximiliano, o imperador Carlos V herdaria o maior império até então e casaria com D. Isabel, filha de D. Manuel. 
Acerca da influência que a imperatriz Leonor de Portugal teve nos Habsburgos pode ler-se na Wikipedia: "As Frederick was rather distant to his family, Eleanor had a great influence on the raising and education of Frederick's children, and she therefore played an important role in the House of Habsburg's rise to prominence."

Bom, mas o assunto aqui é Leonor, sobrinha de Leonor, rainha viúva quando as relíquias enviadas pelo primo chegam a Portugal, em 1517. Seriam relíquias (ossos) de Santa Auta, uma das ("11 mil") virgens, companheira de Santa Úrsula, e que seriam colocadas no Convento da Madre de Deus, ilustradas por um retábulo com cinco painéis, de 1522.

Ao contrário de Santa Úrsula, o nome de Santa Auta (Aukta em alemão) só parece tornar-se conhecido por esta transladação, e que eu saiba não voltará a ter outra alusão significativa.

Qual a razão da tamanha importância que lhe deu Dona Leonor?
- Digamos de outra forma, interessaria a Dona Leonor, focar-se numa companheira quase desconhecida de Santa Úrsula?

O padrão deste vestido, típico da realeza da época, concord
com o da dalmática do santo, ou da veste do rei, nos Painéis de S. Vicente.
Como detalhe, confronte-se o cordão simples de pendente de 5 pérolas aqui usado, 
com o cordão simples de pendente de 5 pérolas usado pela rainha nos Painéis.

A lenda conta o seguinte: Santa Úrsula iria casar-se com Conan da Bretanha, mas o casamento nunca se realizou porque Úrsula ao ter sobrevivido a uma tempestade, decidiu fazer uma peregrinação europeia, dirigindo-se a Roma, ao Papa Círiaco (talvez Siricius). A peregrinação teria terminado num massacre às mãos dos Hunos em Colónia, em 383 d.C. O número usado "onze mil virgens", foi sempre considerado um exagero, por erro de transcrição ou interpretação. 

Parece um assunto distante, mas há alguns detalhes. 
O imperador Maximiliano casou-se 2ª vez, com a duquesa Ana da Bretanha, que clamava descender de Conan. A Bretanha era então independente. Porém, o rei francês Charles VIII, com medo de ver a Bretanha perdida para os Habsburgos, e depois de já ter a Borgonha anexada pela sua política casamenteira, decidiu raptar/forçar Ana a firmar a união da Bretanha à França, o que acabou por acontecer com benção papal. 
Se o filho (e o irmão) de D. Leonor casaram com a princesa Isabel de Castela, sem descendência viva, seria o filho de Maximiliano a casar-se com a irmã, Joana de Castela, e a assegurar que o neto, Carlos V, fosse o herdeiro espanhol. 
Outro detalhe é que Colombo nomeou as ilhas Virgens das Antilhas, por terem sido avistadas no dia de Santa Úrsula. Curiosamente, também João Fagundes terá nomeado como "onze mil virgens" as ilhas St. Pierre et Miquelon, em 1520 (estas ilhas mantêm hoje no brasão o típico arminho bretão).

Mas a questão é:
- Interessaria a Dona Leonor, no final da sua vida, ver isto representado?
- Não seria mais relevante ver aí representados momentos marcantes da sua vida? 

Como a história de Santa Úrsula é aqui razoavelmente deturpada na sua encomenda, colocando-a sempre com Conan, e até com imagem de um casamento - que segundo a lenda nunca teria acontecido - será de questionar que a representação daqueles 5 painéis corresponda efectivamente a Santa Úrsula e Santa Auta, pois até os navios representados exibem o pavilhão português.

Vejamos um dos painéis laterais, denominado:
"Casamento de Santa Úrsula com o Príncipe Conan"

A questão que surge, pelo menos a mim, é se este casamento não invocaria o casamento da própria Dona Leonor com o "Príncipe Perfeito", ou seja, com o então futuro D. João II. 
A imagem que apresentámos em cima, da Rainha D. Leonor, no livro de horas (ou "livro de oras", enquanto orações), parece ajustar-se bem a esta figuração de Santa Úrsula.

No outro painel lateral:
"O Papa Círíaco abençoa Santa Úrsula e as suas companheiras"

... será de colocar a hipótese de estar aqui invocado outro momento marcante da sua vida - as exéquias pelo falecimento do seu único filho, o príncipe D. Afonso. 
Como já referimos, na lenda nunca o príncipe Conan acompanha Santa Úrsula na sua viagem, e portanto não está presente na visita ao Papa.
Assim, estas imagens devem levantar no mínimo essas interrogações.

A necessidade de representar isto figurativamente, e não explicitamente, prende-se com toda a complexidade de intrigas e maldicência cortesã, que Leonor assim evitaria.

O que pode ser visto como manifestações de êxtase das devotas pela benção papal, pode também ser visto como êxtase fúnebre pela perda do filho (a jovem ao lado do rei, pode representar a princesa castelhana).

Quanto ao painel central:
"Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens"

está encabeçado pela provável representação, ou confrontação, entre o rei e a rainha (cabeças em relevo). Aqui o rei está virado a Oriente, e a rainha aparece virada a Ocidente. 
A escolha de D. João II, no Tratado de Tordesilhas, foi o hemisfério oriental. 
Seria ainda essa a escolha mais sangrenta, vitimando milhares de jovens, de "virgens", enviados para uma confrontação de proporções gigantescas, quando as esquadras portuguesas no Índico defrontavam exércitos "pagãos" de dimensões muito superiores. Em 1517 a Espanha ainda não tinha iniciado a conquista de aztecas e incas, um genocídio para os índigenas, mas muito menos letal para os invasores.
A aventura da peregrinação de Santa Úrsula e virgens poderia antever a missão de uma casta fé missionária que iria ser iniciada nas décadas seguintes, nomeadamente por S. Francisco Xavier.

O que vemos nesta cena a dois tempos não são as águas do Reno em Colónia. São as naus lusitanas ao fundo, espelhando um domínio marítimo. Mas esse domínio marítimo não impedia que fossem dizimadas virgens pela costa. Mais, as mortes entravam mesmo no batel real, que ali inclui papa, bispo, Conan e Úrsula (mais uma vez sem correspondente na lenda).
Conforme Dona Leonor tinha testemunhado, as decisões sobre as navegações iriam também trazer combates políticos letais no interior das famílias.

É claro que esta suposição interpretativa é meramente especulativa, e nem me interessa que seja mais que isso. Simplesmente dá ao observador a possibilidade de ver as coisas de uma forma diferente.
Certamente que haverá outras interpretações, pois quando as obras se abrem aos olhos do observador, cada qual poderá ver o que bem entender, nomeadamente não ver mais que a versão oficial.

O que será mais estranho em Portugal, é que estas tentativas de interpretação variada, ou simplesmente não existem (tudo é interpretado literalmente), ou no único caso mais conhecido de "obra misteriosa", os Painéis de S. Vicente, aí as opiniões acumulam-se.

Aliás é simples.
Chamado a decidir entre duas opiniões muito pensadas e discordantes, o que faz um português? 
- Produz imediatamente uma terceira opinião!
E eu, que padeço desse mal, sei bem que o individualismo é uma das características mais notáveis e mais desgraçadas da comunidade nacional.

Auta, a santa desconhecida, representaria pouco mais do que uma personagem que servia uma auto-visão, ou ainda servia a acta dos acontecimentos pelo lado de Dona Leonor, uma santa acta.
Seria um apêndice visual aos autos, ou actos, que o seu ourives, Gil Vicente, escreveu de forma teatral, e que bem reflectiam a sociedade da época.


Os restantes dois painéis são contemporâneos, fechariam os restantes, e reportam o transporte das relíquias de Colónia para Lisboa, sob pedido e orientação de Dona Leonor.

Partida das relíquias de Santa Auta de Colónia

Chegada das relíquias de Santa Auta à Igreja da Madre de Deus

No primeiro painel vemos Santa Auta, ou Úrsula, trespassada pela seta no seu coração, enquanto no segundo a seta aparece retirada pela sua mão. Neste último painel, que é fiel no desenho à porta da Igreja da Madre de Deus, crê-se que D. Leonor se terá feito desenhar junto à cabeça da santa, em trajo negro. Talvez nesta fase, pela sua dedicação ao trabalho religioso e misericordioso, o seu coração já estivesse menos trespassado pela seta que lhe retirou o filho.
A obra, pelo menos não parece ter causado polémicas, e chegou sem sobressaltos aos nossos dias, resistindo ao terramoto e incêndios devastadores de 1755.

2 comentários:

  1. Caro Alvor,

    Sem qualquer documentação que me acompanhasse, sempre fantasiei que esta "lenda ursulina" se assemelhava a uma história "amazónica" de batalha entre "Homens e Mulheres", que mais tarde, como tantas outras, terá sido absorvida pela corrente literária cristã e transformada em estoria the martirio por submissão da "mulher" a "virgem devota e fraca" que usa como arma contra o mal, a sua pureza.

    Encontrei um texto que segue um raciocinio parecido com o meu que talvez possa interessar.
    Título: AMAZONS & URSULINES
    Autoria: Elisabeth J. Bryan
    https://books.google.pt/books?id=am4YDAAAQBAJ&pg=PA25&lpg=PA25&dq="ursula"+queen+of+the+amazons&source=bl&ots=DURLdUEtOz&sig=rVZbKJirx2NFvKv22XmLBVNwpMI&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwj8jcHlzY3dAhWOblAKHa5pAz4Q6AEwDnoECAIQAQ#v=onepage&q="ursula"%20queen%20of%20the%20amazons

    Páginas: 23 a 30

    A ideia de Leonor se sentir como uma Amazona subjugada a Ursulina pela religião, também traz alguma luz à sua interpretação dos paineis.

    Cumprimentos,
    DJ

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    1. Caro David,
      é uma hipótese noutro sentido, que deve ser considerada.
      Acresce que a Ordem das Ursulinas foi fundada pouco mais que dez anos depois, por uma italiana Angela Merici, e portanto estamos dentro dos anos de influência.
      Creio que será a primeira ordem feminina, e portanto o assunto é relevante, trazendo as mulheres para a acção católica, e depois missionária.

      Dona Beatriz, mãe de Dona Leonor, tem já um papel crucial nos arranjos político-religiosos do final do Séc. XV. Considero que pode ter tido influência significativa na constituição da Ordem da Imaculada Conceição, que usou como figura chave Santa Beatriz da Silva, uma portuguesa em Espanha. Ou ainda, mais que isso, terá tido influência determinante na adopção da Inquisição em Espanha, através da sua sobrinha a rainha Isabel a Católica... ao tempo em que geria as terciarias de Moura, e tinha as crianças dos reis sob seu poder.

      Que Dona Leonor se entregou com devoção à componente religiosa, pois parece não haver dúvidas, mas creio que ela nunca advogou a introdução da Inquisição, que aliás só entrou oficialmente em 1536, em Portugal, já passados mais de 10 anos sobre a sua morte.

      Esta sequência de quadros não me parece esconder mais que o drama pessoal da rainha, mas é bastante pertinente referir o contexto com que a devoção a Santa Úrsula poderia ter sido usada, numa perspectiva de colonização, conversão de infiéis, e que neste caso seria aplicável às freiras do Convento da Madre de Deus.

      Cumprimentos,
      da Maia

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