Alvor-Silves

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A imperfeição no talento de fazer bem

Em Fevereiro de 1874, no número 2 das "Noites de Insomnia", Camilo Castelo Branco aborda o tema do Príncipe Perfeito, comentando uma observação que Pinheiro Chagas coloca no tomo III da História de Portugal, a propósito da sua opinião sobre D. João II.

Camilo Castelo Branco, tal como tem um ódio de estimação no Marquês de Pombal, é igualmente ácido para a figura de D. João II, apelidando-o de "real carrasco", na contabilidade de 80 mortes, a que acrescenta aqui uma acusação de cobardia na sua execução.
Não colocando em causa os factos enunciados, darei conta da minha opinião.

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O Príncipe Perfeito

O sr. Pinheiro Chagas, na sua estimadíssima Historia de Portugal, tomo III, pag. 155, relatando vigorosamente a ferocidade de D. João II, escreve:
«Estamos bem longe de aplaudir, com Ruy de Pina e Garcia de Rezende, estas ferocíssimas repressões, mas tambem não podemos concordar com o sr. Camillo Castello Branco, que escreve o seguinte a respeito d'el-rei D. João II:
  • «O real carrasco, a quem infamíssimos aduladores da coroa chamaram príncipe perfeito, surge hediondo diante da posteridade, alçando-se por sobre a nuvem dos incensos, com que turibulários abjectos cuidavam escondê-lo à execração dos vindouros. Raro há quem se canse em esgaravatar razões de Estado, que contrapesem a ferocidade do filho de Afonso V. A história, à volta dele, o que encontra é cadáveres, oitenta cadáveres de homens ilustres, uns estrangulados, outros decapitados, estes mortos a punhal, aqueles a peçonha. Oitenta, confessou ele o número, quando a morte lhe acenava de perto, e se lhe desabafava a consciência, suplicando ao papa contritamente o perdão dos seus peccados.
    «Os lances capitais de tão má alma contou-os a história à tragédia. O teatro português já se enlutou com os quadros de canibalismo, trazidos à rampa e ao grande brilho dos lustres, para que o povo visse justificada a razão que teve a vilanagem dos cronistas de ligarem ao assassino do duque de Viseu o antonomástico epíteto de príncipe perfeito
«O ilustre escritor é demasiadamente severo com o grande rei a quem Portugal deve tanto. Que a energia de D. João II degenerava em ferocidade, é incontestável, e não pretendemos absolvê-lo dos crimes que pesam sobre a sua memória. Mas qual dos grandes homens, que figuram na história, se apresenta imaculado no tribunal da posteridade? No assassínio do duque de Viseu achamos, devemos confessá-lo, em atenção aos costumes da época, D. João II, menos hediondo do que no caso do duque de Bragança. É uma luta a todo a transe entre D. João II e a nobreza, e el-rei, que teve por tantas vezes a morte diante dos olhos e que sempre a afrontou sem empallidecer, pôde, quando se lhe ofereceu ensejo, antecipar-se aos seus adversários, e voltar contra eles o punhal com que o ameaçavam. O duque de Viseu foi ferido pela catástrofe que trazia pendente sobre a cabeça do seu adversário; foi vencido na batalha. Se D. João II abusou da vitória, e não soube, como nunca soubera, perdoar, culpemos disso a imperfeição humana. Perdoar! Parece que no mundo só Cristo soube cumprir essa máxima sublime, que debalde prégou na sua santa doutrina. A civilização, abrandando os costumes e modificando as paixões, tem introduzido felizmente, no espirito do homem, o horror do sangue derramado, mas, nos fins do século XV, ainda a vida das criaturas da nossa espécie estava longe de ter o carácter inviolável que hoje possui. Por tanto D. João II, aceitando de rosto descoberto a batalha, e vibrando o punhal como vibraria a espada, tem uma certa grandeza selvagem, que não desculpa mas atenua o crime

Até aqui o destro escritor. Agora, a história que os reis e as camarilhas não deixavam estampar.
O punhal que D. João II vibrou ao peito do duque de Vizeu foi acto cobarde que não pode ser atenuado por grandeza selvagem. O rei apunhalava o adversário enquanto os braços possantes de um valente alcaide prendiam pelas costas a vítima desarmada.
Nas Memórias inéditas de Diogo de Paiva e Andrade, autor do Casamento perfeito, faz-se menção do conflito, e encarece-se a bravura do coadjuctor de D. João II com uma anedota bastante significativa da coragem do fidalgo e da cobardia do rei.

Diz assim:
«D. Pedro de Eça, alcaide-mór de Moura, foi um fidalgo a quem a natureza dotou de muito ânimo e grandes forças, e por isto el-rei D. João II o escolheu, quando quis matar a D. Diogo, duque de Viseu, a quem abraçou por detrás. Acontecendo em Moura matarem um homem uns criados seus, foram-se dois irmãos do morto queixarem a el-rei e disseram-lhe que D. Pedro lho mandara; pelo que o mandou vir à côrte, e esteve nela mais de dous anos, posto que, tirada a devassa, o não acharam culpado. Enfadado D. Pedro disse a el-rei que, pois sua alteza não queria crer que ele não tinha culpa na morte do homem, e os que o acusavam eram dois, que lhe fizesse mercê de lhe mandar dar campo com ambos para assim se purificar; do que, agastando-se el-rei, lhe disse que tomara ele ser um dos dois. E D. Pedro lhe respondeu: «não fôra vossa alteza meu rei, e fosse com eles o terceiro.»

Não temos o desvanecimento de sobre-excitar contra D. João II o ânimo do nosso talentoso amigo; todavia, insinuamos-lhe a suspeita de que o homem não era capaz de matar outro sem lho agarrarem pelas costas, tendo ainda por cautela mais dois bravos que se chamavam Diogo de Azambuja e Lopo Mendes do Rio.


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D. João II com a Rainha D. Leonor, e com o filho D. Jorge, nos Painéis de S. Vicente.

Qual é o contexto histórico de D. João II?
É talvez demasiado complicado para explicar em poucas linhas, mas arriscamos pelo que sabemos, ou julgamos saber.

Antes disso, dizemos que a pequena defesa de D. João II se faz facilmente, sem precisar de outros contextos justificativos. Não estamos no final do Séc. XIX, para medir coragem/estupidez em duelos, e o rei não parece ter pretendido dar mostras de qualquer coragem especial, simplesmente parece ter pretendido dar mostras que o seu poder era aplicável por si mesmo, sem precisar de tribunais fantoches, para executar friamente quem conspirava contra si, no caso o seu primo, e irmão da sua mulher. Camilo ao citar o exemplo de D. Pedro de Eça, não mostra que o rei executou nele qualquer ira, pelo contrário, terá aceitado a afrontosa resposta do fidalgo.

Agora, o contexto... um contexto que Camilo conheceria parcialmente bem, e por isso espanta um pouco a apreciação ligeira. 
D. João II nasce em 1455, pouco anos depois do seu pai, D. Afonso V, ter morto o seu avô, o Infante D. Pedro, na Batalha de Alfarrobeira, 1448. Crescendo numa corte dilacerada por essa batalha, onde os Duques de Bragança e de Viseu exerciam um poder crescente, o jovem princípe foi praticamente criado pela sua tia e pela sua irmã, a princesa Santa Joana, já que a sua mãe morreu no ano em que nasceu. A hostilidade contra o avô, passou para a mãe, com tentativas de anulação do casamento, mas D. Isabel de Coimbra conseguiu manter a influência sobre D. Afonso V, recuperando a memória do pai, Infante D. Pedro, conseguindo que o marido transladasse o corpo para o Mosteiro da Batalha. 
A mesma hostilidade da nobreza passaria a si, com medo de um ajuste de contas, que viria de facto a fazer. Entre os cadáveres dos "80 ilustres", conforme descritos por Camilo, encontravam-se principalmente aqueles que tentaram anular o seu poder desde o início, com múltiplas manhas e traições, nomeadamente os Bragança, mais confortáveis com o poder castelhano de uma sua descendente - Isabel, a Católica, do que com o poder de D. João II.

Ao cognome "príncipe perfeito" foi junto o de D. Leonor, como "princesa perfeitíssima", e a imperfeição no cognome do rei é aperfeiçoada na excelência do cognome da rainha. A sua regência, de 1481 a 1525, correspondem a 44 anos onde Portugal não teve rival à altura. Foi ela que determinou a sucessão do marido pelo seu irmão mais novo, D. Manuel, com a mesma temperança que aceitou o assassinato do seu irmão mais velho, D. Diogo. Por isso, a "rainha velha" exerceu uma influência na corte que, em certos casos, terá suplantado a do rei, seu irmão, e terá estado à altura do rei, seu marido. O seu drama pessoal foi acrescido pela morte do filho, do qual não poderia excluir o marido, pelo menos na vontade de designar como seu sucessor D. Jorge. Também por essa divergência, que os separou definitivamente, nunca se livrou de uma suspeita de cumplicidade na morte de D. João II, por "peçonha"... e não foi isso que lhe retirou a superlatividade do cognome, que Camilo ali esqueceu. 

Depois, há todo o contexto dos descobrimentos, que não irei aqui detalhar, mas que suspeitamos começar com D. Fuas. Tem documentação confirmada já no tempo de D. Afonso IV, aquando da doação das Canárias ao castelhano Luís de La Cerda em 1344, pelo papa de Avinhão, Clemente VI. Sabe-se pouco das navegações seguintes, mas há fortes razões para suspeitar que mesmo no tempo de D. Fernando os portugueses viajavam já para o Brasil e para a costa africana, chegando ao Trópico de Capricórnio em 1377. 

As explorações do Infante D. Henrique e D. João II foram uma ficção na localização.
Uma armada de Garcia de Loaisa, cavaleiro de Malta, ao serviço espanhol, encontrou em 1525,  na desabitada ilha de S. Mateus (talvez a ilha de Fernando de Noronha), dois/três graus a sul do equador, inscrições "Talant de bien faire" datadas de 1438. (ver também "Mesa para Sandwich")

Mais do que qualquer outra coisa, quando D. João II declarou a passagem do Cabo da Boa Esperança, mas retardou a chegada à Índia em pelo menos uma década, deveu-se ao cuidado extremo com que foi encarada a empresa dos descobrimentos. O envio de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva por terra, permitia garantir que não estaria a ser preparada uma surpresa à chegada dos navios portugueses. 
De facto, se a viagem de Gama ocorreu como um passeio no lago (e fôra despesa inútil na opinião de Duarte Pacheco Pereira), era porque o Oceano Índico tinha já sido suficientemente explorado, para não trazer novidades incomportáveis.
D. João II tinha a perfeita noção da tarefa incomensurável que esperava os portugueses... e os empecilhos das guerrilhas internas, tratou-os com o despacho necessário de quem concentra tudo na preparação da maior empresa histórica até então pensada, e que foi realizada com relativa facilidade pelo seu sucessor, D. Manuel, em pouco mais que 25 anos. Quando D. Manuel morre, a costa africana, e toda a costa asiática até Macau tem portos portugueses. O Oceano Índico é um enorme mar português. Convida os príncipes europeus para a tarefa, que normalmente desdenharam. Consegue a atenção dos espanhóis para a parte ocidental, por via de Colombo, e separa as águas do mundo em duas partes, no Tratado das Tordesilhas. D. Manuel não faz mais que em 2 anos enviar os Corte Real para demarcar o Labrador, Cabral para demarcar o Brasil, Gama para reclamar a Índia, e com Afonso de Albuquerque consegue a conquista de Malaca, o passo final para assegurar o completo controlo do Índico até às ilhas Malucas, a fonte das especiarias. Deixa ao cargo dos espanhóis assegurar o controlo da parte restante - americana. 
E é ainda com mapas do tempo de D. João II, que Fernão de Magalhães revela saber do Estreito no sul da Patagónia.

Seria uma enorme delícia reencontrar esses mapas... mas como diria Poliziano, isso seria colocar o nosso rei num patamar único, e por isso extremamente inconveniente na História Mundial.

2 comentários:

  1. Saudações,

    Como não poderia deixar de ser aqui fica:

    https://www.youtube.com/watch?v=Oxyu5GrCIJs

    A partir dos 17:20

    Cumpts,

    JR

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    1. Bravo.
      Isso é o que se chama "encontrar a arma do crime"... e pequena adaga não era!
      Curiosamente ao minuto 19:15 está exactamente o texto sobre Pedro de Eça, de que Camilo aqui fala!

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