Alvor-Silves

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Carnaval revolucionário

Num artigo intitulado
publicado na revista científica Contemporary British History, em 2014, Oscar Martin Garcia, um investigador espanhol, comenta sobre a quase inexistência de artigos sobre o papel inglês na "Revolução dos Cravos". Porém o objecto do artigo serve ainda para ver esta revolução como a última de uma série de revoluções europeias, que entendeu como carnavalescas, citando:
«To help remedy this oversight, this article analyses the economic, political and diplomatic measures employed by the British Foreign Office to establish parliamentary democracy in Portugal, which brought an end to the final chapter in the ‘carnival’ of revolutions that had spread throughout Europe over the preceding two decades.»
O 1º de Maio de 1974 foi o último de paz e alegria revolucionária - a festa durou uma semana.
A diferença para o 1º de Maio de 2020, mostra que ao Estado Novo uma pandemia do tipo Covid teria sido uma panaceia sem contra-indicações conhecidas.
1º de Maio em 2020 (à esquerda) em 1974 (à direita).

A marcar o 1º de Maio de 1974 estava o protagonismo dado a Álvaro Cunhal e a Mário Soares. 
Os militares do 25 de Abril, nem passada estava uma semana, e já tinham ido para casa, plantar batatas. Um detalhe importante, normalmente varrido para baixo do tapete...
A Junta de Salvação Nacional, formada a 26 de Abril, dispensou os capitães, até porque se eram capitães de Abril, já não estavam a fazer nada no 1º de Maio.
  • Presidente: General António Spínola (Exército);
  • Exército (2): General Costa Gomes, Brigadeiro Silvério Marques;
  • Força Aérea (2): General Diogo Neto, Coronel Galvão de Melo;
  • Marinha (2): Capitão mar-e-guerra Pinheiro de Azevedo; Capitão de fragata Rosa Coutinho.

Maçonaria impõe Palma Carlos
O primeiro-ministro seria Palma Carlos, um nome ditado pela maçonaria, decidido numa reunião do Grande Oriente Lusitano na Av. Manuel da Maia. Ao que consta, em artigo do Expresso, Spínola quereria um governo militar, ou então Veiga Simão como primeiro-ministro. No entanto, o MFA, enquanto entidade abstracta detinha poder de veto, e manifestava-se algum controlo maçónico.

Este primeiro governo tinha como ministros Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal, entre outros, como Maria de Lourdes Pintasilgo, Magalhães Mota, Salgado Zenha, Almeida Santos, etc. 
A misturada estava destinada a terminar menos de 2 meses depois de tomar posse.

Em Julho de 74, Spínola aceita nomear Vasco Gonçalves, e parece ficar claro quem coordenou o processo revolucionário dentro de portas, pois foi ele quem sucedeu a Spínola:

General Francisco da Costa Gomes
Conforme era assinalado pela revista Time, durante o Verão quente de 1975, havia a Lisbon Troika, que era constituída por Otelo, Vasco, e Costa Gomes.

Para esse efeito, convém entender que o próprio Costa Gomes, talvez um bocado farto do "mito dos capitães" veio depois notar que  (ver texto de Rui Ramos):
Sem os generais, a revolução nunca provavelmente teria acontecido, como aliás um desses generais, Costa Gomes, fez questão de notar anos depois: no dia 25 de Abril de 1974, as tropas mobilizadas para a revolução – 150 oficiais e 2000 soldados, a maior parte instruendos das “escolas práticas”, sem qualquer experiência de combate — nunca, em circunstâncias normais, teriam sido suficientes para derrubar um regime que, nesse ano, mantinha mais de 150 000 homens em armas
O golpe de bastidores, teve como cabeça em Portugal o general Costa Gomes, que tinha sido nomeado por Marcelo Caetano como Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, em 1972.
Quando Marcelo dizia que a PIDE não conseguia "entrar no exército", parece claro que o problema estava na chefia, ou seja no próprio Costa Gomes.

Costa Gomes conhecia bem a NATO porque esteve no comando SACLANT de Norfolk com Humberto Delgado. Além disso, foi secretário de estado quando o General Botelho Moniz era ministro, ou seja, trabalhou directamente com dois dos opositores a Salazar. Mas foi o seu sucesso em Angola, onde optou por cativar as populações, em vez de confrontar os guerrilheiros, que lhe granjeou o prestígio no Estado Novo, já que a situação em Angola ficou totalmente controlada.
Já antes havia sido referido pela embaixada americana que Costa Gomes, melhor que Botelho Moniz, poderia fazer a mudança de regime. Ou seja, é natural que os EUA encarassem positivamente a mudança sob liderança de Costa Gomes.

Mesmo num relatório sobre a situação em 1975, enviado ao General Walters, da CIA, é dito:
Options about Costa Gomes' role ranged from his being a very powerful figure to a balancer between the left and the moderates, to one with a very little influence.
Essa ambiguidade conseguiu-a  manter até ao fim. Enquanto figura tremiclitante, sem poder, até aquele que se foi mantendo como figura de topo no Estado, independentemente do sentido da revolução. 
  • Era Costa Gomes, e não Spínola, o chefe de todo o aparelho militar em Março de 1974.
  • Se Spínola foi indicado por Caetano, isso pode ter agradado a Costa Gomes, que precisava de uma primeira transição menos abrupta. Ele manteve-se como 2ª figura, o que levou à sua designação para a sucessão de Spínola, em Setembro.
  • Sustentou todos os governos caóticos de Vasco Gonçalves, com o país em pseudo-estado revolucionário de semi-anarquia, com assaltos a propriedades e "reforma agrária".
  • Apadrinhou todo o caótico processo de descolonização, tendo presidido aos Acordos do Alvor.
  • Figurou como figura de esquerda, até 25 de Novembro de 1975, sendo completamente passivo face à hostilidade da esquerda revolucionária, ligada a Otelo e aos Gonçalvistas.
  • Mais complicado foi certamente dar meia volta, no 25 de Novembro, aparecendo ligado aos "moderados" vencedores.

Spínola e Costa Gomes seriam os dois únicos a serem nomeados Marechais pelo novo regime.

Curiosamente, se o Marechal Gomes da Costa implantou o Estado Novo, o Marechal Costa Gomes, terminou com ele. Provavelmente, nem sequer este detalhe será tão casual, quanto possa parecer.

Turismo revolucionário
Um dos focos do artigo mencionado, é que a revolução portuguesa serviu de transição entre os movimentos revolucionários esquerdistas, de Che e Fidel, às Brigate Rossi, aos Baader-Meinhof, às revoluções no sentido ocidental, da Espanha e Grécia, até à queda do muro, e ocidentalização dos antigos regimes comunistas.

Com efeito, é sabido que o estatuto soft da revolução tuga, revolução das flores, paz e amor, etc, causava um fascínio na intelectualidade, que é sempre de esquerda, e que durante 1975 veio ver as novas "instalações democráticas", ao nível de curiosidade turística... Com efeito, dada a anarquia que se foi instalando, era um excelente campo de novidades sociológicas.

O artigo fala do papel do governo de Harold Wilson nessa evolução 1974-76, no sentido de promover contactos e apoios para que Portugal não descarrilasse para a extrema-esquerda, mas pouco menciona do papel inglês anterior a 1974. Esse seria o período a ser investigado, sem acesso limitado pela maçonaria, amigos ou análogos.

O papel da maçonaria não passou só por apontar o nome de Palma Carlos, se o fez era porque tinha estado completamente a par, e apoiado o MFA. Dito de outra forma, isso significava o conhecimento de Londres e Paris. Acontecia o mesmo que se garantira na República, com a vantagem de não ter havido nenhum Paiva Couceiro a oferecer resistência pelo anterior regime.

Harold Wilson, em 1973 (na oposição) recebera Mário Soares, e promovera o boicote à viagem de Marcelo Caetano. Conforme já referimos, em 1973 deu-se a constituição do PS, com um financiamento da Fundação Ebert e da CIA. Mário Soares, também ele mação, encontrou apoios pela Europa, para fundar um partido de poder em Portugal... o que veio a acontecer, da noite para o dia.

Quando Harold Wilson ganha as eleições em Fevereiro de 1974, estavam criadas as condições para uma benção inglesa à revolução portuguesa, ao mesmo tempo que nos EUA, Nixon estava no fim da linha devido ao escândalo Watergate. O livro de Spínola sai em Fevereiro, e a crise da demissão de Spínola e Costa Gomes dá-se a 13 de Março, uma semana depois de Wilson tomar posse. Logo de seguida há o golpe das Caldas a 16 de Março, que terá direito a um bis em 25 de Abril... agora já com o apoio estratégico da frota da NATO em Lisboa.

As acções do MFA só ganham sentido se colocarmos Costa Gomes à cabeça de uma conspiração feita por dentro e por fora, com a cumplicidade da maçonaria (que estava proibida).
Foi Costa Gomes que chamou Spínola para vice-chefe do Estado Maior, que o incentivou a publicar o livro, de certa forma permitindo que ele encabeçasse a face visível do 25 de Abril.
Otelo nunca referiu quem lhe dava ordens, nem qual era o plano do MFA... que aparentemente não era nenhum, até chegar Spínola para negociar com Caetano. 
Só aparentemente era nenhum, porque tudo se desenrolou com uma precisão notável, ao ponto de no 1º de Maio, o futuro político do país, com Mário Soares e Álvaro Cunhal juntos, dava garantias de ser passado o Estado Novo.

O carnaval revolucionário que decorreu entre 1974-76 não foi do agrado americano, sendo sabido que Kissinger pensou em intervir militarmente. No entanto, ainda mais nos bastidores, testava-se a vacina contra o romantismo de golpes anárquicos. Ao fim de um ano de regime Gonçalvista, sob patrocínio de Costa Gomes, o direito às experiências sociais tinha-se acabado, e era tempo de arrumar as coisas nos seus lugares. Tal como sempre acontecera, Costa Gomes limitou-se a gerir tendências, acordos, e pacificações, de forma a que Portugal não terminasse num cenário de guerra civil, o que seria péssimo para o turismo revolucionário, encantado com a revolução dos cravos.
Esse aspecto foi plenamente conseguido, o que não deixou de ser notável, dadas as circunstâncias.
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02.05.2020

3 comentários:

  1. Muito bom, muito bom...

    Mesmo tendo estudado esta matéria com alguma exaustão ainda não me tinha apercebido do verdadeiro papel de Costa Gomes.
    Fiquei convencidíssimo.

    Muito obrigado, caríssimo.
    IRF

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    1. Pois, eu também só me apercebi do papel fulcral do Costa Gomes, há poucos anos.
      Disfarçava muitíssimo bem...

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  2. ... e não nos ensinam na escola!

    IRF

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